O Livro de Eli: ficção científica evangélica
Fui assistir a O Livro de Eli, novo filme estrelado por Denzel Washington. O filme em si é uma fantasia pós-apocalíptica que mistura, de forma muito diluída, ideias que já foram muito mais bem exploradas na “graphic novel” Apenas um Peregrino, de Garth Ennis e Carlos Ezquerra, e no romance A Estrada, de Cormac McCarthy.
Como costuma acontecer com filmes pós-apocalípticos em geral, este tem um pé na ficção científica e foi isso, claro, que me atraiu ao cinema. Mas trata-se apenas de um verniz: há menções oblíquas à destruição da camada de ozônio e a algo que parece um inverno nuclear, fenômenos que teriam sido precipitados por uma guerra, ocorrida 30 anos antes do início dos eventos da película.
(Spoilers below. Caveat emptor)
No entanto, essas coisas servem apenas para criar a moldura na qual se passa a história de Eli, um sujeito escolhido por Deus para garantir que o último exemplar da Bíblia existente na América do Norte (ou no mundo, já que para o público-alvo da película essas coisas são equivalentes) seja levado a um local seguro e escape das mãos de um maníaco fascista que pretende usá-lo para realizar perigosas manipulações demagógicas.
(O que deixa em aberto a questão de por que o Cara não evitou que isso acontecesse antes da guerra, que segundo o filme foi precipitada por fanatismo religioso)
O roteiro tenta se equilibrar entre o jingoísmo evangélico (Onde Eli, o único cara que reza, é praticamente invulnerável, e a única Bíblia que Deus decide salvar do holocausto nuclear é, claro, a edição clássica em inglês do Rei James) e uma certa ironia: o “lugar seguro” para onde a Bíblia é levada não é uma igreja ou um templo, mas uma espécie de universidade, e o livro acaba não num altar, mas numa humilde estante de biblioteca, entre uma Torá e um Alcorão. Mas o fato é que há intervenção divina e pregação demais na história para pôr em dúvida a qual público os autores estavam mesmo querendo agradar. Ao mais rico e numeroso, claro. Aleluia, irmãos.
Enfim: o filme vale pelas cenas de luta, por algumas soluções curiosas de fotografia e pela oportunidade de ver o Malcolm McDowell (aka “O cara que matou James T. Kirk”) fazendo um papel que, finalmente, não é de vilão.
Morre Philip José Farmer
Morreu aos 91 anos o escritor de ficção científia Philip José Farmer. A obra de Farmer teve muitas vertentes, mas as mais fortes, EMO, foram a da investigação metafísico-religiosa e a do sexo. Na primeira, criou cenários que eram verdadeiros “gedankens” de ideias como a ressurreição dos mortos (O Mundo do Rio), a sobrevivência da alma após a mortes (Inside/Outside) e o criacionismo “Terra Jovem” (World of Tiers).
Já na vertente sexual Farmer notabilizou-se por ter criado a primeira cena explícita de cópula entre humano e alienígena, por ter inventado alguns dos mecanismos de inseminação e reprodução mais criativos (e chocantes) de toda a ficção e, no geral, por ter levado a temática do sexo para o centro das preocupações ficcionais, tratando-o com o mesmo rigor criatividade com que outros autores tratam, por exemplo, viagens ao espaço ou o ciclo de vida das estrelas.
Não sei se os coblogueiros biólogos conhecem a obra dele, mas recomendo fortemente o livro Strange Relations, da Baen Books, que reúne a nata da obra de Farmer sobre sexo.
Ficção científica antirreligiosa
É muito comum na ficção científica, principalmente na cinematográfica, que o clímax da história envolva algum tipo de afirmação da superioridade do “coração” sobre o “intelecto”: o momento da viória, não raro, é o momento em que o protagonista racionalista-anal-retentivo quebra as amarras da lógica e se deixa levar pela emoção-intuição-wathever.
Uma instância clássica é o final de Guerra nas Estrelas, onde Luke Skywalker desliga o computador de bordo de seu caça e decide deixar-se guiar pela Força (ainda que, se a Força realmente existisse, essa teria sido uma saída racional… ah, os paradoxos dos universos contrafactuais).
Um fato relativamente desconhecido, no entanto, é de que esse tipo de desenlace místico-populista não é uma regra fixa do gênero; na verdade, várias obras de grande qualidade apontam na direção oposta e trazem críticas ao apego à intuição e à religião. Alguns clássicos da crítica à religião na ficção científica são:
As Ruas de Áscalon, de Harry Harrison: um padre tenta levar o evangelho a uma população alienígena, com resultados imprevistos.
