Paradoxo de sexta (47)
O da semana passada caiu quase sem um suspiro: sim, a chance de o ladrão errar apenas uma gaveta é zero — se ele acertou as outras cinco, sua única opção é acertar a sexta também.
Nesta semana, vamos tratar de um paradoxo da Teoria da Relatividade — um irmãozinho menos famoso do bom e velho Paradoxo dos Gêmeos. Trata-se do Paradoxo da Escada.
Imagine que você é o Superman e, para salvar o Universo, precisa fazer com que uma escada de 20 metros de comprimento (você a está segurando na horizontal) caiba, ainda que por alguns míseros instantes, no interior de um galpão de 19 metros.
Sendo Superman, você encontra uma solução fácil para o problema: basta correr na direção do galpão a uma velocidade próxima à da luz, de forma que a contração relativística encolha a escada um pouco — e pronto, ela vai caber no espaço menor!
“Nada disso”, diz Mxyzptlk (afinal, que mais faria a salvação do Universo depender do comprimento de uma escada?). “Se todos os quadros de referência são igualmente válidos, então é igualmente válido supor que é o galpão que está correndo em sua direção, numa velocidade próxima à da luz. Nesse caso, é o galpão que encolhe. E, se a escada já não cabia nele antes, como vai caber agora?”
Estará Mxyzptlk certo? Nosso herói estará condenado ao fracasso?
Átomos no espaço!
O presidente da Federação Russa, Dmitry Medvedev, manifestou apoio aos planos da Roscosmos – a agência espacial do país – de projetar e construir uma nave espacial com propulsão nuclear. Isso fez arrepiarem-se os cabelos na nuca de muita gente, de ativistas contra armas atômicas a ambientalistas. Para complicar mais as coisas, nenhum detalhe da natureza exata da proposta foi divulgado, o que abre caminho para especulações de todo tipo.
Energia nuclear, claro, já é usada no espaço. Sondas da Nasa enviadas para além da órbita de Marte dependem de RTGs (geradores térmicos de radioisótopo) para funcionar. Esses RTGs se valem o calor gerado pelo decaimento do plutônio para produzir eletricidade. O Mars Science Laboratory, um robô teleguiado do tamanho de um jipe, que deve ser enviado a Marte na próxima década, dependerá de RTG para funcionar, já que será pesado demais para rodar exclusivamente com energia solar.
RTGs são ubíquos, mas também polêmicos. Uma das primeiras grandes campanhas de mobilização da opinião pública desencadeadas via internet, nos idos dos anos 90, foi exatamente a STOP CASSINI, onde um bando de nucleófobos tentou impedir o lançamento da sonda Cassini porque ela usava RTG.
RTGs, no entanto, são apenas uma pequena parte da história, e provavelmente não é disso que os russos estão falando — seria um anticlímax e tanto, dado o caráter “arroz de festa” dessa tecnologia.
O mais provável é que a Roscosmos esteja pensando num foguete térmico nuclear, que basicamente representa a consubstanciação da ideia de usar um reator nuclear para aquecer e acelerar o propelente do foguete.
Foguetes, claro, funcionam por conta da conservação da quantidade de movimento, a equaçãozinha mv=mv. Poupando os leitores de metáforas surradas como a do patinador que arremessa uma bola de basquete para a frente e é jogado para trás pela reação, ou coisas assim, o princípio é jogar uma massa relativamente moderada para fora a uma velocidade obscenamente alta e conseguir, com isso, que uma massa obscenamente alta se mova a uma velocidade relativamente moderada.
Para conseguir isso é preciso, antes, acelerar a massa que será jogada fora. A capacidade dos diversos combustíveis de foguete de fazer isso é medida por uma característica chamada impulso específico (Isp) e que, por causa das unidades que entram em seu cálculo, é medido em segundos. Quanto mais segundos de Isp um modo de propulsão tiver, mais eficiente ele é. O uso de reatores nucleares para aquecer hidrogênio tem um Isp que é de pelo menos o dobro da opção mais usada hoje, que é queimar o hidrogênio misturando-o a oxigênio.
