O verdadeiro valor da Mega Sena
Quando a Mega Sena acumula, o número de apostas sobe. Isso faz sentido: basicamente, mais pessoas passam a acreditar que a relação custo/benefício (no caso, o preço da aposta vesus o prêmio potencial) torna-se aceitável.
Intuições pessoais a parte, é possível calcular, com precisão matemática, o momento em que apostar na Mega Sena passa a ser um “bom negócio”: isso ocorre quando o prêmio em jogo, multiplicado pela probabilidade de ganhar, supera o custo da aposta.
Na Mega Sena do último sábado, por exemplo, o prêmio acumulado era de R$ 52 milhões; o custo da aposta, R$ 1,25; a probabilidade de se fazer a sena, cerca de 1/50 milhões. Fazendo as contas, o preço justo de uma aposta seria R$ 1,03. Quem apostou pagou R$ 0,22 a mais do que a oportunidade valia.
Mais do que valia a oportunidade de se ganhar sozinho, aliás: e não há garantias de que isso venha a acontecer. O prêmio de sábado, por exemplo, foi dividido entre dois apostadores.
Existe, claro, achance de se fazer uma quadra ou uma quina, então talvez valesse a pena levar em conta esse dado ao calcular o preço justo da aposta. A quina do último sábado pagou R$ 18 mil, para uma probabilidade de 1/154 mil; a quadra, R$ 251, para uma probalididade de 1/2 mil. A sena, como foi dividida em dois apostadores, ficou em R$ 26 milhões.
Passando os números pelo moedor, o valor real de um bilhete da Mega Sena acumulada que correu no sábado é de (1/50 milhões)x(R$ 26 milhões)+(1/154 mil)x(R$ 18 mil)+(1/2 mil)x(R$ 251). Isso dá R$ 0,75, para um bilhete com seis dezenas do concurso 990 (se tentarem lhe vender um, não pague mais do que isso).
O prêmio justo que um apostador racional deveria esperar acumular antes de comprar um bilhete da Mega Sena – supondo que se vá ganhar a bolada sozinho – teria de ser da ordem de R$ 90 milhões.
Agradecendo à sorte
Os estágios do laicismo
A questão da laicidade do Estado vem causando controvérsia recentemente, não só pela questão das células-tronco aqui no Brasil, como por declarações recentes do papa e, até, reflexos na eleição presidencial americana.
Mas, afinal, onde está o problema? Junto com o voto universal e a liberdade de expressão, o laicismo do Estado é um dos pilares da democracia moderna. Então, para quê tantas queixas?
Parafraseando Wittgenstein, o problema lavez esteja numa questão de linguagem — o meu “laicismo” pode não ser o seu. Para tentar clarificar a questão, proponho uma “escala de laicismo”, meio inspirada na Escala Kardashev de civilizações extraterrestres:
Laicismo Tipo I
O Estado não impõe ostensivamente religião a ninguém. Essa é a forma mais restrita, e provavelmente é a que está em prática em todo o mundo hoje, incluisive nas teocracias, no sentido de que policiais armados não invadem as casas das pessoas no Irã (ou no Vaticano) para forçar os cidadãos a se ajoelhar diante do Alcorão (ou da Bíblia). Mesmo esse grau “consensual” de laicidade, no entanto, é uma conquista relativamente recente.
Laicismo Tipo II
O Estado não faz distinções de natureza religiosa entre os cidadãos — o que equivale a dizer que o Estado não impõe, veladamente, a religião a ninguém. Afinal, mesmo que homens armados não forcem ninguém a se ajoelhar diante de livros sagrados, se quem não se ajoelha for considerado inelegível ou impedido de prestar testemunho, o efeito pode ser o mesmo. Este é o grau que já aparece ausente nas teocracias: é preciso ser católico para compor a Guarda Suíça do Vaticano, e é preciso ser um aiatolá para fazer partre do Conselho Supremo do Irã.
