Questão jurídica
Alguém poderia me explicar por que a Justiça brasileira, principelmente em primeira instância, tende a tratar a liberdade de expressão como um direito de segunda categoria? Sentenças como a proibindo o jogo Counter Strike, várias decisões recentes mandando jornalistas calar a boca, iniciativas do Ministério Público contra RPGs… e a biografia não-autorizada do Roberto Carlos, claro… são os casos que em ocorrem agora.
Muitas vezes a explicação que vem é de que a liberdade de expressão não é um direito absoluto (o que deveria ser, mas aí já seria querer muito da “Cidadã”…), já que é relativizada, na Constituição, pelos direitos, por exemplo, à honra, imagem e reputação. Mas por que os juízes nunca fazem o raciocínio do outro jeito: honra, imagem e reputação não são direitos absolutos, já que relativizados pela liberdade de expressão?
Reconhecimento de padrões
Acho que a esta altura todo mundo já sabe que o “Pé-Grande” (ou “homem cagando”, ou “mulher agachada”) de Marte é, na verdade, uma pedrinha de nada. De qualquer forma, aqi vai um desafio: localizar o ponto exato da imagem enganosa no panorama original feito pelo Spirit.
O fenômeno de encaixar uma forma visual aleatória num esquema pré-concebido é conhecido como pareidolia, e faz parte do equipamento cognitivo da espécie: como já dise alguém, o australopiteco que ficava em dúvida sobre se aquela sombra era um leopardo ou só uma sombra tinha bem menos a perder se saísse correndo.
Pareidolia, no entanto, é parte de um fenômeno mais geral, o de reconhecimento de padrões, que atua em outras esferas além da visual. E ao qual se soma outra peça da nossa caixa de ferramentas cognitiva, o viés de confirmação.
Por exemplo: tempos atrás, cientistas deram a voluntários uma seqüência de números (2, 4, 6). Pediram-lhes que teorizassem sobre qual a regra por trás da escolha dos dígitos, e que testassem a teoria, propondo novas seqüências. A cada proposta, os cientistas respondiam “serve” ou “não serve”.
A resposta “serve” deixava os voluntários convencidíssimos de que haviam encontrado a regra certa – digamos, só números pares. Mas estavam errados.
Eles erraram por causa do viés de confirmação, a tendência de buscar só os dados que confirmem nossos preconceitos e esperanças, e fugir de tudo que os desmentem. No caso da idéia de que a regra seria “números pares”, ninguém pensou em testar números ímpares antes de acreditar ter matado o problema.
O viés explica a persistência de superstições e tem um papel também na política e na publicidade. Como escapar dele? O melhor é fazer como Carl Sagan, que quando lhe perguntavam “nas suas entranhas, o que você acha que é certo?”, respondia: “Não penso com as entranhas”.
Quanto aos números, a regra certa era: qualquer grupo de três, desde que em ordem crescente.
Superstições, só as de pedigree
A miss Stéphanie Conover não poderá ser uma das juradas do concurso de beleza Miss Toronto Turismo por gostar de “bruxaria”, informou nesta segunda-feira a organização do evento.
(…)
A organização do evento afirmou que a “leitura do tarô e do reiki (uma prática originada no Japão) fazem parte do oculto e não é aceitável por Deus, os judeus, muçulmanos ou cristãos”. (EFE)
‘Todos o homens são criados iguais…’
Em um comentário a uma postagem anterior, Patola (um dos meus dois leitores assíduos!) ponderou que a idéia da Tábula Rasa — de que todas as pessoas nascem como “páginas em branco”, a serem peenchidas pela educação e pelo meio — acaba sendo defendida por reflexo, em círculos ligados às humanidades, como uma espécie de ficção útil, necessária para manter o edifício dos direitos humanos em pé.