Então, por que esses motores não são usados? Bolas, porque são NUCLEARES. A Nasa teve um programa, o Nerva, para desenvolver um motor nuclear que foi cancelado nos anos 70; os soviéticos também tiveram um, que durou até os anos 80.
Descontando a pressão negativa da opinião pública contra energia nuclear no ambiente da década de 70, as dificuldades técnicas são eram poucas. Por exemplo, como você testa um motor assim? E se o teste falhar e a coisa explodir (é para isso que se fazem testes, afinal: para encontrar falhas)?
Sem falar que o gás aquecido pelo reator e eliminado pelos jatos do foguete provavelmente seria radioativo. Por conta disso, a ideia era usar esse tipo de motor apenas no espaço, fora da atmosfera terrestre. No entanto, havia o risco do lançamento: para pôr o motor no espaço, com seu material físsil e tudo, seria primeiro necessário prendê-lo no topo de uma bomba de hidrogênio-oxigênio de dezenas de metros de altura e…
Enfim. Não pareceu uma boa ideia. Mas até a Nasa está reconsiderando: a pesquisa de motores nucleares foi reativada em 2003, sob o nome de Projeto Prometheus.
Outra alternativa é a propulsão elétrica nuclear, na qual reatores são usados para gerar a eletricidade que (a) ioniza átomos de propelente e (b) repele os íons produzidos para fora da nave, a velocidades altíssimas. Esse é o tipo de propulsão usado na nave Discovery, do filme 2001 (a nave, para quem se lembra, tem aquele pescoço alongado para manter os astronautas a uma distância segura da radiação gerada no motor).
Mas o mais legal, mesmo, seria se os russos estivessem pensando em desenvolver uma nave de pulso nuclear. “Pulso”, no caso, porque a propulsão seria gerada por uma série de explosões atômicas do lado de fora do veículo. Assim: a nave ejeta uma bomba atômica; a uma distância “x” do casco, a bomba explode; a onda de choque empurra a nave para a frente. Essa foi uma ideia muito levada a sério nos anos 50, e um protótipo, chamado Put-Put, chegou a ser testado (com bombas convencionais, não nucleares) atingindo uma altitude de 60 metros.
Frescuras, como o tratado internacional que proíbe detonações nucleares no espaço, mataram a ideia – que poderia levar uma tripulação a Marte em menos de um ano! -, no entanto. Alguns conceitos avançados nasceram do princípio do pulso nuclear, como o uso de pastilhas de hidrogênio concentrado, que seriam atingidas por lasers emitidos pela nave, entrando em fusão nuclear.
Mas gosto da ideia de uma nave russa de pulso nuclear à moda antiga, explodindo bombas soviéticas pelo caminho. Melhor detonar aquele arsenal todo na rota de Vênus do que deixá-lo cair nas mãos de terroristas, afinal…
Down, aborto e os dilemas da liberdade de escolha
Estudo publicado no British Medical Journal mostra que houve um grande aumento no número de diagnósticos de Síndrome de Down na Inglaterra e País de Gales – provavelmente causado pelo aumento na idade média das gestantes – mas uma redução no número de nascimentos de crianças portadoras da síndrome.
A implicação é que, uma vez feito o diagnóstico pré-natal, o feto portador de Down é abortado na maioria (mas não na totalidade) dos casos.
O texto no BMJ é essencialmente descritivo – apresenta os números e tira algumas conclusões práticas deles – mas a questão que fica no ar é a psicológica e bioética: você é mulher. Quer um filho. Espera até os 38, 39 anos para concebê-lo, seja porque precisa cuidar da carreira, porque quer curtir a vida, porque não tinha encontrado o pai certo… Enfim.
Chega o exame de ultrassom, a criança é Down. Você decide interromper a gravidez? É certo decidir interromper a gravidez? (não estou questionando a legalidade da coisa: na Inglaterra pode, no Brasil, não).
Esta é uma daquelas circunstâncias onde uma nova possibilidade tecnológica cria uma situação ética até então inimaginável. E até, aparentemente, mais complexa que a questão do aborto em si.
