Artefatos que importam: a inscrição de Behistun

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“Por isto Ahuramazda deu-me auxílio, e todos os outros deuses que existem: por que não fui perverso, nem mentiroso, nem um tirano, nem eu nem ninguém de minha família. Governei de acordo com a justiça.”
Então tá, seu Dario I, o Grande (549 a.C.-486 a.C.). A afirmação pode ser verdade ou mentira, mas não se pode negar que o terceiro Grande Rei da Pérsia deixou para trás um monumento e tanto de seu poderio com a inscrição de Behistun, cravada na pedra da montanha de mesmo nome no oeste do atual Irã.
Gravada em babilônio, elamita (idioma do Elam, no sul do Iraque) e persa antigo, o texto acompanha um baixo-relevo em tamanho natural de Dario, pisoteando um inimigo caído (possivelmente o suposto “mago impostor” Gaumata; já explico) e recebendo outros rebeldes derrotados e escravizados.
Pegadinha do Smérdis
Coisa de conquistador, claro, mas a história que as inscrições e as imagens contam é sensacionalmente rocambolesca. Dario era membro da família real persa, mas apenas um parente distante de Ciro, que criou o império no século VI a.C. Após a morte de Cambises, filho de Ciro, o trono passou para outro filho do primeiro rei, Smérdis. (É, que nome de Smérdis, não?).
É aqui que vem o pulo-do-gato: Dario, na inscrição (inteirinha em primeira pessoa), alega que o verdadeiro Smérdis foi morto e substituído por um impostor, o mago (membro da classe sacerdotal persa; é daí que vêm os “reis magos” dos Evangelhos) Gaumata. Revoltado, Dario se uniu a outros conspiradores, eliminou o mago falsário e restaurou a verdadeira família real persa.
Ou assim diz ele. A inscrição bate quase exatamente com o que conta o historiador grego Heródoto, no século V a.C., sobre a história persa, o que mostra que Heródoto, de fato, é um guia razoavelmente preciso sobre a Pérsia antiga. Os especialistas de hoje, porém, duvidam dessa trama de novela com rei falso e o diabo a quatro. Muitos desconfiam que Dario matou o verdadeiro Smérdis e, só mais tarde, teria inventado a história do mago sósia.
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Ceticismo bíblico, parte 2: Jó

