Certeza e sujetividade

O Ecce Medicus publicou um postagem bem interessante sobre Mecanismos geradores de Certeza e que, num dado momento, faz a seguinte afirmação:
“Sendo assim, só quem pode avaliar criticamente as certezas é quem as tem”.
O que soa meio estranho. Digo, se eu afirmo que “TENHO certeza DE QUE meu chefe tem olhos na nuca”, meu colega da baia ao lado pode imaginar instantaneamente uma meia dúzia de experimentos para provar que isso é bobagem (ou que é verdade, o que, se confirmado, exigiria o envolvimento do FBI, dos Homens de Preto e do professor Charles Xavier).
A solução para o impasse talvez esteja na estrutura “TENHO certeza DE QUE”. A parte “TENHO” é subjetiva, refere-se a um sentimento do falante, acessível apenas à instrospecção pessoal; o que vem depois do “DE QUE” está aberto ao mundo, é verificável por observadores independentes. Então, talvez seja possível expandir a afirmação do Karl (o blogueiro do Ecce Medicus) da seguinte forma:
“Só quem pode avaliar criticamente a sensação de ter certeza de algo é quem a sente”.
Já a afirmação que a certeza traz sobre um determinado estado de coisas no mundo é criticável e verificável.
Mas, peraí, uma afirmação sobre o estado de espírito de alguém também é uma afirmação sobre um “determinado estado de coisas no mundo”. A mente humana está no mundo, ora bolas.
Aí caímos num daqueles abismos da autorreferência, do tipo “Todos os cretenses são mentirosos, disse um profeta cretense”. Senão, vejamos:
Dizer “TENHO certeza DE QUE” equivale a dizer que “TENHO certeza DE QUE sinto que TENHO certeza DE QUE”. Ou seja, é possível passar o TENHO (subjetivo/introspectivo) para depois do DE QUE (objetivo/verificável). E a operação pode ser iterada quantas vezes se quiser.
Aí, há duas saídas, não excludentes, mas complementares: uma é adotar uma postura mezzo behaviorista e negar que a introspecção seja o juiz final da sensação de certeza — digo, todos desconfiaríamos da sinceridade de um homem que diz ter certeza de que pode voar, mas que se recusa a pular da janela do vigésimo-oitavo andar, ou de um marido que bate impiedosamente na mulher, mas que diz ter certeza de que a ama.
A outra é aceitar que ninguém convence ninguém de nada; cada certeza ou convicção tem um percurso mental único, subjetivo e intransferível, e só o que os fatos e argumentos que nos são apresentados fazem é servir como guias, ou parteiros. Mas o ato do convencimento é estritamente pessoal. Cada um, literalmente, “se convence”.
Então, parece-me possível preservar a validade de criticar externamente as certezas alheias, ao mesmo tempo em que se reconhece o limitado impacto psicológico dessa abordagem. Com a certeza (arrá!) de que “limitado” não é, necessariamente, o mesmo que “nulo”.

Paradoxo de sext (32)

O da semana passada se resolve, creio, simplesmente notando que muitas categorias úteis para uso no dia a dia (como presente, passado e futuro) são exatamente isso, úteis para uso no dia a dia, mas não se prestam a análises lógicas detalhadas. São como os “conceitos primitivos” da geometria (ponto, reta, plano): acessíveis à intuição, bons tijolos, mas que (como tijolos) viram pó quando tentamos ver o que há dentro deles.
Acho que são situações assim que levaram Wittgenstein a concluir que não existem problemas filosóficos, o que há são imperfeições e maus usos da linguagem.
O paradoxo desta semana foi proposto por Richard Dawkins.
Imagine que todas as suas ancestrais do sexo feminino, sua mãe, avó e até a última ancestral comum com os chimpanzés — até a proto-macaca que teve duas filhas, irmãs, uma das quais entrou na linhagem da sua família e a outra cujos descendentes nunca saíram da selva (ou se saíram, foram para o zoo) — estão enfileiradas, numa sequência de quilômetros. Imagine que, numa fila paralela a essa, estejam todas as descendentes do sexo feminino da irmã de sua ancestral comum.
Agora, percorra a fila que leva até você. Veja como cada geração se liga perfeitamente, sem descontinuidade alguma, à anterior. Do humano ao proto-humano e ao proto-macaco, não há nenhuma quebra. Em nenhum momento você vê uma mãe macaca peluda e feia de mãos dadas com uma filha humana e linda. Nem mesmo entre avó e neta há diferença perceptível, nem entre bisavó e bisneta.
Agora, tendo chegado à ancestral comum, avance no tempo pela fileira dos proto-chimpanzé que até a chimpanzé que está na fila paralela, olhando para a sua mãe nos olhos. Elas são primas. De novo, nenhuma descontinuidade.
O “U” evolucionário que liga o ramo humano de sua família ao ramo dos macacos é contínuo e suave, tão sólido quanto o que o liga, digamos, aos primos que não emigraram com sua avó, bisavó ou tataravó ou quem quer que seja que tenha vindo da Itália, do Japão, de Portugal, Alemanha, pelo estreito de Bering, etc.
Então: se não há descontinuidade, se o parentesco que nos liga aos macacos é tão firme quanto o que nos liga à humanidade em geral, como é possível que sejamos espécies essencialmente diferentes?

