Artefatos que importam: a estela de Tel Dan

Continuando a nossa série “Artefatos que importam”, eu vos apresento a estela de Tel Dan — a única indicação arqueológica de que um rei chamado David pode mesmo ter existido há cerca de 3.000 anos.
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Descoberta em caquinhos durante as escavações da antiga cidade de Dan, no extremo norte de Israel, a estela (basicamente um poste de pedra, pra quem não conhece a terminologia) foi datada de meados do século IX a.C. e porta uma inscrição em aramaico. A língua era usada na região nessa época por causa das invasões sírias, que arrancaram fatias gordas do território israelita.
A inscrição está fragmentada, e a tradução dela exige certa reconstrução probabilística. Ao que parece, de qualquer maneira, o texto fala das vitórias dos reis arameus (sírios) de Damasco sobre os reis israelitas. E aí vem o pomo da discórdia: a frase (inteirinha nos pedaços que chegaram até nós) “BIT DWD” (lembre-se, esse pessoal não usava vogais pra escrever).
A interpretação mais provável é mesmo “casa de David”, ou seja, a dinastia fundada pelo lendário rei em Jerusalém uns 150 anos antes de a estela ser erigida. Alguns pesquisadores mais céticos, porém, levando em conta outras interpretações do trio de letras, questionam a ideia. Muita tinta ainda vai rolar a esse respeito enquanto dados mais conclusivos não vierem à tona.

Monoteísmo e política

Enquanto não dou um jeito de pilotar um post novo decente, gostaria de direcionar a atenção do gentil leitor ao interessantíssimo texto no blog do professor Osame Kinouchi, velho amigo e leitor, seja na era G1, seja por aqui.
Trata-se de uma análise muito legal dos aspectos políticos e sociais, e não apenas religiosos, que estão embutidos nos textos bíblicos. Parte das conclusões são especulativas, outras andam sendo questionadas — como a associação do Gênesis à época de Salomão — mas vale muito a leitura.

