Paradoxo de sexta (29)

Começando, como sempre, pelo da semana passada: é tentador tratar a afirmação do prefácio sobre haver erros no livro como um mero mecanismo retórico, mas não é disso que o paradoxo trata: a questão é que parece haver motivos fortes para acreditar que o livro é completamente correto E que ele contém erros. Mas isso é uma contradição, como “triângulo redondo”. Como escapar dela?
Minha solução favorita é a probabilística. Digamos que o autor tem um alto grau de confiança em cada uma das afirmações feitas no livro — que pesquisou cada uma delas até 97% de confiança em cada uma. Se o livro faz, digamos, 100 afirmações, a chance de todas estarem corretas é de (0,97)100, o que dá… peraí… 0,04, ou apenas 4%!
Ou seja: embora cada afirmação do livro tenha 97% de chance de estar certa, a chance de todas estarem certas juntas é de menos de 5%.
O desta semana é o Paradoxo de Newcomb. Para ser completamente honesto, aviso que não existe uma solução consensual para este problema; há quem acredite que ele traz uma falácia embutida (como as provas de que 1=0), mas isso ainda não foi provado para a satisfação da comunidade filosófica (e matemática).
Funciona assim:
Imagine que você é convidado a participar de um game show de TV, no qual lhe apresentam duas caixas, uma vermelha e uma azul. Você tem a opção de pegar ambas a caixas, ou apenas a vermelha. O apresentador lhe diz que a caixa azul com certeza contém R$ 1 mil. Já a vermelha…
Bom.
Uma semana antes do dia do show, um supercomputador foi usado para criar um modelo matemático do seu cérebro (este é um supercomputador futurista, que até hoje foi perfeitamente capaz de modelar e simular corretamente tudo que lhe pediram, incluindo muitas coisas que parecem bem mais complexas que o cérebro de um participante de game show). Com base nesse modelo, o computador previu qual seria sua escolha. E com base nessa previsão, a caixa vermelha foi preenchida da seguinte forma:
(a) Com R$ 1 milhão, se o computador previu que você só pegaria ela.
(b) Com um sapato velho, se o computador previu que você pegaria ambas.
(c) Com um sapato velho, se o computador previu que você decidiria aleatoriamente.
Perceba que as caixas foram preenchidas com antecedência: o dinheiro não vai se transformar em sapato velho (ou vice-versa) no instante em que você decidir.
Qual a melhor decisão? Por quê? Se em vez do supercomputador fosse Deus fazendo a previsão, isso faria alguma diferença? (suponha, para efeito de argumento, que Deus existe neste cenário, e é onisciente).

Meu gato está morrendo

Enquanto escrevo, a gata vira-lata (com um certo jeito de siamesa) que mora comigo há 17 anos agoniza no tapete da sala, embrulhada em uma manta xadrez. Estou esperando o veterinário para avaliar a situação e discutir opções, mas não tenho muitas dúvidas quanto a qual será a decisão final.
Não sei se gata, a esta altura, sente dor: ela parece inconsciente, mas apresenta pequenos espasmos nas patas dianteiras e no pescoço. Seria dificuldade para respirar?
Ao mesmo tempo em que me vejo pensando na questão da mente dos animais irracionais — até que ponto eles sentem (dor, amor, saudade, ódio)? até que ponto o modo deles de sentir é comensurável com o nosso? — penso também nas decisões que tomei pela gata: trazê-la ao apartamento, tirando-a do jardim da casa onde morei até 2000; não teria sido melhor para ela ficar por lá, com árvores e passarinhos? Mas ela teria vivido tanto na rua, com o risco constante de atropelamento, do cachorro do vizinho?
Eu tinha o direito de decidir por ela? E se não tivesse, como consultá-la? Faz sentido falar nisso? Ela não é, ao fim e ao cabo, apenas um autômato orgânico, programado pelos instintos para reagir às condições ambientais? Mas, até aí, não somos todos?
Penso também, claro, na decisão que vou tomar daqui a pouco. Esta, pelo menos, será fácil: só o que me incomoda é a demora do veterinário em chegar. Como já disse alguém, guardamos para nossos animais de estimação uma misericórdia que negamos a nós mesmos.