Belo documentário japonês sobre o planeta Vênus

Narrado e legendado em inglês, antes que alguém fique assustado:

Quando o computador pifa, ignore-o

Imagine que você está pilotando um veículo aéreo que nunca foi usado antes, sobrevoando um território onde nenhuma outra pessoa jamais pisou, dependendo de pistas visuais — a posição do sol, detalhes de relevo que você só conhece de fotos e mapas — para se orientar, com uma linha de comunicação com sua base que volta e meia falha, o combustível acabando e, por cima disso tudo, o computador de bordo começa a piscar luzes de alerta e a dar uma mensagem de erro que você nunca viu antes.
Se imaginar isso, você estará imaginando a situação de Neil Armstrong durante a descida do módulo lunar Águia à superfície da Lua.
Da transcrição oficial da Nasa (os números são o tempo da missão, em horas, minutos e segundos; a Águia vai tocar a superfície da Lua em 102:45:40; Armstrong dirá “A Águia pousou” em 102:45:58; “Duke” é o cara em Houston):
102:38:26 Armstrong: (With the slightest touch of urgency) Program Alarm.
102:38:28 Duke: It’s looking good to us. Over.
102:38:30 Armstrong: (To Houston) It’s a 1202.
102:38:32 Aldrin: 1202. (Pause)

“1202” é o código de erro do programa. O fato é que nenhum dos astronautas havia visto esse código durante os treinamentos e simulações do pouso realizados na Terra. Neste momento, eles não fazem a menor ideia do que está acontecendo, e em menos de 10 minutos vão estar alunissando. Neste momento, a altitude da Águia é 33 mil pés, ou 10 km.
Na Nasa, um técnico, Steve Bales, determinou qe o código representava “data overflow”, ou excesso de dados: simplesmente, havia informação demais para processar. Bales e sua equipe determinaram que era seguro prosseguir com o pouso, e que se dane o computador. E o resto, como dizem, entrou para a história.

Fly me to the Moon…

Às vésperas dos 40 anos do primeiro desembarque humano em outro corpo celeste, a Nasa dá os primeiros passos para levar astronautas de volta à Lua. Já estão na órbita lunar as sondas LRO e LCROSS, que têm por objetivo fazer prospecção de locais e recursos para futuro uso dos astronautas.
O curioso é que a meta de retorno à Lua é polêmica, mesmo entre os entusiastas da exploração espacial. O povo da Mars Society, por exemplo, tende a considerar a Lua um beco sem saída, já que uma população humana na Lua jamais será autossuficiente, algo que Marte talvez um dia venha a ser. Um dos motes da Society é exatamente “se você quer ir a Marte, vá a Marte”.
Já outra ONG que faz lobby pela exploração do espaço, a Planetary Society (e você achando que só os ambientalistas eram assim tão bem organizados, hein?) apresentou uma proposta de programa espacial chamado, exatamente, “Beyond the Moon” (“Além da Lua”).
Eu, de minha parte, até concordo que, se o objetivo é ir a Marte, a Lua é um estágio meio bobo no meio do caminho (entre outras coisas, é mais econômico lançar foguetes para a Lua de Marte que da Terra). Mas confesso que gostaria de ouvir a frase “A Altair pousou”, vinda do polo sul lunar, em algum momento da próxima década.