Ceticismo bíblico, parte 1: Eclesiastes

Ecclesiastes.jpgDepois de passar algumas (várias) semanas no olho do furacão do jornalismo científico, finalmente arranjei um tempinho para dar início à minha tão propalada série bíblica aqui no blog. Promessa é dívida: “o que você jurar, cumpra”, como diz o autor do livro que é o primeiro da nossa lista de céticos israelitas. Falo de Koheleth, ou, se você preferir a tradução grega do apelido, o Eclesiastes.
Tanto em hebraico (língua original do livro de Eclesiastes) quanto em grego, a palavra significa algo como “o sujeito que reúne, que monta um conjunto” – “Eclesiastes” tem a mesma origem do grego ekklessía, “assembleia”. O problema é saber o que nosso amigo Koheleth reunia, afinal: alguns acham que a palavra se refere à reunião de pessoas mesmo, como nas assembleias das cidades-Estado gregas; outros apontam que a reunião é de provérbios, sermões e ditos sábios, os quais compõem o livro. Claro que os dois sentidos não são autoexcludentes.
Presente em qualquer Bíblia, seja ela católica, protestante ou judaica, o Eclesiastes tem uma série de características interessantes que sugerem que ele foi escrito tardiamente se comparado ao resto do Antigo Testamento (uma data em torno de 400 a.C. ou pouco depois talvez seja um bom chute).
A gramática do texto não é lá muito castiça, e há duas palavras de origem persa no livro, pardes (“jardim”, origem da nossa palavra “paraíso”) e pitgam (“sentença”). Ora, a influência cultural persa só começou a se fazer sentir no fim do século VI a.C., quando a Pérsia conquistou todo o Oriente Médio antigo. Por isso mesmo, embora o Koheleth se identifique na primeira pessoa como “filho de David, rei em Jerusalém”, tudo indica que se trate de outro traço comum dos livros bíblicos tardios: a pseudoepigrafia, uma espécie de ghost-writing. No caso, o autor bíblico assume o manto de um grande personagem do passado para ressaltar sua autoridade — até porque não havia mais reis no que restou do território israelita durante o domínio persa.
Vento, vento, vento
Depois desse breve cenário, vamos ao que interessa: conteúdo. Uma palavrinha hebraica, hevel (algo como “ar”, “vento”, “sopro”), é a chave para se entender o pensamento cético e pessimista do misterioso Koheleth. Traduzida às vezes como “vaidade” ou “futilidade”, hevel é, para o autor, o sinal da impossibilidade do homem de achar algum grande padrão ou ordem nos acontecimentos cósmicos.
Nesse ponto, o Koheleth diz coisas que não ficariam deslocadas na boca de um deísta — ou seja, um sujeito que até acha que Deus criou as leis do Universo, mas que depois disso deixou basicamente a natureza seguir seu curso sem interferências. Esses ritmos naturais são imutáveis, diz ele no capítulo 1:
“Só acontecerá/O que já aconteceu/Só ocorre/O que já ocorreu/Não há nada de novo/Debaixo do Sol!”
Mais do que isso, em vários pontos o Koheleth parece desafiar um dos pressupostos fundamentais da religião israelita mais tradicional: a ideia de que Deus basicamente recompensa os bons e pune os maus. O mundo real é muito mais complicado, diz o autor:
“E eis outra frustração: o fato de que a sentença imposta pelos atos maus não é executada rapidamente, e é por isso que os homens têm coragem de fazer o mal — o fato de que um pecador pode fazer o mal cem vezes, e ainda assim sua punição é adiada (…) Pois o mesmo destino aguarda a todos: ao justo e ao injusto; ao bom e ao puro, e ao impuro; ao que sacrifica [a Deus] e ao que não sacrifica; ao que é agradável e ao que é desagradável (…) Essa é a coisa mais triste em tudo o que acontece debaixo do Sol: o mesmo destino aguarda a todos.”
O bicho homem
Alguns especialistas no estudo do texto bíblico sugerem que o Koheleth escreveu sua obra numa época em que a religião judaica estava começando a adotar a crença na imortalidade da alma e em recompensas ou punições depois da morte, sob influência dos persas e, mais tarde, dos gregos. O autor do livro, no entanto, é categórico: a morte é o fim — uma visão mais antiga que parece ter predominado entre os autores dos livros bíblicos anteriores. Ele diz que a diferença entre humanos e animais, nesse sentido, é pequena, ou até inexistente:
“Então eu decidi, no que diz respeito aos homens, não compará-los a seres divinos, mas encarar o fato de que eles são animais. Pois, em relação ao destino do homem e o destino do animal, eles têm o mesmo destino: como um deles morre, assim também morre o outro, e ambos têm o mesmo hálito vital; o homem não tem superioridade em relação ao animal, uma vez que ambos de nada valem. Ambos vão para o mesmo lugar; ambos vêm do pó e para o pó retornam.”
Diante desse pessimismo todo, será que é o caso de cortar os pulsos? Não, diz o Koheleth. O homem tem de se conformar com sua pequenez e aproveitar, sempre que possível, o que a vida tem de melhor:
“Vá, coma seu pão em contentamento, e beba seu vinho em alegria; pois sua ação foi há muito tempo aprovada por Deus. Que suas roupas estejam sempre lavadas, e que na sua cabeça nunca falte perfume. Desfrute a felicidade com uma mulher que você amar todos os dias de sua vida que lhe forem concedidos debaixo do Sol (…) O que quer que esteja em seu poder fazer, faça-o com toda a sua capacidade. Pois não há ação, nem raciocínio, nem aprendizado, nem sabedoria no Sheol [a região dos mortos para os israelitas antigos, parecida com o Hades grego], que é para onde você vai.”
Portanto, se eu fosse resumir numa única frasezinha grudenta o conteúdo do Eclesiastes, acho que parafrasearia a famosa campanha dos ônibus ateus: “Provavelmente existe um Deus, mas nunca dá pra saber se e quando Ele vai intervir nos assuntos humanos; então, pare de se preocupar e aproveite a vida”.
Mas hein?
O mais curioso de toda essa história é que, embora os organizadores anônimos da Bíblia hebraica tenham aceitado colocar esse livro cético na lista dos considerados inspirados por Deus, eles também parecem ter tentado “domesticar” o significado dele, ao menos em parte.
Alguns parágrafos no último capítulo do Eclesiastes parecem ter sido acrescidos por um editor e basicamente desdizem as afirmações mais perturbadoras do autor original. A probabilidade de eles serem de um autor secundário é alta porque eles aparecem logo depois de uma fala que espelha exatamente a abertura do livro, quase como um refrão. Os autores antigos costumavam usar essa estrutura em espelho, ou “inclusio”, para fechar seu raciocínio. A frase final quebra essa unidade, dizendo:
“O resumo do tema, no fim das contas, é: reverencie a Deus e observe seus mandamentos! Pois isso se aplica a toda a humanidade: que Deus pedirá contas de toda criatura por todas as coisas desconhecidas, sejam elas boas ou más.”
Essa mensagem se encaixa perfeitamente com a visão tradicional da religião israelita, mas tem pouco a ver com o pensamento iconoclasta do Koheleth.
——
O nosso próximo cético bíblico é o autor do livro de Jó, também no Antigo Testamento. Não percam!