E, de fato, um dos documentos fundadores da noção moderna de direito humano, a Declaração de Independência dos Estados Unidos, diz, textualmente: “Todos os homens são criados iguais e dotados, pelo Criador, de certos direitos inalienáveis…”
Isso parece ancorar a idéia de direito humano em dois pressupostos: (a) igualdade total no nascimento e (b) outorga por um Poder Superior.
É preciso, porém, pôr esses conceitos me contexto. A revolução americana foi uma revolta republicana contra a aristocracia, uma classe que, de fato, apoiava seus privilégios na idéia de superioridade por nascimento.
É evidente que, entre os dois pressupostos — algumas pessoas nascem indiscultivelmente superiores só porque são fruto de determinada família ou raça, versus todas nascem iguais — a verdade está mais próxima do segundo.
Mas, mesmo se isso não fosse verdade: acho que foi Isaac Asimov que certa vez ponderou: suponha que uma parcela da raça humana seja, de fato, menos inteligente, menos trabalhadora, menos capaz de desenvolvimento que outra. Da onde concluir que, por causa disso, os mais capazes devem acumular privilégios para si e oprimir os menos afortunados?
De lugar nenhum. Mesmo se os pressupostos aristocráticos (ou, para dar o devido nome aos bois, racistas) fossem verdadeiros, a aristocracia e o racismo continuariam a ser imorais.
Então, não precisamos da Tábula Rasa para inferir os direitos humanos.
Quanto ao Poder Superior, há o bom e velho dilema de Sócrates (via Platão): os deuses amam o que é direito, ou as coisas são direitas por que os deuses as amam?
Se o primeiro, então a noção de direito é inata e nã precisa ser ditada; se o segundo, então a moralidade é como a moda, escrava de caprichos que vêm “de cima”, tortura e genocídio são perfeitamente morais, desde que feitos em nome do Deus Verdadeiro.
E o troféu vai para…?
‘Inquisição secularista’
Em artigo na edição desta segunda-feira de O Estado de S. Paulo, o porta-voz brasileiro do Opus Dei, Carlos Alberto Di Franco, queixa-se das manifestações contra o papa na Universidade de Roma, levantando brados contra uma suposta onda de intolerância secularista (ei, só porque não queremos que nossas vidas sejam controladas por um punhado de superstições medievais?) e, no fim, compara o manifesto anticlerical dos cientistas italianos a uma “inquisição”.
A comparação é tão chocante que quase dispensa comentário — ele está tentando igualar séculos de violência institucional a um bando de moleques carregando cartazes e a uma carta aberta assinada por 67 professores?
Alguém precisa explicar pra esse cara que existe uma diferença entre grafitar paredes e cometer tortura e assassinato em escala industrial.
Tábula Rasa, Dualismo e Frankenstein
A oposição de alguns acadêmicos ao projeto de estudar o funcionamento do cérebro de jovens homicidas parece mais uma reafirmação de três velhos mitos.
O primeiro é o da tábula rasa — de que o ser humano nasce como uma “folha em branco”, e que tudo que faz, todos os erros que comete e todos os méritos que possa ter são fruto do meio em que vive e de suas relações com outras pessoas.
Essa visão, além de cientificamente frágil (como já bem mostrou Steve Pinker) deixa aberta a curiosa questão de da onde, afinal, vêm as condições ambientais e os comportamentos das pessoas que determinam o conteúdo de cada mente originalmente vazia.
O segundo é o mito do dualismo: de que os fenômenos “mentais” são diferentes dos fenômenos “físicos” de algum modo essencial; que é impossível (reducionista) descrever, ou mesmo correlacionar, o que se passa no espírito com o que ocorre no corpo. Quem diz isso, é óbvio, nunca ficou corado (e nem, por falar nisso, teve ou presenciou uma ereção).
O terceiro, e pior, é o mito de Frankenstein: de que há coisas que é melhor não saber. Tipo: se descobríssemos que todas as pessoas de olhos castanhos e que têm pêlos nas orelhas são (digamos) homicidas em potencial, isso levaria a gulags, limpeza étnica, injustiças por atacado… logo, é melhor ignorarmos esse tipo de informação!