Mesmo imaginando que a mulher tenha o direito moral (ainda que, no Brasil, geralmente não o legal) de decidir se quer ou não levar uma gestação a cabo, esse pedaço de informação extra – que a gravidez era desejada e seria levada a cabo, se o feto não previsse uma criança excepcional – parece criar um complicador.
Um analista poderia dizer que a mulher que age assim está tratando a criança como se ela própria, a mulher, não passasse de uma criança egoísta e birrenta, que decide que não quer brincar mais depois de se comprometer com o jogo.
Outro analista poderia dizer que não existe criança nenhuma nessa história: o que há é um feto que, caso se desenvolva por completo, dará origem a uma criança com limitações importantes. Uma vez prevista a situação, o mais sábio evitá-la.
Pessoalmente, imagino que uma decisão do tipo é pessoal demais para permitir algum tipo de regra geral e que o método britânico, de deixar a possibilidade em aberto pra que a mulher faça uma opção de acordo com suas próprias luzes, é o mais acertado.
Afinal, da mesma maneira que o governo poderia proibir o aborto, ele também poderia exigi-lo – para cortar gastos em educação especial, por exemplo.
‘Na cabeça das pessoas’
Muito divertida e interessante a repercussão da frase do nobelista português José Saramago, de que “Deus não existe fora da cabeça das pessoas”. Sem entrar no mérito da declaração (com a qual concordo, aliás), o que me interessa aqui são duas reflexões, uma retórica e uma tática, produzidas pelo dito saramaguiano.
A retórica se refere ao péssimo hábito brasileiro (talvez não seja só brasileiro, mas certamente é muito usado por aqui) de confundir jogo de palavras com argumentos. Se eu digo que a impressora que comprei semana passada revelou-se uma “bela merda” e alguém me responde , “bom, pelo menos, é bela”, essa resposta pode até ser é uma boa piada, mas certamente não é uma contestação válida da avaliação que fiz da qualidade do produto.
Esse tipo de reação muitas vezes se reduz ao que a língua inglesa chama de disingenuous, um tipo de hipocrisia na qual a pessoa finge ter entendido menos do que realmente entendeu de uma declaração ou questão.
Coisas assim aparecem, por exemplo, em reações do tipo “mas o amor também só existe na cabeça das pessoas, e o amor é importante”, ou “mas afinal, o que existe fora da cabeça das pessoas?”
Ora bolas: o que o escritor estava dizendo é que Deus é apenas uma ideia, um conceito sem referente no universo externo às ficções da mente humana; algo como Frodo Bolseiro ou Conan o Bárbaro. Espero que isto seja claro o bastante até para o mais disingenuous dos disingenuous.
A segunda reação, tática, é a que vem dos ateus mais blasé, para quem Saramago está apenas fazendo jogada de marketing e “irritando padres”, chovendo no molhado, repetindo notícia velha.
Mas, seria notícia velha, mesmo? Muita gente, incluindo o Senado Federal e a Câmara Municipal de Sorocaba, parecem não a terem recebido.
Mesmo transformada, ela sempre ressurge
Na quinta-feira, o concurso de fotomicrografia Nikon Small World divulgou seus vencedores e, como sói acontecer, entre eles há uma espiral logarítmica:
No caso, a ampliação o ovário de um peixe.
Essa espiral tem a propriedade de manter a forma em qualquer escala, mesmo com o espaço compreendido entre sucessivas voltas aumentando sempre; e o ângulo formado entre linhas radiais e tangentes a ela é sempre o mesmo, em todos os pontos. Possivelmente por causa dessas características, ela é uma forma comum na natureza, aparecendo em ciclones, galáxias e seres vivos (daí sua abundância nas várias edições do concurso da Nikon).
Uma ave de rapina aproximando-se da presa ou um inseto voando para colidir com uma lâmpada descrevem espirais logaritmicas. Os insetos evoluíram um mecanismo que os leva a buscar manter um ângulo constante com a principal fonte de luz da vizinhança durante o voo — se essa fonte é o sol ou a lua, o resultado é uma linha reta; como quando um pessoa tenta viaja para o norte mantendo o sol à sua direita, durante a manhã.