Um crucificado chamado… João

Para marcar a Sexta-Feira Santa, achei que seria legal apresentar a vocês a única evidência arqueológica do tipo de crucificação praticado pelos romanos na Palestina do século I. Conheçam Yehohanan ben Hagakol (João, filho de Hagakol) — ou o que sobrou dele, pelo menos.
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Sabemos o nome e o “sobrenome” de Yehohanan porque o osso do calcanhar visto acima, atravessado por um grosso cravo de ferro, foi achado dentro de um ossuário, uma espécie de “caixão secundário” (servia para abrigar os ossos após algum tempo numa sepultura convencional), em Giv’at Ha-Mivtar, nas cercanias de Jerusalém. O ossuário continha uma inscrição identificando o morto. Os restos mortais foram achados em 1968 e analisados por Nicu Haas, antropólogo da Escola Médica da Universidade Hebraica de Jerusalém.
yehohanan2.gifO escritor judeu Flávio Josefo, que participou da primeira grande revolta contra Roma que terminou com a destruição da cidade e do Templo de Jerusalém no ano 70 d.C., diz que os legionários se divertiam crucificando os prisioneiros das maneiras mais esdrúxulas possíveis, e o pobre Yehohanan parece ser um exemplo disso. A posição do cravo no osso do calcanhar é tal que provavelmente as pernas estavam presas de lado no madeiro, como na reconstrução ao lado. A árvore usada para fabricar a cruz foi identificada como uma oliveira, o que provavelmente indica que o condenado estava pregado a pouca distância do chão, talvez até no nível do rosto do “público” da execução.
As pernas de Yehohanan estavam quebradas, o que pode indicar dano intencional pelos executores como forma de acelerar a morte do condenado — sem o apoio dos membros inferiores, ficaria muito difícil para um crucificado continuar respirando na posição em que estava na cruz.
Seja como for, o destino do coitado pode até ser considerado relativamente sortudo. Os dados históricos sobre a prática da crucificação indicam que o mais comum era deixar o corpo do criminoso ser consumido por aves de rapina e cães. No máximo, o que sobrava era jogado numa vala comum. É por isso que muitos historiadores duvidam da narrativa tradicional do enterro de Jesus nos Evangelhos — dificilmente Pilatos permitiria que alguém como ele tivesse uma sepultura digna. O caso de Yehohanan, mesmo assim, indica que isso não era impossível.

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