Regenerando uma moeda

Suponha que você precise de uma moeda para tomar uma decisão num lance e cara-ou-coroa — por exemplo, definir quem dará o pontapé inicial num jogo de futebol, ou se o vilão Duas-Caras deve ou não matar a mocinha indefesa — mas desconfie que a única moeda disponível seja “desonesta”, isto é, não tenha uma probabilidade de 50% de cair para cada lado.
Haverá salvação? Surpreendentemente, sim. A técnica foi originada pelo matemático John von Neumann, e consiste em jogar a moeda duas vezes para o alto, ignorando todos os resultados repetidos, tipo AA (duas cAras) ou OO (duas cOroas).
Isso funciona porque, se a probabilidade de a moeda dar “O” é um número qualquer “x”, a probabilide de ela dar “A” será 1-x. Assim, a chance de ela produzir o resultado alternado “AO” será (1-x)x, e o resultado alternado “OA”, x(1-x). Como a ordem dos fatores não altera o produto, as alternadas AO e OA têm exatamente a mesma chance de aparecer.
Claro, para esse sistema funcionar é preciso atribuir significados aos resultados AO e OA, por exemplo, chamando AO de “cara” e OA de “coroa”. Isso é tudo o que basta para fazer uma moeda viciada dar uma resposta honesta.

Investigando a grande lixeira oceânica

Quem leu o livro O Mundo Sem Nós, de Alan Wrisman, certamente ficou impressionado com sua descrição do destino dos plásticos e PETs — como esse mterial, até agora virtualmente indestrutível por meio de processos químicos ou biológicos naturais, fragmenta-se cada vez mais, indo parar até mesmo no interior de animais microscópicos.
Outro dado curioso sobre o destino do lixo é o chamado “Vórtice Plástico” do Oceano Pacífico, uma região entre os EUA continentais e o Havaí onde praticamente todas as formas de lixo jogadas ao mar na América e na Ásia vão parar, por conta das correntes oceânicas. Neste ano, uma equipe de cientistas pretende mergulhar no vórtice.
A preocupação imediata é a entrada do lixo plástico na cadeia alimentar humana. Mas é de se imaginar quanto tempo a evolução vai precisar para produzir uma bactéria capaz de digerir essa bagaça. E o estrago que esse bicho faria num supermercado — e no aquecimento global.

Ex-general dos marines e ex-astronauta é o novo chefe da Nasa

Sim, são a mesma pessoa: o general Charles Bolden, veterano da guerra do Vietnã e o mesmo homem que pilotou o ônibus espacial que levou o Hubble ao espaço em 1990 foi nomeado, no sábado, novo administrador da Nasa.
Às portas da festa dos 40 anos do pouso na lua da Apollo 11 e com o destino do Programa Constellation — estabelecido depois que o então presidente Bush determinou um retorno à Lua até 2020 — ainda indefinido, Bolden terá muito trabalho pela frente.
Abaixo, um vídeo da missão em que Bolden levou o Hubble o espaço, e no qual alguns reflexos na lente da câmera acabam gerando um pequeno mal-entendido ufológico entre o astronauta e o comando da missão (o áudio em inglês é meio ruim, mas vale a pena):

Pró-maconha e antitabaco: contradição?

Conversando outro dia com um amigo, deixei escapar que sou a favor de restrições ao fumo em locais públicos, e também a favor da descriminação (não confundir com discriminação) da cannabis sativa. Sabendo como sou pentelho com questões de lógica e coerência, o amigo ficou olhando para mim como se eu tivesse acabado de cometer apostasia do culto de São Aristóteles e Santo Russell.
A ideia de que as duas posições são autoexcludentes e fazem parte do rol de contradições politicamente corretas da civilização moderna parece estar ganhando força — se formos levar as seções de comentários dos portais noticiosos a sério — e merece ser rapidamente posta para dormir.
Trata-se de uma confusão de grau: tirar da ilegalidade não equivale a liberar geral, e restringir o uso não equivale a declarar ilegal. Por exemplo, as restrições ao fumo não preveem pena de prisão para o comerciante que vender cigarros, nem o confisco das terras usadas para o plantio de tabaco para fins de reforma agrária — duas medidas que, hoje, atingem a maconha.
Da mesma forma, a hipotética legalização do plantio e da comercialização da erva não garantirá a ninguém o direito automático de sair bafejando THC na cara de criancinhas dentro da área infantil do McDonald’s.
No meu tempo de faculdade, surgiu um acalorado debate sobre o consumo de maconha nas dependências do Centro Acadêmico — se deveria ser tolerado ou não. Tentei chamar atenção para o fato de que lá já havia uma placa de “proibido fumar”, e que isso devia bastar para pôr fim à questão, mas acho que ninguém estava ouvindo.
No fim, os fumantes que se queixam de estarem sendo “tratados como criminosos” na verdade estão se ressentindo da crescente reprovação social que o ato de fumar atrai. Mas essa reprovação faz parte da consciência coletiva da comunidade, não das leis. E nada garante que ela não vá se estender ao (de novo, hipotético) uso legal da maconha.
O que é preciso buscar é um equilíbrio que evite submeter cidadãos adultos a uma tutela paternalista estatal — onde o governo dita ao indivíduo de que formas ele pode ou não se divertir e/ou se autodestruir — e que preserve, ao mesmo tempo, o dever do Estado de proteger a coletividade e regular o uso civilizado dos espaços públicos.
É difícil? Claro que é. Mas fica um pouco mais fácil se nos dermos ao trabalho de notar que uma coisa é uma coisa e outra coisa, outra coisa.