jó.jpgDemorei tanto para continuar esta série aqui no blog que talvez vocês tenham até se esquecido do primeiro capítulo. (Para quem quiser refrescar a memória, eis o post sobre o Eclesiastes.) Grosso modo, minha intenção é demonstrar como a tradição bíblica não é monolítica: alguns textos fascinantes do Antigo Testamento apresentam uma veia questionadora poderosa, que lança dúvidas sobre alguns dos pressupostos mais caros à antiga religião israelita. Dessas obras, o livro de Jó provavelmente é a mais bela e desafiadora.
O livro de Jó é uma exploração desesperada (e às vezes desesperadora) da natureza do Mal em forma poética. Ou, para tomar emprestado o título de uma obra moderna sobre o mesmo tema, a pergunta central do livro é “por que coisas ruins acontecem com pessoas boas”.
Em certo sentido, a mera pergunta já é radical para a forma “ortodoxa” da antiga religião de Israel, ou do Levante antigo como um todo. Era generalizada a crença num sistema de retribuição moral simples, na base do um-para-um, no qual Deus ou os deuses recompensavam os bons e puniam os culpados. Ponto final.
No máximo, admitia-se que os descendentes dos justos (ou dos pecadores) poderiam ser “colocados na mesma conta” que os ancestrais, por assim dizer, o que se explica pela visão altamente coletiva das responsabilidades em sociedades tribais antigas. Além do mais, isso era visto como indício da benevolência divina: Deus “espalhava” sua benção por muitas gerações, o que comprovava sua generosidade, ou “diluía” sua raiva entre pais, filhos e netos, o que indicava sua leniência (afinal, mesmo os culpados não levavam na cabeça todo o peso da punição).
Arbitrariedade
E se alguém tão justo e correto quanto é possível ser humanamente passar por sofrimentos indescritíveis? Essa é a pergunta que o livro de Jó coloca. Como no caso de tantos livros bíblicos, não sabemos quem escreveu o texto hebraico que temos hoje, nem quando ele foi composto. Afinidades conceituais como obras proféticas tardias (como a presença da figura chamada de ha-satan, “o Adversário” — que pelo visto não é Satã ou o Capeta tal como o conhecemos, como explicarei melhor a seguir) sugerem uma versão final no período da dominação persa na Palestina, quem sabe entre 500 a.C. e 400 a.C.
Seja como for, há sinais de que o autor anônimo reaproveitou personagens e motivos muito antigos para criar sua obra filosófica. “Jó” é o nome de uma figura tradicionalmente conhecida por sua sabedoria e piedade, citada pelo profeta Ezequiel (século VI a.C.). O prólogo narrativo do livro, em prosa, tenta dar um clima arcaico, tipo “era uma vez”, à história, retratando Jó como uma espécie de sósia do patriarca Abraão: um magnata nômade, dono de uma imensa fortuna em ovelhas e camelos, vivendo na terra de Uz (nome poético para Edom, região do sul da Transjordânia).
Jó, portanto, não é um israelita, mas adora o verdadeiro Deus (muitas vezes chamado pelo epíteto arcaico de “Shaddai” no texto) e é, acima de tudo, extremamente ético, caridoso e religioso. Costuma oferecer sacrifícios a Deus em nome de seus filhos e filhas, tentando antecipar qualquer pecado que eles possam ter cometido sem que o pai soubesse. Não é de estranhar, portanto, que Deus o cubra de bençãos, dando-lhe todo tipo de riquezas e muita saúde.
E é aqui que a porca torce o rabo. Deus recebe regularmente em sua corte divina os relatórios dos “filhos de Deus” ou “seres divinos” (figuras equivalentes a anjos) sobre o estado das coisas aqui na Terra. E entre esses seres divinos está ha-satan, “o Adversário” — uma figura que atua como uma espécie de promotor público, ou chefe do FBI celestial. Deus elogia Jó para o Adversário e este responde que Jó só faz o bem porque é cumulado de vantagens pela bondade divina. Deus, então, permite que o Adversário retire de Jó tudo o que ele tem – primeiro os bens e a família e, num segundo ciclo de “aposta” entre ha-satan e o Senhor, também a saúde, deixando Jó coberto de chagas purulentas.
Poesia no meio
O engraçado é que poderíamos ter saltado diretamente desse prólogo em prosa para o epílogo, também em prosa, no qual Jó recebe de volta de Deus, em dobro, tudo o que havia perdido. A mensagem, nesse caso, seria simplesmente a de que Deus às vezes nos testa para saber se realmente praticamos o bem de forma desinteressada, mas sempre acabará nos recompensando se fizermos tudo direitinho.
O que estraga essa moral da história banal é a inserção, entre esses dois textos em prosa, de dezenas de capítulos formados por diálogos poéticos rebuscados e cheios de paixão. Esses diálogos correspondem aos debates entre o pobre Jó, arranhando suas feridas e desejando a morte, e três amigos que vêm visitá-lo e inicialmente querem consolar o coitado, Eliphaz, Zophar e Bildad. (Mais tarde aparece um quarto amigo, Elihu.) A conversa é encerrada com a aparição do próprio Deus, que também fala, de maneira exaltada e até violenta.
O ponto central desses diálogos é que o tempo todo os amigos de Jó defendem a visão tradicional sobre pecado, punição e sofrimento — dizendo “Jó, você e/ou seus filhos devem ter pisado na bola, por isso eles morreram e você está aí todo detonado” –, enquanto Jó continua afirmando que não fez nada para merecer tudo aquilo. Mais importante ainda, ele bate na tecla de que Deus é que está sendo injusto, de que Deus deixa que certas pessoas pratiquem o mal sem punição enquanto os justos sofrem. E, ao menos nesse caso, nós, como leitores, sabemos que Jó está certo, porque acompanhemos toda a aposta entre o Senhor e o Adversário no prólogo.
E quando Deus entra em cena? Será que explica tudo, finalmente? Nada disso. Numa extensa fala sobre as forças da Natureza e sobre o imenso poder necessário para domá-las exercido durante a criação do mundo, Deus apenas diz que nenhum ser humano chega perto dessa potência e, por isso, não tem direito de exigir explicações sobre como o Universo funciona. Mas o mais maluco vem agora. Depois desse discurso, Deus diz que está enraivecido contra os amigos de Jó e exige que eles façam — por meio de Jó — um sacrifício de expiação, “porque nenhum de vocês falou a verdade sobre mim, como fez meu servo Jó”. Como é que é??? Sim, é isso mesmo que Deus diz.
O texto, portanto, não tem medo de deixar pontas soltas e coisas sem explicação. É temerário tentar extrair uma moral da história de uma obra tão complexa e cheia de nuances poéticas, mas talvez o centro do que o livro de Jó quer dizer seja uma mensagem que mesmo um ateu não deveria desprezar. Sim, o Universo talvez não faça sentido; sim, talvez não haja justiça neste e em nenhum outro mundo; mas isso não desobriga os seres humanos de tentar fazer o que é certo. E a própria incerteza sobre a recompensa de fazer o que é certo é que torna a escolha correta algo com sentido.
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E não percam, em breve (sabe-se lá quando), o último capítulo da nossa saga cético-bíblica, com o livro de Ester!
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Artefatos que importam: a estela de Tel Dan