O papa dos chimpanzés, de Robert Silverberg:um grupo de estudiosos de primatas usa linguagem de sinais para discutir deus e a imortalidade da alma com um grupo de chimpanzés.
A estrela, de Arthur C. Clarke: um jesuíta descobre uma supernova, com implicações profundas para sua fé.
Jesus em Marte, de Philip José Farmer: astronautas encontram uma comunidade cristã em Marte.
Razão, de Isaac Asimov: robôs chegam a concluisões surpeendentes sobre o lugar da inteligência artificial no Universo.
Buck Rogers, 80 anos
O ano é rico em efemérides — os bicentenários de Edgar Allan Poe e Charles Darwin (nenhuma teoria da conspiração surgiu ainda em torno dessa coincidência?), os 150 de A Origem das Espécies — mas a notícia de que o orçamento do Ministério da Ciência e Tecnologia foi cortado em 18% me fez lembrar de uma outra que estava passando despercebida: em 7 de janeiro de 1929, foi publicada a primeira tirinha de Buck Rogers.
Hoje o velho Buck está praticamente esquecido, mas seu impacto na cultura ocidental não pode ser subestimado: foi o primeiro produto de mass media a transformar conceitos científicos em entretenimento (os pulps de ficção científica, em comparação, eram mais coisa de subcultura nerd: uma uadiência fiel, mas pequena). Para o bem e para o mal, as aventuras de Rogers no século 25 definiram os conceitos de “ciência” e “progresso científico” para a consciência coletiva do século passado.
E o que isso tem a ver com o corte no MCT? Bom, diz a lenda que um dos primeiros astronautas do programa espacial americano teria proferido as imortais palavras “No bucks, no Buck Rogers” ou, “sem dinheiro, não há avanço científico e tecnológico”.
O fato de o orçamento com o corte ter sido preparado por um senador do PT faz meu reacionário interior desconfiar de que o plano seja exatamente esse, acabar com essa ferramenta insidiosa do capital, a ciência, e realizar uma visão de utopia esquerdista à la Pol Pot, um delírio de multidões miseráveis solidárias vivendo de frutos, raízes e de amor ao próximo, enquanto criancinhas morrem alergremente de tétano e verminose.
Mas, claro, meu reacionário interior é um maluco, melhor mantido sob forte sedação. Ele nunca está certo. Espero.
Dia em que a Terra Parou
Críticos e jornalistas já escreveram esmerilhando a triste refilmagem do clássico de Robert Wise, mas do ponto de vista da divulgação científica, o mais asustador é ver como um filme tão ruim se esforça tanto para soar cientificamente plausível. Produções desse tipo correm o risco de dar à verossimilhança científica uma fama tão ruim que em breve teremos gente saudando o valor estético a propagação do som no vácuo.
Senão, vejamos (spoiler alert, pra quem liga para essas coisas): o alienígena Klaatu chega à Terra num corpo humano sintético, clonado a partir de uma amostra de tecido — ponto para o filme, já que escapa do clichê do alienígena “naturalmente” humanóide; a astrobióloga interpretada por Jennifer Connelly estuda bactérias extremófilas, algo que muitos astrobiólogos de verdade realmente fazem; os alienígens decidem destruir a Terra usado máquinas de Von Neumann, o que não deixa de ser uma boa idéia e um pensamento original — para os padrões de Hollywood.
(Ok, eles invantam um prêmio Nobel esquisito para “pesquisa em altruísmo biológico”. Seria o de fisiologia? Da paz? Ou o de economia? Mas o de economia não é um Nobel “oficial”.)
E, a despeito disso tudo, o filme é uma bomba. Péssimo roteiro, atuações nada inspiradas e um monte de outras coisas. Ninguém ainda disse que o filme é chato por ser “científico demais”, mas é preciso manter a vigilância: O Dia em que a Terra Parou não é um filme lamentável por ter tentado acertar na ciência, mas a despeito disso.
As Leis da Robótica
Sempre que surge uma discussão sobre ética (como a suscitada pela minha postagem anterior) eu me lembro das Três Leis da robótica de Isaac Asimov. Quase todo mundo já ouviu falar nelas, provavelmente:
1. Um robô não pode ferir um ser humano ou permitir, por omissão, que um ser humano seja ferido.
2. Um robô deve obedecer a todas as ordens que receber de um ser humano, exceto no caso de a obediência acarretar numa violação da primeira lei.