Sir Arthur Conan Doyle, 150

Eu raramente faço duas postagens no mesmo dia, mas a ocasião merece: hoje faz 150 anos do nascimento de Sir Arthur Conan Doyle, criador de Sherlock Holmes, do Professor Challenger, amigo pessoal de Harry Houdini, defensor da existência de fadas e descrito como o “apóstolo Paulo do espiritualismo”.
A tensão entre o frio racionalismo de Holmes e o envolvimento de Conan Doyle com o sobrenatural é uma fonte inesgotável de especulações sobre a natureza humana e a fragilidade da razão perante a dor — o escritor perdeu um filho, um irmão e dois sobrinhos na Primeira Guerra Mundial.
Seu conturbado relacionamento com Harry Houdini ilustra bem o conflito complexo entre fatos e esperanças, integridade e vontade de acreditar. Escritos autobiográficos de Houdini descrevem como Conan Doyle era parcial na análise da evidência, ingênuo diante da fraude — e, ao mesmo tempo, inteligente e generoso.
O Professor Challenger, um cientista turrão e irascível que descobre dinossauros na Amazônia (entre outras coisas) foi um personagem criado por Conan Doyle já no século 20, e protagonizou a que talvez tenha sido a primeira superprodução de ficção científica e efeitos especiais do cinema.
Além das aventuras de Holmes e Challenger, Conan Doyle escreveu muita ficção científica, histórica (seu romance Miquéias Clarke, sobre as guerras religiosas na Inglaterra, é realmente muito bom) e boxe. Assim como as aventuras de Holmes, suas narrativas de pugilismo são empolgantes até hoje.

Paradoxo de sexta (28)

Primeiro, o da semana passada: o que distingue um gêmeo do outro, ao final do experimento, é o fato de que o que viajou no foguete experimentou acelerações, tanto na partida quanto ao fazer a volta para retornar à Terra e, por fim, ao frear para pousar a nave.
Um dado que omiti propositalmente do enunciado foi o de que o princípio da relatividade — de que dizer que “eu me movo em relação a você” equivale precisamente a dizer que “você se move em relação a mim” — só vale se o movimento em questão for retilíneo e uniforme (na verdade, a Relatividade Geral complica um pouco isso, mas a questão não vem ao caso nesta situação específica).
A partir do instante em que um dos membros do par em movimento sofre uma aceleração e o outro não, a simetria é quebrada, e é perfeitamente possível para um observador qualquer — seja um dos componentes do par, seja um observador externo — dizer exatamente quem acelerou, por quanto tempo e com que intensidade.
Meu exemplo favorito para isso é o do balde. Imagine uma caixa fechada, contendo um balde com água e uma webcam. Você, em sua casa, recebe a imagem gerada pela câmera: o que vê é a superfície plácida da água dentro do balde (a câmera é uma daquelas de visão noturna).
Você supõe que a caixa com o balde dentro está parada, mas não há como afirmar isso com certeza. Não há nada que a câmera lhe mostre que permita distinguir a caixa parada de uma caixa montada sobre rodas, puxada por uma corda sobe uma superfície plana, a uma velocidade constante.
Mas se a caixa sofrer uma aceleração — for erguida, derrubada, receber um empurrão ou um puxão mais forte, girar — a água vai denunciar o efeito imediatamente.
Agora, o desta semana: é o Paradoxo do Prefácio (o link é para o paper original que descreve o problema). Ele é assim: muitos autores de livros de não-ficção costumam escrever no prefácio de seus livros coisas do tipo “todos os erros contidos nesta obra são de minha inteira responsabilidade”, ou “esta obra certamente conterá diversos erros e imprecisões…”.
Agora, como pode o autor realmente acreditar que o livro contém erros? Ele obviamente não pôs nenhum erro deliberado ali. Ele certamente pesquisou o assunto a fundo. SE você abrir o livro ao acaso, apontar para um parágrafo e perguntar ao autor “isto aqui está certo”, ele vai responder, “sim”. Você pode repetir a operação tantas vezes quantas forem necessárias até esgotar todo o conteúdo do livro, e verá que o autor, na verdade, acredita que tudo o que escreveu está certo.
No entanto, a experiência indica que a afirmação do prefácio é verdadeira. Livros de não-ficção recebem resenhas e críticas que, geralmente, acabam produzindo novas edições corrigidas. Assim, da mesma forma que o autor tem motivos para acreditar que tudo que está no livro é verdade — afinal, ele pesquisou o assunto e, ao publicar a obra, está apostando sua reputação nisso — ele também tem motivos para acreditar que o livro precisará ser corrigido no futuro. São crenças contraditórias, mas ambas racionais e bem embasadas!