Continuando a nossa série “Artefatos que importam”, eu vos apresento a estela de Tel Dan — a única indicação arqueológica de que um rei chamado David pode mesmo ter existido há cerca de 3.000 anos.
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Descoberta em caquinhos durante as escavações da antiga cidade de Dan, no extremo norte de Israel, a estela (basicamente um poste de pedra, pra quem não conhece a terminologia) foi datada de meados do século IX a.C. e porta uma inscrição em aramaico. A língua era usada na região nessa época por causa das invasões sírias, que arrancaram fatias gordas do território israelita.
A inscrição está fragmentada, e a tradução dela exige certa reconstrução probabilística. Ao que parece, de qualquer maneira, o texto fala das vitórias dos reis arameus (sírios) de Damasco sobre os reis israelitas. E aí vem o pomo da discórdia: a frase (inteirinha nos pedaços que chegaram até nós) “BIT DWD” (lembre-se, esse pessoal não usava vogais pra escrever).
A interpretação mais provável é mesmo “casa de David”, ou seja, a dinastia fundada pelo lendário rei em Jerusalém uns 150 anos antes de a estela ser erigida. Alguns pesquisadores mais céticos, porém, levando em conta outras interpretações do trio de letras, questionam a ideia. Muita tinta ainda vai rolar a esse respeito enquanto dados mais conclusivos não vierem à tona.

Monoteísmo e política

Enquanto não dou um jeito de pilotar um post novo decente, gostaria de direcionar a atenção do gentil leitor ao interessantíssimo texto no blog do professor Osame Kinouchi, velho amigo e leitor, seja na era G1, seja por aqui.
Trata-se de uma análise muito legal dos aspectos políticos e sociais, e não apenas religiosos, que estão embutidos nos textos bíblicos. Parte das conclusões são especulativas, outras andam sendo questionadas — como a associação do Gênesis à época de Salomão — mas vale muito a leitura.

