Arquivo diários:19 de setembro de 2017

Carlotta Joaquina Maury, Princesa dos fósseis do Brazil

Carlotta Joaquina Maury (1874-1938), paleontóloga americana;

Seguir uma carreira cientifica sempre foi um desafio  para as mulheres. Ter uma carreira cientifica é só o primeiro passo. Nossas colegas sofrem problemas de aceitação pelos colegas homens, via de regra são preterida para cargos mais importantes, e em geral possuem remuneração menor.

Ser pioneira numa carreira cientifica, portanto,  sempre foi um grande desafio.  É necessário muitas vezes mais trabalho e mais atitude que o normal para conseguir a mesma coisa que um colega homem. As pioneiras não tem vida fácil.

A paleontóloga americana Carlotta Joaquina Maury (1874 – 1938) foi uma destas pioneiras. Durante sua carreira, Carlotta fez contribuições fundamentais na paleontologia e na estratigrafia do Período Terciário, trabalhando com moluscos fósseis. Também trabalhou com fósseis do Brasil, tendo realizado estudos importantes em diversas bacias sedimentares.

Carlotta era a quarta filha do reverendo Mytton Maury e de Virginia Draper. Carlotta Joaquina recebeu seu nome de sua avó materna, Carlota Joaquina de Paiva Ferreira. Carlota Joaquina Ferreira era  uma dama da corte portuguesa, que casou no Rio de Janeiro com o médico britânico Daniel Gardner (Saiba mais aqui).

A família Maury era uma família de cientistas. Um primo de Carlotta,  Matthew Fontaine Maury (1806-1873) foi um importante geógrafo americano. Seu avô materno John William Draper (1811-1882) foi um físico notável, tendo inclusive contribuído com os primórdios da fotografia. A irmã mais velha de Carlotta, Antônia Caetana Maury (1866-1952), foi astrônoma, tendo trabalhado com Henry Pickering no grupo de mulheres que identificou cerca de 10.000 estrelas.

O reverendo Maury era também um geógrafo amador, tendo publicado a revista “Maury´s Geographical Series” entre 1875 e 1895. Sua mãe, Virginia Draper, tinha talentos artísticos, e influenciou fortemente os filhos para a carreira científica. Carlotta cresceu neste meio, tendo sido natural a sua atração pela paleontologia.

Carlotta estudou no Radcliffe College, na Universidade de Columbia, tendo sido uma das primeiras mulheres a estudar na instituição. Obteve seu PhD em 1902 na Universidade Cornell, em Ithaca, Nova Iorque. Esteve também entre as primeiras mulheres a se tornarem doutoras em Cornell

Logo após seu doutorado, Carlotta foi professora em diversas universidades. Entre elas, trabalhou como assistente em Colúmbia nos Estados Unidos. Mas sua maior experiencia como professora foi no Huguenotte College e na University of the Cape of Good Hope, na África do Sul. Nunca conseguiu trabalhar como professora em Cornell, onde fez seu PhD.

Neste período estavam surgindo as primeiras  pesquisas com microfósseis. O estudo destes pequenos organismos, obtidos através de sondagens profundas para petróleo, provocou uma verdadeira revolução na paleontologia. Logo que Carlotta começou a trabalhar com microfósseis,  foi convidada para trabalhar como consultora pela indústria do petróleo. Pelo resto de sua vida, seu trabalho esteve ligado à pesquisa aplicada para as companhias petrolíferas.

Carlotta Maury no Laboratório de Paleontologia em Cornell (NY), data desconhecida (Arnold, 2014)

Em 1911 Carlotta fez parte de uma expedição à Venezuela, patrocinada pela General Asphalt Company. Em 1916 ela mesmo liderou a sua própria expedição para a República Dominicana. Essa foi uma das primeiras expedições cientificas lideradas por mulheres, o que quebrou inúmeros paradigmas.

Num período de intensa violência política na ilha caribenha, a expedição cientifica liderada por Carlotta fez um importante trabalho de levantamento e catalogação de fósseis. Este trabalho, publicado em diversos periódicos, tornou-se referência na área de moluscos terciários. Alguns destes trabalhos ainda estão à venda na Amazon (Deixe Jeff Bezos mais rico aqui).

Por volta de 1920,   Carlotta Joaquina Maury começou a sua colaboração com o Serviço Geológico Geológico e Mineralógico do Brasil (SGMB). Sua primeira ligação com o SGMB veio através de seu primeiro diretor, o geólogo americano Orville Derby (1851-1915).  Como Carlotta, Derby também estudou em Cornell, o que também deve ter facilitado o contato entre ambos.

Carlotta Joaquina Maury era uma paleontóloga já bastante reconhecida por seu trabalho com moluscos terciários quando começou a trabalhar com o SGMB. Para o Serviço Geologico, no entanto, a especialização de Carlotta nunca foi considerada.  Seu contato do SGMB, o geólogo Luciano Jacques de Moraes, lhe enviava fósseis de quaisquer tipos e procedências.