Laicismo Tipo III
O Estado não impõe comportamentos de natureza fundamentalmente religiosa a seus cidadãos. Este parece ser um grau comum às democracias ocidentais — onde ninguém é forçado, por lei, a andar de burca, a deixar crescer a barba, a usar turbante — mas, no Brasil, por exemplo, a lei obriga a observação de feriados religiosos e pune comportamentos como destruir imagens religiosas em público (como no caso do malfadado “chute na santa“). Aqui há espaço para polêmica: a proibição do aborto e do casamento gay, por exemplo, é fundamentalmente religiosa? Se for, trata-se de mais uma prova de que o Brasil, e parte razoável do mundo ocidental, falha em atingir esse nível de laicismo.
Laicismo Tipo IV
Valores, metas e princípios de natureza religiosa tornam-se irrelevantes para o debate de políticas públicas. Este grau, mais extremo, simplesmente nega, ao fenômeno cultural da religião, um lugar na arena das decisões de Estado. Se uma pessoa ou grupo quiser que suas idéias sejam levadas em consideração, ele/ela deve formulá-las em termos seculares, com base em evidências e argumentos lógicos que estejam embasados em premissas de aceitação comum, e não particulares de sua religião ou apoiadas em fé.
E então:
Minha impressão é de que as pessoas que se incomodam com o “avanço do laicismo” na verdade se sentem inconformadas com os tipos III e IV, e aceitam os tipos I e II como “males menores”, já que impõem barreiras ao surgimento de teocracias favorecendo a religião dos outros.
Mas, afinal, o que há de errado nos tipos III e IV? O tipo III apenas define uma dimensão de liberdade — quem não é judeu ortodoxo pode trabalhar aos sábados, mulheres não-muçulmanas não precisam usar véu. O tipo IV pode soar meio sacrílego (religião, irrelevante?), mas ele simplesmente pede que os religiosos tentem argumentar para além do princípio de autoridade, o que os católicos até tentaram fazer, um pouco, no caso das células-tronco.
No fim, quanto mais radical o laicismo, maior a liberdade do indivíduo: liberdade da violência religiosa direta (tipo I), liberdade da violência religiosa institucional (tipo II), liberdade para agir segundo a própria consciência (tipo III), liberdade para discutir, criticar, debater e cobrar argumentos (tipo IV).
A pergunta, então, deixa de ser quem se incomoda com o laicismo e passa a ser: quem se incomoda com a liberdade?
Esporte e violência
Continuando em minha busca de esclarecimento sobre a relação (se alguma) entre prática esportiva e “caráter” (outra coisa de que preciso é de uma boa definição de caráter…) encontrei esta simpática página na internet, do Center for Sport Policy and Conduct , da Universidade de Indiana (EUA).
Muitos dos links encontrados na página já não funcionam mais, porém. No entanto, descobri um site governamental na Austrália sobre assédio sexual na prática esportiva — ainda não é exatamente o tema de foco aqui, mas não deixa de ser curioso que a preocupação tenha assumido esse tipo de destaque. E por que na Austrália?
Marte & Marte
Taí: parece que o ambiente de Marte já foi amigável para a vida como a conhecemos, mais ou menos na mesma época em que a vida começava na Terra. Óquei, ainda não é a bactéria marciana em pessoa (ou em fóssil), mas dá o que pensar.
O engraçado é que a notícia surge bem no momento em que descubro as aventuras de Eric John Stark, uma espécie de mistura de Tarzan com Conan, o Bárbaro, mas que atuava num sistema solar pré-corrida espacial, com beduínos em Marte, selvas em Vênus e todo o resto. Há uma ressonância emocional curiosa entre o Marte de Stark e o Marte real — mesmo equivocada na ciênca, esteticamente a autora de Stark, Leigh Brackett, acertou em cheio: trata-se de um mundo seco, impiedoso, frio, mas cheio de paisagens impressionantes.