Ceticismo bíblico, parte 1: Eclesiastes

Ecclesiastes.jpgDepois de passar algumas (várias) semanas no olho do furacão do jornalismo científico, finalmente arranjei um tempinho para dar início à minha tão propalada série bíblica aqui no blog. Promessa é dívida: “o que você jurar, cumpra”, como diz o autor do livro que é o primeiro da nossa lista de céticos israelitas. Falo de Koheleth, ou, se você preferir a tradução grega do apelido, o Eclesiastes.
Tanto em hebraico (língua original do livro de Eclesiastes) quanto em grego, a palavra significa algo como “o sujeito que reúne, que monta um conjunto” – “Eclesiastes” tem a mesma origem do grego ekklessía, “assembleia”. O problema é saber o que nosso amigo Koheleth reunia, afinal: alguns acham que a palavra se refere à reunião de pessoas mesmo, como nas assembleias das cidades-Estado gregas; outros apontam que a reunião é de provérbios, sermões e ditos sábios, os quais compõem o livro. Claro que os dois sentidos não são autoexcludentes.
Presente em qualquer Bíblia, seja ela católica, protestante ou judaica, o Eclesiastes tem uma série de características interessantes que sugerem que ele foi escrito tardiamente se comparado ao resto do Antigo Testamento (uma data em torno de 400 a.C. ou pouco depois talvez seja um bom chute).
A gramática do texto não é lá muito castiça, e há duas palavras de origem persa no livro, pardes (“jardim”, origem da nossa palavra “paraíso”) e pitgam (“sentença”). Ora, a influência cultural persa só começou a se fazer sentir no fim do século VI a.C., quando a Pérsia conquistou todo o Oriente Médio antigo. Por isso mesmo, embora o Koheleth se identifique na primeira pessoa como “filho de David, rei em Jerusalém”, tudo indica que se trate de outro traço comum dos livros bíblicos tardios: a pseudoepigrafia, uma espécie de ghost-writing. No caso, o autor bíblico assume o manto de um grande personagem do passado para ressaltar sua autoridade — até porque não havia mais reis no que restou do território israelita durante o domínio persa.
Vento, vento, vento
Depois desse breve cenário, vamos ao que interessa: conteúdo. Uma palavrinha hebraica, hevel (algo como “ar”, “vento”, “sopro”), é a chave para se entender o pensamento cético e pessimista do misterioso Koheleth. Traduzida às vezes como “vaidade” ou “futilidade”, hevel é, para o autor, o sinal da impossibilidade do homem de achar algum grande padrão ou ordem nos acontecimentos cósmicos.
Nesse ponto, o Koheleth diz coisas que não ficariam deslocadas na boca de um deísta — ou seja, um sujeito que até acha que Deus criou as leis do Universo, mas que depois disso deixou basicamente a natureza seguir seu curso sem interferências. Esses ritmos naturais são imutáveis, diz ele no capítulo 1:
“Só acontecerá/O que já aconteceu/Só ocorre/O que já ocorreu/Não há nada de novo/Debaixo do Sol!”
Mais do que isso, em vários pontos o Koheleth parece desafiar um dos pressupostos fundamentais da religião israelita mais tradicional: a ideia de que Deus basicamente recompensa os bons e pune os maus. O mundo real é muito mais complicado, diz o autor:
“E eis outra frustração: o fato de que a sentença imposta pelos atos maus não é executada rapidamente, e é por isso que os homens têm coragem de fazer o mal — o fato de que um pecador pode fazer o mal cem vezes, e ainda assim sua punição é adiada (…) Pois o mesmo destino aguarda a todos: ao justo e ao injusto; ao bom e ao puro, e ao impuro; ao que sacrifica [a Deus] e ao que não sacrifica; ao que é agradável e ao que é desagradável (…) Essa é a coisa mais triste em tudo o que acontece debaixo do Sol: o mesmo destino aguarda a todos.”