Como portador de ambas as características, eu talvez me sentisse tentado a concordar com o raciocínio, mas a objeção ignora, claro, que o conhecimento disponível e o que a sociedade decide fazer com ele são coisas distintas. Não foi a ciência que apagou Hiroshima do mapa, foi o governo de Harry S. Truman. E ignora, ainda, o fato de que, quando é preciso tomar uma decisão, é sempre bom ter o máximo possível de informação relevante a respeito.
Como disse o ganhador do Nobel Peter Medawar, a missão da ciência é criar a oportunidade de tornar real tudo o que for possível. O que vamos fazer com as oportunidades que surgirem é uma questão cabeluda, mas abrir mão da missão é covardia, na melhor das hipóteses — ou obscurantismo, na pior.
‘Journal’ criacionista
Os Três Porquinhos e o islã
Papa pede menos sensacionalismo na mídia
“Além disso, a fim de atrair os ouvintes e aumentar sua audiência, eles (os meios de comunicação) não hesitam, algumas vezes, em lançar mão da vulgaridade e da violência, ultrapassando os limites”, disse Bento XVI, segundo a Reuters.
Esse cara andou lendo o Velho Testamento recentemente?
O milagre do milagre
Sempre achei curiosa a deferência com que a mídia trata os anúncios de milagres reconhecidos pelo Vaticano, os tais que podem levar este ou aquele beato a virar santo. Afinal, quando um guru indiano afirma que uma estátua do deus-elefante Ganesh está bebendo leite, a notícia sai, se sair, como uma curiosidade tola, ao lado da cabra de duas cabeças e da mais recente bebedeira de Mel Gibson.
Já quando uma autoridade católica anuncia um milagre, o assunto não só migra para as páginas mais nobres, como o tratamento, longe de ser crítico, oscila entre o neutro e o reverente. Por quê?
Nas faculdades de jornalismo, ensina-se que, entre os critérios para definir o que é notícia estão o número de pessoas interessadas na questão e a proximidade entre o público e o fato. Esses critérios explicam o maior espaço dado aos santos católicos: o catolicismo é a segunda maior religião do mundo (atrás do islã), e ainda predomina no Brasil.
Nada disso dá conta, porém, da reverência.
Existe um argumento muito elegante, do filósofo David Hume (1711-1776), que diz, resumidamente, o seguinte: o que parece mais impossível: a pessoa que narra o milagre estar enganada (ou mentir) ou o fato ter acontecido como ela diz? Na dúvida, é sempre mais prudente optar pela “impossibilidade” menor.
Jornalistas já aplicam um princípio parecido às promessas dos políticos. Só a religião é que parece imune.
No caso dos processos de canonização, nem é preciso chegar à filosofia. Basta estatística. No geral, esses “milagres” são curas, ditas inexplicadas – adjetivo que, numa manobra retórica não exatamente honesta, vira, muitas vezes, “inexplicáveis” – e, portanto, atribuídas, na falta de coisa melhor, a orações para o beato em questão.
Agora, comunidades católicas geralmente lançam grandes campanhas pela canonização de seus beatos favoritos. Isso põe centenas, milhares ou, até, milhões de pessoas, com problemas diversos, rezando para o candidato.
Num escala dessas, alguém obter uma “graça milagrosa” não é mais difícil do que alguém ganhar na loteria. É a chamada lei dos grandes números: se uma coisa tem 0,01% de chance acontecer, ela ocorrerá, por puro acaso, mais um menos uma vez a cada dez mil tentativas.
Claro, pessoas religiosas estão livres para chamar o acaso de milagre, se lhes aprouver. O que não é certo é o jornalista passar adiante uma afirmação de fé como se fosse uma confirmação de fato. Há, afinal, o risco de Ganesh aparecer para exigir tratamento igual…