Os bárbaros, dinossauros e as princesas de tanga fazem falta, mas e daí? Não se pode ter tudo…
Aliás, a biografia de Brackett diz que, nos anos 70, ela teve de mudar o cenário das aventuras de Stark para um planeta extra-solar, já que o velho sistema solar das aventuras originais tinha se tornado “inaceitável” para os editores, por conta das descobertas científicas da época.
O que a mim, ao menos, parece uma pena: e daí que o Marte de Stark não é o Marte do mundo real? Aventura é aventura, ciência é ciência. Misturar os dois é uma opção perfeitamente válida (e gera obras magníficas como, por exemplo, os romances de Greg Egan), mas não devia ser obrigatório.
Teste de astrologia
As análises de audiência deste blog indicam que a minha postagem sobre astrologia é uma das mais populares, então resolvi faturar um pouco mais em cima do tema, sem muito esforço. Daí, com vocês, James Randi:
Esporte forma o caráter?
Eis aí uma afirmação que, embora esteja entranhada no senso comum, sempre contradisse minha experiência pessoal (diversos comportamentos que poderiam facilmente ser vistos como sinais de mau caráter, do consumo de substâncias ilícitas à prática de “bullying”, sempre tiveram incidência maior nos times de basquete e futebol das escolas que freqüentei) e, claro, os informes da mídia a respeito de inúmeros casos de doping e da vida privada (ou nem tanto) de atletas-celebridades.
O problema, claro, é que as três fontes de informação citadas no parágrafo acima — “senso comum”, “experiência pessoal” e “informes da mídia” — têm baixa significância, para dizer o mínimo. Então, como testar a hipótese?
Grandes massas de estatística envolvendo crime e consumo de drogas, como as do Departamento de Saúde dos EUA e do FBI não têm um corte dos dados quanto à prática esportiva.
Depois de fuçar um pouco na internet, encontrei um livro sobre o assunto, Adolescent Worlds: Drug Use and Athletic Activity, que tem uma tabela indicando que 42% dos adolescentes praticantes de esportes de competição e 54% dos participantes de esportes recreativos consumiam maconha, contra 69% dos não-esportistas.
Esse dado parece confirmar o senso-comum, ao menos se associarmos consumo de drogas à nossa noção de mau-caráter, mas ainda é muito pouco (entre outras razões, a pesquisa descrita no livro tem um universo muto limitado).
Ainda não encontrei um cruzamento de dados entre prática esportiva e comportamento violento. Alguém teria mais informação a respeito? No Snopes, achei um “debunking” da idéia de que a violência doméstica é maior em dias de SuperBowl.
Hóstia roubada e obscurantismo medieval
(Não está claro se os católicos se opuseram mais ao uso da palavra “maldito” ou a “biscoito”)
Mas o ponto para o qual eu gostaria de chamar atenção é o verdadeiro estupro da lógica e do bom senso presente na doutrina católica da transubstanciação, segundo a qual cada hóstia consagrada é, de fato, o corpo de Jesus Cristo. Veja bem: não é que a hóstia simboliza ou representa Cristo. Ela é, na verdade, um pedaço de carne humana, que só parece ser um pedaço de pão.
Essa doutrina é, talvez, o exemplo mais claro de como a teologia é capaz de manipular palavras e distorcer significados até reduzir tudo a um amontoado de sons e marcas no papel que, embora tenham um sentido familiar, na verdade expressam conceitos totalmente diversos dos esperados. É o equivalente lógico de insistir que um saco de açúcar cheio de pimenta na verdade contém açúcar porque, afinal, é um saco de açúcar.
No caso da transubstanciação, essa versão medievla da novilíngua orwelliana se vale da velha distinção aristotélica entre “acidente” e “substância”. Em linhas gerais, trata-se de uma distinção que faz sentido: madeira é madeira (substância) mas pode ser usada para fazer portas, cadeiras, carroças (acidentes). Assim, substância é o que a coisa é; acidente é a forma que ela assume.