O bicho homem
Alguns especialistas no estudo do texto bíblico sugerem que o Koheleth escreveu sua obra numa época em que a religião judaica estava começando a adotar a crença na imortalidade da alma e em recompensas ou punições depois da morte, sob influência dos persas e, mais tarde, dos gregos. O autor do livro, no entanto, é categórico: a morte é o fim — uma visão mais antiga que parece ter predominado entre os autores dos livros bíblicos anteriores. Ele diz que a diferença entre humanos e animais, nesse sentido, é pequena, ou até inexistente:
“Então eu decidi, no que diz respeito aos homens, não compará-los a seres divinos, mas encarar o fato de que eles são animais. Pois, em relação ao destino do homem e o destino do animal, eles têm o mesmo destino: como um deles morre, assim também morre o outro, e ambos têm o mesmo hálito vital; o homem não tem superioridade em relação ao animal, uma vez que ambos de nada valem. Ambos vão para o mesmo lugar; ambos vêm do pó e para o pó retornam.”
Diante desse pessimismo todo, será que é o caso de cortar os pulsos? Não, diz o Koheleth. O homem tem de se conformar com sua pequenez e aproveitar, sempre que possível, o que a vida tem de melhor:
“Vá, coma seu pão em contentamento, e beba seu vinho em alegria; pois sua ação foi há muito tempo aprovada por Deus. Que suas roupas estejam sempre lavadas, e que na sua cabeça nunca falte perfume. Desfrute a felicidade com uma mulher que você amar todos os dias de sua vida que lhe forem concedidos debaixo do Sol (…) O que quer que esteja em seu poder fazer, faça-o com toda a sua capacidade. Pois não há ação, nem raciocínio, nem aprendizado, nem sabedoria no Sheol [a região dos mortos para os israelitas antigos, parecida com o Hades grego], que é para onde você vai.”
Portanto, se eu fosse resumir numa única frasezinha grudenta o conteúdo do Eclesiastes, acho que parafrasearia a famosa campanha dos ônibus ateus: “Provavelmente existe um Deus, mas nunca dá pra saber se e quando Ele vai intervir nos assuntos humanos; então, pare de se preocupar e aproveite a vida”.
Mas hein?
O mais curioso de toda essa história é que, embora os organizadores anônimos da Bíblia hebraica tenham aceitado colocar esse livro cético na lista dos considerados inspirados por Deus, eles também parecem ter tentado “domesticar” o significado dele, ao menos em parte.
Alguns parágrafos no último capítulo do Eclesiastes parecem ter sido acrescidos por um editor e basicamente desdizem as afirmações mais perturbadoras do autor original. A probabilidade de eles serem de um autor secundário é alta porque eles aparecem logo depois de uma fala que espelha exatamente a abertura do livro, quase como um refrão. Os autores antigos costumavam usar essa estrutura em espelho, ou “inclusio”, para fechar seu raciocínio. A frase final quebra essa unidade, dizendo:
“O resumo do tema, no fim das contas, é: reverencie a Deus e observe seus mandamentos! Pois isso se aplica a toda a humanidade: que Deus pedirá contas de toda criatura por todas as coisas desconhecidas, sejam elas boas ou más.”
Essa mensagem se encaixa perfeitamente com a visão tradicional da religião israelita, mas tem pouco a ver com o pensamento iconoclasta do Koheleth.
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O nosso próximo cético bíblico é o autor do livro de Jó, também no Antigo Testamento. Não percam!