Se a fonte estiver muito mais próxima (e, para piorar, irradiar luz em 360º), surge a espiral letal.
Essa espiral foi muito estudada pelo matemático Jakob Bernoulli, que a chamou de spira mirabilis (espiral maravilhosa) e insipriou-se nela para criar o próprio epitáfio, Eadem mutata resurgo (Mesmo transformado, ressurjo).
Infelizmente , o artesão que gravou a lápide de Bernoulli fez o favor de pôr lá a espiral errada — no caso, a forma muito mais simples e fácil de construir da Espiral de Arquimedes.
A lápide de Bernoulli, acima; a espiral aparece no pé da imagem.
Paradoxo de sexta (46)
O de sexta passada, o da Onipotência (na versão de Mackie) suscitou várias pontos interessantes de discussão, mas eu destaco dois que me pareceram os mais pertinentes à questão imediata:
1. Tudo depende de como se define onipotência.
É aí que reside a solução clássica de Tomás de Aquino, que redefine onipotência como a capacidade de fazer tudo que não seja logicamente impossível. Esse resultado parece satisfazer muita gente — o próprio Mackie, que escreveu um calhamaço de argumentos contra a existência de Deus, considerava-o aceitável — mas a mim, pelo menos, ele me parece capcioso, muito parecido com a Falácia do Verdadeiro Escocês (“Nenhum escocês é pedófilo!” “Ei, mas o McCloud foi preso ontem em flagrante com uma menina de oito anos!” “Ah, ninguém que faça uma barbaridade dessas é um verdadeiro escocês no coração!”).
Enfim: se é preciso redefinir um termo para excluir explicitamente os absurdos, isso, a meu ver, só reforça a ideia de que o termo em si é absurdo. Ao definir “quadrado”, por exemplo, não é preciso acrescentar a ressalva de que “esta definição exclui os círculos”.
(Aliás, essa é uma sensação que a maioria dos argumentos teístas me dá, a de que as definições são postas numa câmara de tortura e espancadas, esticadas, amputadas e marcadas a ferro quente até que digam o que o argumentador queria ouvir. A Suma Teológica é bem assim…)
2. O paradoxo fala de um ser onipotente genérico, não em Deus
Essa pode parecer uma distinção irrelevante, mas não é. Na verdade, o paradoxo é muito mais danoso à ideia judaico-critã-islâmica de deus (onipotente, onisciente, onibenevolente, criador do Universo, fonte das obrigações morais, merecedor de adoração, colecionador de prepúcios, adversários dos contraceptivos, coletor de dízimos, recompensador de homens-bomba, etc, etc) do que, digamos, a Zog, a criatura onipotente do Planeta W.
Primeiro, porque ele revela uma incompatibilidade entre um criador onipotente e o livre-arbítrio das criaturas. Mackie tentou contornar isso pressupondo dois tipos de onipotência, sendo a de Tipo I a capacidade infinita de agir, e a de Tipo II, a capacidade infinita de determinar as ações dos outros e as próprias. Ele poderia então, valer-se da onipotência Tipo II para abster-se de exercer controle sobre suas criaturas.
O argumento, no entanto, fica bem convoluto a partir desse ponto, e no fim a coisa acaba gerando inconsistências. De novo.
Outro ponto é que a própria solução de Aquino é insatisfatória, quando aplicada a uma divindade criadora do Universo: bolas, se o cara criou tudo que existe, ele também criou as leis da lógica. Como pode ser limitado por elas? A menos que as leis da lógica sejam anteriores a ele e ele tenha de se submeter a elas. Mas, então, elas (a) seriam mais poderosas que Deus e, (b) teriam de ter sido criadas antes dele. Por quem?