Carlotta nunca recusou as encomendas, e obrigou-se a trabalhar com espécimes e idades que lhe eram desconhecidas. Para isso, nunca deixava de recorrer a seus colegas especialistas. Com resultado, ela realizou diferentes trabalho com estratigrafia desde o siluriano até o pleistoceno, trabalhando com faunas as mais diversas possíveis.

A principal contribuição de Carlotta Joaquina Maury à geologia brasileira foi a publicação “Fosseis Terciarios do Brazil com Descripção de Novas Formas Cretaceas “(Maury, C. J. 1924–1925). Neste trabalho, Carlotta relaciona inúmeras espécies de moluscos do litoral nordestino, realizando a correlação estratigráfica destas faunas com faunas similares do Caribe e do Golfo do México. Para Carlotta, os fosseis terciários brasileiros eram o centro original a partir dos quais deriva a fauna caribenha.

Para explicar a dispersão de fósseis em diversos continentes, Carlotta usava a teoria das “Pontes Continentais“. As tais  “Pontes Continentais” eram elevações do fundo do oceano, altas o suficiente para permitir a passagem de animais e plantas  de um continente para outro.  Antes da aceitação da teoria da deriva continental proposta por Alfred Wegener, as “pontes continentais” eram a principal explicação para o fenômeno.

As pontes continentais eram a explicação para a dispersão geográfica de especies por oceanos profundos; na figura estão representadas as pontes continentais mais aceitas no tempo de Wegener ( e de CJ Maury…)

Carlotta Joaquina Maury foi uma extraordinária paleontóloga e estratígrafa, tendo obtido  reconhecimento e respeito por seus pares. Tinha a reputação de ser extremamente eficiente e enérgica. Em geral, cumpria os prazos que lhe eram dados com presteza e dedicação. Com tudo isso, não é de estranhar que tenha sido uma das primeiras consultoras independentes trabalhando com as empresas petrolíferas.

Capa de uma publicação de CJ Maury sobre os fósseis do Nordeste brasileiro (1934)

Da mesma forma, tinha uma condição econômica privilegiada, o que facilitou as decisões que tomou ao longo de sua vida.

No entanto, como diversas mulheres cientistas de seu tempo, Carlotta Joaquina Maury precisou abdicar de sua vida pessoal para ter uma carreira cientifica. Para a paleobotânica americana  Winifred Goldring (1888-1971), as cientistas mulheres podiam combinar vida pessoal e carreira “somente em casos excepcionais“. A irmã de Carlotta, Antônia Caetana Maury, influente astrônoma, também teve uma vida celibatária.

Carlotta também não foi bem sucedida em sua carreira como professora, sempre assumindo papeis subordinados. Nos Estados Unidos, conseguia ser somente assistente. O magistério superior só lhe foi permitido em locais distantes, como a Africa do Sul.

No entanto, sua energia e sua força, aliada a seu grande conhecimento cientifico, lhe trouxe reconhecimento ainda em vida.  O fato de ter se mantido durante tanto tempo sempre com encomendas das companhias petrolíferas e dos Serviços Geológicos mostra isso.

Carlotta também era uma profissional que não tinha medo de campo. Sempre que possível, estava coletando fosseis e fazendo trabalhos de pesquisa longe dos laboratórios. A expedição para São Domingos, que liderou, foi também um exemplo. Ela tinha energia e auto-estima para realizar expedições sem esperar por autorização de chefes e colegas.

Moluscos Mesozoicos no livro de Maury (1934)

Quanto ao Brasil, embora nunca tenha estado aqui, Carlotta também deixou sua marca. Seus trabalhos sobre a paleontologia e estratigrafia de diversas bacias sedimentares brasileiras são ainda de grande valor cientifico. Seu trabalho para o SGMB foi sem duvida muito importante.

Sua morte veio em 1938, após uma longa doença que só a abateu nos momentos finais. No ano seguinte, o geólogo C.A. Reeds  publicava o Memorial de Carlotta Joaquina Maury  nos anais da Sociedade Geologica Americana, louvando seu papel como grande conhecedora das faunas terciárias do golfo do México, Venezuela e Brasil.

Apesar de ter nome de rainha, Carlotta foi uma cientista. E das boas. Da mesma forma, embora não tenha nunca ocupado tal papel, seu nome e sua energia nos fazem pensar em Carlotta não como rainha, mas como uma princesa.

Carlotta Joaquina, Princeza dos fósseis do Brazil .

PARA SABER MAIS:

Arnold, Lois. “The Education and Career of Carlotta J. Maury: Part 1.” Earth Sciences History 28.2 (2009): 219-244.

Arnold, Lois. “The Education and Career of Carlotta J. Maury: Part 2.” Earth Sciences History 29.1 (2010): 52-68.

Aldrich, Michele. “Women in paleontology in the United States 1840-1960.” Earth Sciences History 1.1 (1982): 14-22.