O uso de senhas de segurança é sustentável?

Esta não é uma questão ecológica, a menos que se considerem os números inteiros como uma espécie ameaçada (o que seria estranho porque, afinal, eles são infinitos). Mas há algum tempo chegaram aqui em casa novos cartões de crédito, em substituição a alguns que estavam vencendo. Todos com chip e senha.
Somando-se a isso a senha dos cartões de débito, a senha do computador do trabalho, a senha para editar este blog, as senhas das minhas contas de e-mail, do twitter, orkut, scribd… Bom, não dá. Simplesmente, não dá.
Existe um princípio irônico-matemático chamado Lei Forte dos Números Pequenos, que diz que “não existem números pequenos suficientes para dar conta de tudo que se exige deles”.
Essa “lei” foi sugerida originalmente como uma observação do fato de que várias séries numéricas começam da mesma forma (a On-Line Encyclopedia of Integer Sequences registra nada menos que 13.526 séries começando com 1,2,3…), mas ganha um novo significado neste nosso mundo de códigos de acesso. E ela também merece uma generalização, que poderíamos chamar de Lei Forte do Teclado Qwerty: não existem combinações aleatórias suficientes de caracteres arábicos, latinos e especiais para dar conta de tudo o que se exige deles.
Claro, matematicamente falando falando, as combinações possíveis de letras e números superam em muito a população da Terra (são 48 teclas no meu computador, sendo que cada uma delas pode gerar pelo menos dois caracteres, num total de 96. O total de senhas de seis caracteres que isso pode produzir é de 96 à sexta potência, ou quase 800 bilhões), mas na prática é preciso levar em consideração que (a) em várias partes do mundo já temos muito mais de uma senha por habitante e (b) a memória humana é falível, limitada, o que leva as pessoas a criar senhas em torno de padrões pré-estabelecidos ou a andar com os códigos anotados na carteira. O que derrota todo o propósito das senhas, para começo de conversa.
Enquanto a antropometria não chega, eu já tomei uma decisão, duplamente sudável: vou cortar radicalmente o uso de cartões de crédito.

Mikhail Gromov recebe o Prêmio Abel

O russo naturalizado francês Mikhail Gromov foi agraciado com o Prêmio Abel deste ano. O Abel é uma tentativa bastante cuidadosa de emular o Nobel, premiação que não contempla a matemática. Há várias lendas urbanas para explicar essa aparente negligência de Alfred Nobel, minha favorita sendo a de que um matemático dormia com a esposa do velho Alfred — o único problema com isso é o fato de que Nobel morreu solteiro.
O Abel é um prêmio recente, instituído em 2002, mas que tem boas chances de se tornar uma instituição nos próximos anos e décadas. O premiado deste ano tem uma carreira longa e produtiva no campo da geometria não-euclidiana, mais precisamente da geometria de Riemann, na qual a cada ponto do espaço são associados um ou mais vetores.
Há um breve material introdutório (em inglês) sobre o assunto aqui, e uma visão simplificada do trabalho de Gromov aqui.
Por fim: o Prêmio Abel deve seu nome ao matemático norueguês Niels Henrik Abel, que demonstrou que não existe uma fórmula geral para a solução de equações de quinto grau — ao contrário do que acontece, por exemplo, com as de segundo, que se rendem à fórmula de Báscara. Mais tarde, o trabalho de Abel foi generalizado para uma demonstração de que também não há fórmulas genéricas para nenhuma equação de grau superior a cinco.
Isso não significa que essas equações sejam insolúveis, mas sim que não existem mais “balas de prata” algébricas para altos expoentes. Ou: para resolver, é preciso suar.

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