De volta à câmara de tortura…
Bom, vamos ao desta semana. Desta vez não trarei um paradoxo, mas um enigma leve, adaptado do mais recente livro de Ian Stewart:
Suponha que você é um ladrão que invadiu uma casa e achou uma cômoda com seis gavetas. No escuro, começa a esvaziá-las, tentando, pelo tato e pelo feixe estreito de sua lanterna, encontrar algo de valor. De repente ouve um ruído. O dono da casa voltou!
Sendo um ladrão romântico, na tradição cavalheiresca e não-violenta, você prefere fugir a confrontar sua vítima. Rapidamente, antes de voltar à janela, você retorna o conteúdo às gavetas — você havia feito seis pilhas no chão, uma para cada compartimento. Na pressa, no entanto, você simplesmente enfia uma pilha de conteúdo em cada gaveta ao acaso, sem se preocupar em devolver cada uma à origem.
Saltando pela janela no instante em que as luzes se acendem no corredor, você se vê pensando em qual a chance de ter acertado, por pura sorte, a distribuição das pilhas entre as gavetas. E faz a si mesmo a seguinte pergunta: qual a probabilidade de eu ter errado uma gaveta só?
Ajude nosso amigo ladrão a sanar esta dúvida cruel!
Você acredita em qualia?
A discussão de uma postagem anterior, sobre a Desigualdade de Bell, fez surgir um comentário interessante: à minha peremptória afirmação de que uma árvore que cai na floresta faz barulho, mesmo sem ninguém para ouvir, o Osame contrapôs que, afinal, “barulho” é um efeito subjetivo — uma alteração no cérebro causada por ondas sonoras — e que, logo, não há “barulho”.
Acho que essa objeção pode ser contornada com uma visita ao Houaiss, que define “barulho”, na primeira acepção, como “som estrepitoso; rumor; estrondo”; ou seja, a palavra também se refere ao som em si (segunda acepção de “som”: “vibração que se propaga num meio elástico com uma frequência entre 20 e 20.000 Hz, capaz de ser percebida pelo ouvido humano”), não apenas à impressão no córtex auditivo.
Mas a questão levantada abre espaço para uma especulação diferente: você, leitor, acredita em qualia? (plural latino; singular, “quale”). Os (ou seria “as”?) qualia são, na forma como a palavra é usada por filósofos, o que há de irredutivelmente subjetivo numa experiência. São a resposta a questões como “o que é ver o vermelho?”, “o que é ‘doce’?” ou “qual a sensação de estar lendo isto?”
Não se trata, apenas, de dizer que existe uma distância entre descrição e experiência, mas uma afirmação sobre a natureza dos conteúdos mentais: seria impossível saber que o “vermelho” que você vê é o mesmo “vermelho” que eu vejo; seria impossível saber se a sensação gustativa a que eu atribuo o nome “doce” é a mesma a que você dá o mesmo nome. E assim por diante.
Criaturas desprovidas de qualia seriam, também no jargão filosófico, “zumbis”: perfeitamente capazes de se passar por seres humanos, mas que na verdade estariam apenas rodando algoritmos (“ao morder algo contendo moléculas do tipo açúcar numa concentração acima de x%, sorria e diga: ‘Hmmmm…. lá se vai minha dieta!’), mas vazios por dentro.
O status ontológico dos qualia — se são coisas “em si”, se são apenas uma metáfora útil ou meros construtos teóricos — no entanto, é uma questão disputada.
É possível, por exemplo, que sejamos todos “zumbis”, e que o que o que vemos como qualia sejam apenas o ruído das engrenagens dos algoritmos rodando. Que “ver a cor vermelho” não seja a sensação subjetiva de ter um certo tipo de atividade no córtex cerebral, mas sim que seja a própria atividade de certa parte do córtex cerebral.
Ou: se os eletrodos forem ligados aos neurônios corretos, todos vemos o vermelho da mesma forma.
Pessoalmente, sinto-me mais inclinado a encarar os qualia como o tiquetaque do relógio algorítmico do que como sinais inefáveis da presença de uma alma sensível. Muita gente acha que isso é um rebaixamento da experiência humana, mas discordo: a experiência, afinal, está aí, e não é melhor ou pior por causa do que pensamos dela. E os bons relógios tiquetaqueiam de um modo muito agradável.