Aqui também é interessante notar a distinção platônica entre essência e aparência: uma cadeira, por exemplo, é essencialmente uma superfície para sentar, com apoio para as costas (sem o apoio, seria um banquinho). As diversas cadeiras possíveis, com seus vários materiais, cores, estofados, número de pernas, formatos, etc., partilham da mesma essência, digamos, cadeiral, mas divergem em aparência.
No caso da hóstia, o dogma católico diz que, embora mantenha todos os acidentes e aparências de um, para citar o professor americano, “maldito biscoito”, uma vez consagrada ela passa a ter a substância e a essência do corpo de Jesus Cristo.
Agora, pense um pouco no que isso significa: que todas as características do biscoito — cor, cheiro, sabor, massa, descendo até a estrutura molecular — não passam de meros detalhes, acidentes, aparências. Se levarmos a transubstanciação a sério, teremos de concluir que o conjunto total das propriedades mensuráveis de um objeto, ou de um ato, não nos permite dizer o que ele de fato é.
Assim, eu poderia olhar para um cachorro e dizer que ele é, em essência, um transatlântico. Ou cometer um homicio e dizer que, em essência, fiz um arranjo floral. Ou corromper o Congresso Nacional e dizer que a substância do que fiz foi impor a ética na política.
Neil DeGrasse Tyson
O professor Neil DeGrasse Tyson é um astrônomo e popularizador da ciência, na linha aberta por Carl Sagan décadas atrás. Não sei se seus livros de divulgação científica já foram traduzidos no Brasil mas, dado meu natural pessimismo, creio que não. Abaixo, vídeo de uma palestra sua, recomendada, nada mais, nada menos, que pela coluna semanal de James Randi:
(Se o “embed” não estiver funcionando, o link direto para o Google Videos está aqui)
Stanford e a PM do Rio
O que a morte do garoto João Roberto Amorim Soares, de 3 anos, e o escândalo da prisão de Abu Ghraib, no Iraque, têm em comum? Para começo de conversa, ambos os casos envolvem abuso de poder por parte de autoridades armadas contra cidadãos indefesos (mesmo supondo que os presos de Abu Ghraib fossem guerrilheiros ou terroristas, uma vez presos e desarmados eles estavam indefesos).
Mas, o mais interessante é que, no dois casos, as autoridades responsáveis por impor a disciplina aos agentes armados do Estado responsáveis pelo malfeito se saíram com a mesma desculpa — a chamada hipótese da maçã podre (“HMP”, pra encurtar), pela qual a corporação em si é boa, o que ocorre é que algumas pessoas más eventualmente acabam se infiltrando nela e seduzindo/arregimentando colegas de personalidade fraca. Linha de defesa semelhante, aliás, foi adotada pela igreja católica em meio aos escândalos de pedofilia.
A HMP, no entanto, é altamente problemática, como demonstrou o infame Experimento da Prisão de Stanford, realizado em 1971 pelo psicólogo Philip Zimbardo. Nesse experimento, um grupo de estudantes universitários — e estamos falando dos anos 70, com o movimento hippie, as passeatas pacifistas, etc. — foi transformado em um bando de sádicos fascistas, ao receber a tarefa de atuar como guardas de prisão.
Encapsulando o resultado do experimento em uma frase, Zimbardo costuma dizer que descobriu que a HMP deveria dar lugar ao efeito barril podre: “a idéia de que a ambientação social e o sistema contaminam o indivíduo, e não o contrário”.
Isso não significa que não existam maçãs podres por aí, mas que é preciso, também, identificar os barris podres. E se existe um candidato sério a “barril podre” no Brasil, trata-se das polícias, principalmente das polícias militares. Quem não se lembra, por exemplo, do caso da Favela Naval, em São Paulo? Há algum tempo, a revista Piauí publicou o depoimento de um professor de Educação Física que quase foi morto porque, pilotando uma moto, ergueu o dedo médio para um carro que vinha atrás com farol alto — e o carro era de polícia.
Ah, sim: reconhecer que há “barris podres” não significa isentar indivíduos de culpa ou deixar de puni-los; a impunidade, afinal, é uma das coisas que faz apodrecer o barril.