Teoria dos Jogos e o ‘jeitinho’

Neste fim de semana, passei a noite de sexta pra sábado num hotel de SP. No mesmo lugar havia uma convenção de médicos — a fila do check-in era de quase uma hora, por conta do influxo maciço de doutores. Bom, quando chegou a minha vez, perguntei ao balconista qual o melhor horário para tomar café no dia seguinte, já que os médicos certamente iriam lotar o restaurante quando descessem em massa.
O simpático rapaz atrás do balcão disse que a convenção de médicos (patrocinada, ao que parece, pela Novartis) tinha um evento previsto fora do hotel, com saída marcada para as 8h. Programei-me, então, para descer para o café por volta das 8h05, quando os médicos já deveriam ter limpado a área.
Você certamente já adivinhou o que aconteceu: o restaurante ainda estava lotado de médicos, que informavam uns aos outros que o ônibus ainda ia esperar “mais um pouquinho”; acho que saiu, no fim, lá pelas 9h.
O que me pôs para pensar nos pobres coitados que tinham acordado cedo para estar de café tomado e dentes escovados a tempo de pegar o ônibus na hora estipulada na véspera, 8h. Deviam estar se sentindo os maiores trouxas da galáxia.
Em termos de teoria dos jogos, essa é a situação clássica onde uma quebra na cooperação entre os jogadores segue sem punição, de forma que quem se esforçou para jogar direito fica com o ônus do esforço empenhado, mas não colhe bônus nenhum.
Simulações matemáticas (e experimentos e a história) mostram que quando “aproveitadores” contumazes seguem impunes, os cooperadores ou desistem de fazer as coisas direito ou são extintos da população, até que a coletividade chegue a 100% de aproveitadores — quando tudo, obviamente, desmorona.
(Qualquer semelhança com o Congresso Nacional é mera coincidência).
Filosofando um pouco, parece-me que a tolerância com o aproveitador é parte do fenômeno conhecido genericamente como “jeitinho brasileiro”.
Percebo que este é o ponto, neste tipo de artigo, onde o autor começa a esbravejar pedindo pena de morte para quem cospe na rua. Não vou fazer isso, mas propor uma reflexão sobre um fenômeno cultural interessante: a tendência nacional de inverter o “ônus da inconveniência”. Ou: parece que entre nós o chato é quem insiste para que as normas sociais sejam observadas, não quem abusa do tempo e da paciência de quem tenta agir direito. Por que será?

Pessoas precisam de direitos, ideias não

A divisa deste blog é “pessoas merecem respeito, ideias não”; uma organização baseada nos EUA acaba de lançar uma campanha em defesa da liberdade de expressão com um tema parecido. Veja o logo abaixo:
Logo-Campaign-for-Free-Expression.jpg
O endereço do site da campanha é http://www.pleaseblock.us/.

Paradoxo de sexta (31)

O da semana passada, claro, desmorona assim que aparece ma demonstração de que 0,9999… é, de fato, igual a 1. O próprio enunciado do paradoxo já era uma demonstração do tipo, inclusive (e anotem o recurso retórico: apresentar a prova inquestionável de um fato para questionar o fato. Tipo, “o senador Fulano teria de ser um rematado canalha para ter feito isso”. QED?).
Outra demonstração, que envolve a prova de que 9x(0,9999…) = 9, foi apresentada nos comentários.
Vamos voltar aos paradoxos mais filosóficos. Este aqui é uma demonstração de que a existência é impossível. Trata-se do Paradoxo do Niilismo.
Começamos com o fato óbvio de que tudo que existe tem de existir por algum tempo. Digo, duração é uma característica necessária da existência.
O tempo, por sua vez, divide-se em presente, passado e futuro.
Agora: as coisas que estão no passado não existem mais. Isso é por definição; isso é o que significa estar no passado.
Da mesma forma, as coisas que estão no futuro não existem ainda. De novo, por definição.
O que resta, portanto, é o presente. Mas qual a duração do presente? Comecei a digitar esta linha no passado, e vou terminá-la no futuro. O presente, de fato, não se faz presente: o passado se dissolve no futuro sem um estágio intermediário. O presente não tem duração. Mas, pela primeira premissa, o que não tem duração não existe.
Se não há presente, então todas as coisas estão no passado (não existem mais), ou no futuro (ainda virão a existir). Logo, não existe nada.