Conhecimento, ética e dever
O caso da menina australiana morta porque o pai insistiu em tratá-la com homeopatia gerou um rico debate aqui o SbB entre o Kentaro, do 100Nexos, e o Karl, o Ecce Medicus.
Eu dei um ou dois pitacos tímidos, mas fiquei, basicamente, como espectador. Ao fim e ao cabo, a discussão toda me provocou a seguinte indagação: até que ponto o que se sabe afeta o que se deve? Ou: conhecimento gera obrigação moral?
Parece pacífico que o conhecimento pessoal certamente que sim: se eu sei que armas de fogo disparam projéteis potencialmente letais, eu tenho a obrigação de não apontá-las para outras pessoas.
Já o conhecimento socialmente disponível é uma questão mais complexa. Ninguém, por exemplo, culparia um marciano que de repente apareça na Terra e que nunca viu uma arma de fogo que puxasse o gatilho de um revólver por engano.
No entanto, não há muitos marcianos à solta por aí; é concebível que a sociedade tenha uma expectativa mínima de conhecimento em relação a seus membros (ao menos, os maiores de idade, emancipados, responsáveis por seus atos perante a lei): que todos os cidadãos de uma civilização onde motores a combustão interna são comuns saibam, por exemplo, que trancar uma pessoa na garagem com o carro ligado é potencialmente letal.
Nenhum motorista pode se isentar de um acidente alegando desconhecer as normas de segurança no trânsito — mesmo que, de fato, as desconheça.
A coisa fica ainda mais complicada quando existe um choque entre crença pessoal e conhecimento socialmente disponível. Digamos que eu acredite piamente, com toda a sinceridade, que criancinhas são anjos capazes de voar; e que essa crença me impeça de salvar uma menina de quatro anos pendurada no parapeito do décimo-segundo andar.
A lei a gravidade e o fato de que crianças não voam são, claro, conhecimentos socialmente disponíveis.
Serei culpado, se a menina cair e morrer? Existe uma obrigação ética de submeter minha crença ao conhecimento socialmente disponível? Uma crença que contrarie esse tipo de conhecimento é imoral em si?
Cartas para a redação (ou comentários ao blog…)
Paradoxo de sexta (45)
Como bem notado, o da semana passada se resolve simplesmente imaginando um outro monge subindo o morro da mesma forma que o original (ou, para quem gosta de ficção científica, o monge original, depois de chegar no topo, volta ao passado e começa a descer no mesmo instante em que ele mesmo começa a subir).
O curioso é que a demonstração sequer depende do fato de que os dois monges comecem o percurso na mesma hora: supondo que o monge “do futuro” só comece a descer a montanha, digamos, às 15h, ele ainda assim vai se encontrar no caminho com seu duplo “do passado”, que começou às 8h da manhã.
Nesta semana vamos a um paradoxo lógico-teológico, o Paradoxo da Onipotência. Sua formulação mais recente deve-se ao filósofo australiano J.L. Mackie, e pode ser parafraseada assim:
Um ser onipotente pode criar agentes genuinamente livres?
Se a resposta é “não”, então o ser não é onipotente, porque há algo que ele é incapaz de fazer; se “sim”, então ele também não é onipotente porque, ao criar um agente genuinamente livre, ele está criando algo que não tem o poder de controlar.
Certo?
Desigualdade de Bell
Mecânica quântica é um domínio especialmente frustrante para o jornalismo científico: não importa o quanto os resultados desse campo sejam relevantes, fundamentais ou universais (o funcionamento da tela do seu computador, por exemplo, é um fenômeno quântico), dificilmente haverá espaço suficiente no jornal para explicar a coisa toda direito.
Somando-se isso às vastas hordas de charlatães que se aproveitam de distorções dos conceitos desse campo para faturar alto, o resultado é desolador. Não é de se estranhar, portanto, que um resultado recente da física quântica, importante tanto conceitual quanto tecnologicamente, tenha passado quase em branco: a detecção de uma violação da desigualdade de Bell num circuito macroscópico.
