Arquivo diários:13 de junho de 2017

Os achados do Marrocos e as novas raízes da espécie humana (e por que é comum que a ciência se reconstrua)

Na Paleontologia e na Biologia Evolutiva, a evolução humana é um dos assuntos mais populares e, ao mesmo tempo, mais polêmicos. Não poderia ser diferente, afinal trata-se do nosso ramo na árvore da vida. Se por um lado, a evolução humana atrai a curiosidade dos sedentos por ciência, por outro, atrai reações menos amistosas dos negadores da ciência. Para aqueles que negam o fato de nossa ancestralidade em comum com todos os outros organismos do planeta, é uma afronta se deparar com a história mais próxima desta relação de parentesco. É uma afronta se deparar com o fato de que há uma íntima relação de parentesco dos humanos com os símios sem rabo, como o chimpanzé, o bonobo, o gorila, o orangotango ou o gibão.

Relações evolutivas dos Hominidae viventes. Da esquerda para a direita: Pongo pygmaeus (orangotangos), Gorilla gorilla (gorilas), Homo sapiens (humanos), Pan troglodytes (chimpanzés) e Pan paniscus (bonobos). Fonte: Nature, 2012.

Por conta disso, são comuns perguntas como: “se os humanos vieram dos macacos, por que não vejo um macaco dar a luz a seres humanos?”. Por mais absurdo que pareça este questionamento, ele é comum em um país como o Brasil, onde existem muitos analfabetos científicos. Muitos brasileiros estão acostumados a explicar seus eventos rotineiros com base em misticismo (vide a quantidade de pessoas que acredita em horóscopos e afins). Por conta disso, a ciência precisa urgentemente ser popularizada, se tornar acessível. No que concerne o assunto principal deste texto, é importante esclarecer sobre uma pergunta tão difundida, pois ela apresenta em sua formulação um desconhecimento da Biologia Evolutiva. É provável que as pessoas que façam esta pergunta se refiram a macacos atuais, e que muitas delas pensem que Darwin defendia que os chimpanzés eram os ancestrais dos humanos. No entanto, o surgimento de uma espécie não é instantâneo, ele comumente leva de décadas a milhares de anos (é certo que quando o ciclo de vida de um organismo é curto, como com bactérias ou mesmo moscas das frutas, o tempo de especiação é bem menor). E nós humanos não descendemos dos chimpanzés, ou dos gorilas ou de nenhum outro macaco atual. Nós possuímos ancestrais em comum com os macacos atuais, e se formos voltando no tempo, encontraremos ancestrais em comum com outros mamíferos, ancestrais em comum com os répteis e aves, ancestrais em comum com qualquer tetrápode, ancestrais em comum com qualquer vertebrado, com qualquer animal, com qualquer eucarioto, com qualquer organismo. Dentre estes ancestrais, o nosso ancestral mais recente é também ancestral dos chimpanzés e dos bonobos.

Comparado aos dias de hoje, na época em que Darwin publicou “A Origem das Espécies”, haviam poucos dados que suportassem a ideia de que os humanos fossem relacionados aos símios sem rabo (embora já existissem muitos dados de diversas outras relações de parentesco da árvore da vida). Hoje, o registro fóssil é extremamente rico e evidencia este fato com robustez. Não obstante, a cada nova descoberta que muda o rumo da história, surgem os negadores da ciência argumentando que a Biologia Evolutiva é falha ao explicar seus fatos, porque põe por terra o que antes havia construído. Recentemente, novos fósseis de humanos foram descobertos no Marrocos, fósseis que trazem duas principais contribuições para mudar o rumo da história. A primeira delas é sua idade, datada em 300 mil anos, muito mais antiga do que os 195 mil anos, dos mais antigos fósseis de humanos até então descobertos na Etiópia. A segunda novidade é sua localização, fora do leste africano, o palco principal da evolução humana, e onde se acreditava ter surgido nossa espécie. Nas postagens das notícias veiculadas nas redes sociais, por conta dos dois artigos publicados no periódico Nature (vide os links ao final), fica evidente que não são poucos os negadores da ciência em nossa país (fiz o não recomendado para qualquer notícia, li muitos comentários). Por que é falho o argumento de que estes achados mostram uma fragilidade do fato da evolução humana, simplesmente por mudarem o rumo da história?

Fósseis recém descobertos no Marrocos dos primeiros humanos (esquerda) comparados a humanos atuais (direita). O crânio daqueles é levemente alongado se comparado ao nosso. Fonte: Nature, 2017.

É falho porque os novos fósseis apenas apontam uma origem mais antiga e uma maior dispersão dos primeiros humanos, não são uma prova contrária a nossa ancestralidade em comum com os símios sem rabo. A Paleontologia até então apresentava evidências de que nossa espécie tinha surgido mais recentemente do que mostram estes fósseis, mas é corriqueiro que a medida em que novos fósseis sejam descobertos, que algumas datas de eventos importantes sejam modificadas. O registro fóssil não é completo, é uma pequena página de tudo o que ocorreu. A maioria da história se perdeu, mas aquela que ficou registrada traz robustez à Biologia Evolutiva. A evolução é um fato suportado por um registro fóssil que é falho, mas que mesmo assim, indubitavelmente, é uma forte evidência.

O sítio onde foram descobertos os fósseis do Marrocos. Acredita-se que foi uma antiga caverna ocupada pelos primeiros humanos. Fonte: Nature, 2017.

Os livros não deixarão de apresentar o fato da evolução humana, mas modificarão o que contam sobre nossa espécie. Ela parece ter não apenas o leste africano como berço, mas uma região mais ampla da África. De certa maneira, isto não deve ser encarado de forma tão surpreendente, pois nós somos uma espécie que colonizou o globo todo. Esta propensão já estava presente em nossas raízes, nos primeiros momentos da existência do Homo sapiens. Estes primeiros momentos parecem ter sido anteriores ao que acreditávamos. Também não há nada tão surpreendente nisso, uma página desconhecida do livro da vida foi lida. E ela continua nos contando que surgimos de um ancestral comum aos símios sem rabo e que fomos nos tornando diferentes, bípedes, com significativo aumento do cérebro e glabros, e agora que nossa humanidade possui raízes que alcançam além do leste africano que são mais profundas, chegando até cerca de 300 mil anos atrás. Não é difícil atualizar o conhecimento que está nos livros, é difícil leva-lo para além dos livros, difundi-lo em um país onde cada vez mais a ciência parece ameaçada. No entanto, não há melhor arma do que continuar a propagar, continuar a popularizar. A ciência deve ser para todos, de forma que todos compreendam, sem qualquer surpresa, que a ciência se reconstrói a todo o momento.

Para saber mais, leia os artigos publicados na Nature:

On the origin of our species.

Oldest Homo sapiens fossil claim rewrites our species’ history.