3. Um robô deve preservar a própria existência, exceto no caso de essa preservação acarretar uma violação da primeira ou da segunda leis.
Boa parte da série de histórias de robôs desenvolvida por Asimov dos anos 30 aos 80 gira em torno de desafios, violações ou inconsistências dessas leis; nesse aspecto, o filme Eu, Robô é bastante fiel ao espírito da obra asimoviana.
Em termos humanos, as leis da robótica representam um paralelo interessante com nossos ideais éticos. Mas o mais interessante, ao menos para mim, é a forma como as leis são implementadas nas histórias asimovianas. Elas não são parte de um programa instalado nos robôs, como o Windows do meu computador, que poderia muito bem ser um MAC OS ou um Linux; elas são estruturais. Um robô asimoviano é tão incapaz de contemplar violá-las quanto um ser humano é incapaz de visualizar as duas interpretações de um cubo de Necker simultaneamente.
O que me faz imaginar: haverá algum tipo de ética estrutural, construída no cérebro humano, como as leis da robótica são construídas no cérebro dos robôs ficcionais?
Certamente essas regras, se regras houver, estão impressas com menos força do que as leis robóticas — provavelmente não há uma definição de decência que não tenha sido violada por alguém em algum momento da história, e aqui eu uso “decência” num sentido bem mais amplo que o de moral sexual ou boas maneiras — mas sempre que me surge a idéia de que a ética é uma construção puramente cultural eu me lembro do paradoxo de Platão: os deuses amam as boas ações porque são boas ou as ações são boas porque os deuses as amam?
No primeiro caso, existe algum tipo de intuição universal sobre o que é uma “boa ação”, partilhada por homens e deuses; no segundo, fazer o bem é apenas uma forma arbitrária de puxassaquismo místico.
Felizmente, a evidência científica parece apontar para o primeiro caso: por exemplo, no curioso experimento que revelou um senso de justiça entre macacos.
Mais ficção científica
Eu geralmente nã blogo aos domingos, então resolvi usar o espçao , geralmente vago, para sair da linha comum deste blog e fazer algumas recomendações literárias… No caso, de ficção científica brasileira.
Muitas vezes, a relação do gênero com seu público em potencial me lembra um pouco aquelas velhas comédias de pastelão em que dois personagens (Ollie e Stan, digamos) tentam dessperadamete se encontrar… Ms sempre abrem a porta errada, ou estão na mesma sala mas e costas um para o outro e não percebem, ou se encontram no escuro e acabam brigando porque não se reconhecem.
Tudo muito engraçado, desde que você não seja Stan ou Ollie, claro.
Então, fazendo a minha parte para ajudar no encontro, aqui vão alguns links para publicações virtuais gratuitas que talvez sejam úteis:
http://www.verbeat.com.br/terraincognita/
http://www.black-rocket.blogspot.com/
http://www.clfc.com.br/somnium/101.pdf
Boas leituras!
The seven-per-cent solution
Neste romance de Nicholas Meyer, o Dr. Watson leva Sherlock Holmes a Viena, para que Sigmund Freud tente curá-lo de seu vício em cocaína. Estamos em 1891, e Freud ainda não tinha inventado a psicanálise — estava a meio caminho. A cura de Holmes vem por meio de uma combinação de hipnose (para reduzir a ânsia pela droga) e o bom e velho “cold turkey”: eliminar o acesso do viciado à droga e trancar a porta.
No fim, ficamos sabendo que Holmes sofreu um trauma profundo na juventude que, guardado em seu inconsciente, levou-o ao vício e a várias características de sua personalidade, como a misoginia e o desejo de denunciar e capturar criminosos.
Trata-se de uma boa peça de ficção policial (e científica?) mas me deixou com uma dúvida: o inconsciente freudiano, o conceito de motivações inconscientes, ainda faz sentido, psicologicamente?
Ficção científica – evento em SP
Gente,
Neste sábado e domingo rola o Invisibilidades II – Ficção Científica no Século XXI: Ainda é Possível? , no itaú Cultural, em São Paulo. O nome “invisibilidades”, vem da constatação de que a ficção científica feita no Brasil é meio invisível: existe há décadas, já tem um cartel razoável de boas obras, mas quase ninguém percebe (isso já foi tema, até, de uma edição da revsita Ficções).
O evento conta com um blog oficial.
O foco do evento deste ano é um pouco pós-moderno demais para os meus gostos filosóficos pessoais, mas, ei, se a gente só falasse com pessas com quem concorda, não haveria motivo para blogar, certo?
A primeia mesa-redonda de sábado é às 17h30. Apareçam!