Desembaraçando os polissílabos, isso quer dizer que uma daquelas propriedades malucas dos fenômenos quânticos (tipo, o resultado da medição depender da forma como a observação é realizada) foi comprovada num sistema grande o bastante para ser visto a olho nu.
Isso é importante porque representa (mais) uma prova de conceito de que os computadores quânticos podem ser viáveis na prática (afinal, você não vai querer na sua casa um computador que só pode ser consertado se o técnico tiver um microscópio de elétrons, certo?).
O resultado está na Nature de 24 de setembro.
Mas a alma da coisa, ao menos para mim, não é a possibilidade tecnológica, e sim a tal da violação da Desigualdade de Bell. Essa violação representa um choque filosófico tão grande quanto foram a Relatividade ou os Teoremas de Gödel, mas recebeu muito menos atenção do público em geral.
A desigualdade em si é bem simples, e representa uma afirmação bastante corriqueira sobre propriedades de conjuntos.
Imagine o conjunto de todos os blogueiros do Science Blogs Brasil. Agora, divida-o em três subconjuntos não mutuamente excludentes (digamos, os blogueiros com mais de 60 quilos, os blogueiros vegetarianos e os blogueiros do sexo feminino).
Agora, vamos chamar o primeiro conjunto de Q, o segundo de V, e o terceiro, F. E vamos adotar a convenção de que “()” significam “número de”. Assim, (Q) significa “o número de blogueiros com mais de 60 quilos”. E “~” significa a ausência de uma propriedade. Assim, V ~F representa o conjunto de blogueiros vegetarianos que não são mulheres.
Ainda comigo?
O que a Desigualdade de Bell diz é que:
(Q ~V)+(V ~F) >= (Q ~F).
Ou: o total de blogueiros com mais de 60 quilos de ambos os sexos, excluindo-se os vegetarianos, mais o total de blogueiros vegetarianos, menos as mulheres que porventura mantenham esse tipo de dieta, é maior ou igual que o total de blogueiros com mais de 60 quilos que não são mulheres.
Isso pode não parecer, assim, lá muito autoevidente, mas se você pensar um pouco vai concluir que a relação expressa na desigualdade é uma verdade lógica tão necessária quanto, digamos, A ou ~A.
Pior: que é válida para qualquer sistema de três subconjuntos não mutuamente excludentes de um conjunto maior. No conjunto dos brasileiros, por exemplo, Q, V e F poderiam ser o total de eleitores do Lula, o total de torcedores do Náutico e o total de loiros de olhos azuis, respectivamente.
Na mecânica quântica, no entanto, a desigualdade é consistentemente violada.
Não está chocado ainda?
Repetindo: um fato lógico necessário, uma propriedade intrínseca dos conjuntos, simplesmente não se aplica quando esses conjuntos representam propriedades de partículas subatômicas. Experimento após experimento, a proporção prevista por pura lógica não se confirma na prática. (Aqui há um tutorial animado sobre o assunto).
Isso é quase como dizer que foi descoberto um canto do universo onde 2+2=23.765.982.
Uma explicação possível pra a violação é que as partículas, em princípio, não pertencem a nenhum subconjunto, não até que sejam medidas. Como uma caixa onde haja, digamos, coisas quadradas, coisas vermelhas e coisas de plástico, mas onde cada objeto só assume as características de cor, forma e material quando é retirado de lá.
(Advertência: ao contrário do que o seu guru quântico favorito pode ter dito, “medição” não é o mesmo que “observação por uma entidade consciente”. O contato com um fóton pode muito bem contar como uma medição, mesmo que não haja nenhum olho na vizinhança para captar o fóton; sim, a árvore cai faz barulho ao cair, mesmo sem ninguém pra ouvi-la)
Outras explicações envolvem comunicação acima da velocidade da luz, envio de sinais para o passado ou a divisão do universo em multiversos cada vez que uma medição é feita. Ou alguma outra coisa.