Diplomas e diplomados

O Supremo Tribunal Federal enfiou uma estaca ano peito da exigência legal do diploma de bacherelado em comunicação social para o exercício da profissão de jornalista. Sei que o assunto não tem muito a ver com ciência, que é o espírito desta comunidade de blogues, mas como jornalista profissional diplomado lá se vão quase 20 anos, gostaria de registrar alguns palpites a respeito.
O primeiro é que sempre desconfiei de regulamentações profissionais em geral. Mesmo quando a regulamentação é obviamente necessária (digamos, no caso de médicos e engenheiros civis) a tendência natural é a de que o sistema criado sob o pretexto de proteger a sociedade em geral contra incompetentes e charlatões acabe fazendo exatamente o oposto — isto é, proteja os incompetentes e charlatões contra a sociedade em geral.
O segundo é que regras como a exigência do diploma ao fim e ao cabo funcionam como dificuldades artificiais que só servem para produzir um pujante mercado de facilidades — no caso, faculdades meia-boca de jornalismo que descarregam semianalfabetos diplomados no mercado à taxa de centenas a cada ano. Sem a exigência legal do diploma, essas instituições serão forçadas a oferecer algum serviço útil — além do mimeógrafo de diplomas — para continuar existindo. Talvez, cursos decentes?
O que me traz ao terceiro e último ponto: é concebível um curso de jornalismo em nível de bacharelado que seja capaz de pegar um jovem vocacionado para a área e, a partir dele, oferecer ao mercado e à sociedade um profissional melhor do que esse mesmo jovem seria, se tivesse cursado alguma outra coisa?
Pessoalmente, acredito que sim. Não tenho receita pronta para oferecer, mas suponho que uma abordagem multidisciplinar sólida e uma boa base de lógica e pensamento crítico seriam diferenciais importantíssimos. Talvez, agora que a conveniente reserva de mercado acabou-se, as faculdades se mexam para descobrir a fórmula certa.

Médico, quando?

Entrando um pouco na praia do Ecce Medicus: muito se comenta sobre a “medicalização” da vida — como, assim diz a anedota, toda criança malcriada é “hiperativa”, todo adolescente com dor de cotovelo é “deprimido”, qualquer mau jeito ou dor muscular no tórax ou abdome já ativa alarmes de ataque cardíaco, crise renal, apendicite. Exageros abundam.
Mas eu gostaria de oferecer um exemplo do outro lado: recentemente, um parente passou a sentir uma progressiva perda de força na perna esquerda. Consultou um ortopedista que pediu exames e o encaminhou a um neurologista, que pediu mais exames — e nada. A causa do sintoma era um mistério.
Eis que um dia esse parente sobre uma queda, bate a cabeça na mesa e correm ao pronto-socorro. Faz uma tomografia do crânio e, pimba!, descobre-se o problema: hidrocefalia. Operado o crânio, a perna volta, depois de algum tempo, ao normal.
O fato é que o neurologsita poderia ter diagnosticado a hidrocefalia antes da queda fortuita, se tivesse sido informado de outros sintomas que vinham afetando seu paciente: lapsos de memória, pequenos episódios de confusão mental, estranhas distrações.
Ninguém pensou em comunicar isso ao médico porque os sintomas pareciam, digamos, “normais”. Não serem sintomas, enfim: bolas, o cara estava quase perdendo o movimento da perna, era óbvio que ia ficar chateado, e que a chateação iria deixá-lo meio avoado… certo?
A questão que fica: o que é um sintoma? Onde está a linha entre hipocondria e autonegligência? Não vale dizer “na dúvida, procure um médico”, não numa realidade onde consultas levam semanas para acontecer e os pronto-socorros mal têm sabão para lavar feridas.
Essa situação acaba levando muita gente e buscar um pré-diagnóstico pela internet — a resposta à pergunta, “o que pode ser isso, e será que procurar um médico vai salvar a minha vida ou será apenas perda de tempo?”
Os Institutos Nacionais de Saúde dos EUA mantêm várias páginas com essa função, com recomendações do tipo, “se a tosse não passar em uma semana, procure seu health care provider…” (o politicamente correto parece ter abolido a palavra “doctor”).
O governo brasileiro, no entanto, parece não ter iniciativa semelhante. Será que não deveria ter? Ou o pré-diagnóstico online é um perigo? E se for, seria mais perigoso que a fila do pronto-socorro?
Cartas para a redação…

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