Diga ao povo que escrevo

Pessoal, uma nota rápida para agradecer os comentários e o apoio a respeito da temática bíblica e assemelhada por aqui. Vou começar a postar a respeito de vez em quando então, e tentarei começar com algo que pouca gente por aqui talvez conheça: os livros “céticos” (e quase ateus) do Antigo Testamento. Aguardem!

O jardineiro é Jesus

bompastor.jpgEstou com a mão coçando pra começar um experimento por aqui, mas não gostaria de fazer isso sem a benção — ou ao menos a anuência — de vocês. A questão é que se trata de um tema tabu, que já me rendeu alguns detratores: arqueologia bíblica (porque “arqueologia do Levante” ou “do Oriente Próximo Antigo” é meio cifrado demais, vamos combinar).
Os problemas quanto a essa temática são dois. Primeiro, não é segredo pra ninguém que, durante minha estada no G1, eu inventei a série “Ciência da Fé”, justamente para abordar esses temas. Sucesso de pública, sim; sucesso de crítica, nem tanto.
Bastou eu botar os pés para fora do G1 para perceber amigos e colegas que, no geral, gostavam do meu trabalho, dando graças aos céus pelo enterro da série. Um ou outro leitor dos textos do G1 também sugeria às vezes que a série fosse encerrada ou que eu fosse demitido (é, o pessoal é gente fina às vezes).
Nas entrelinhas ou nem tão nas entrelinhas, tais críticos diziam que tocar nesse tipo de tema era, na melhor das hipóteses, irrelevante e, na pior, picaretagem e/ou proselitismo disfarçado. Ou, resumindo numa frase: “Mas o Reinaldo é católico! Não vale”.
Imparcialidade imaginária
É, o Reinaldo é católico. E você é agnóstico — ou umbandista, ou zen-budista. Whatever. Vamos deixar de lado o fato de que o lide de várias das minhas reportagens vai diretamente contra o que eu “deveria” aceitar como dogma por causa da minha religião — tipo “Pedro foi o primeiro papa” (não foi, dizia a matéria) e “Maria não teve mais filhos depois de Jesus” (provavelmente teve, mostrava o texto). A questão é mais profunda.
Isso porque os temas que eu gosto de abordar nesse tipo de reportagem interessam, creio eu, a todos, independente da crença ou descrença de cada um.
E interessam no sentido de “mexem com os interesses de” todo mundo. Você pode ser ateu desde o berçário, mas, desculpe, não pode se dar ao luxo de ignorar a importância das origens de Israel, ou a busca pelo chamado “Jesus histórico”, para entender o mundo que nós temos nas mãos hoje. E, para temas que mexem tanto com tantas pessoas, todo mundo traz seus próprios vieses. (Em “Deus, um delírio”, por exemplo, há uma discussão muito legal sobre o “Jesus histórico”, mas Dawkins se deixa levar pelos vieses dele ao traçar suas conclusões. Desculpe, pessoal, mas viés é que nem bunda: todo mundo tem o seu. E não consegue simplesmente deixá-lo em casa antes de ir pro trabalho.)

Híbrido

OK, esse era o primeiro problema. O segundo é ao mesmo tempo mais e menos simples. Dá mesmo para encaixar todos esses temas debaixo da rubrica “arqueologia”? Não estaria eu hijacking sequestrando este blog com algo off-topic que foge do tema dele?
Como em quase tudo na vida, depende. Por exemplo: nós temos zero evidência arqueológica, material, direta, da vida de Jesus, por exemplo. Mas, e esse é um mas importante, qualquer reconstrução do passado usa evidência textual quando disponível.
Por isso, o trabalho do historiador e do arqueólogo se complementam. Tanto os vasos quanto os textos de Homero nos ajudam a traçar um retrato melhor da Grécia pré-clássica. Nesse sentido, reconstruir as origens de Israel não é diferente de estudar a arqueologia da Idade do Ferro no Levante em geral, e as origens do cristianismo são só um caso especial da arqueologia da Antiguidade Clássica tardia.
Bom, esse é o dilema que temos na mão. Vocês acham um sacrilégio e uma picaretagem eu abordar esses temas de vez em quando? Eles interessam a vocês? Qualquer feedback ajudará um bocado.

Um crucificado chamado… João

Para marcar a Sexta-Feira Santa, achei que seria legal apresentar a vocês a única evidência arqueológica do tipo de crucificação praticado pelos romanos na Palestina do século I. Conheçam Yehohanan ben Hagakol (João, filho de Hagakol) — ou o que sobrou dele, pelo menos.
yehohanan.jpg
Sabemos o nome e o “sobrenome” de Yehohanan porque o osso do calcanhar visto acima, atravessado por um grosso cravo de ferro, foi achado dentro de um ossuário, uma espécie de “caixão secundário” (servia para abrigar os ossos após algum tempo numa sepultura convencional), em Giv’at Ha-Mivtar, nas cercanias de Jerusalém. O ossuário continha uma inscrição identificando o morto. Os restos mortais foram achados em 1968 e analisados por Nicu Haas, antropólogo da Escola Médica da Universidade Hebraica de Jerusalém.
yehohanan2.gifO escritor judeu Flávio Josefo, que participou da primeira grande revolta contra Roma que terminou com a destruição da cidade e do Templo de Jerusalém no ano 70 d.C., diz que os legionários se divertiam crucificando os prisioneiros das maneiras mais esdrúxulas possíveis, e o pobre Yehohanan parece ser um exemplo disso. A posição do cravo no osso do calcanhar é tal que provavelmente as pernas estavam presas de lado no madeiro, como na reconstrução ao lado. A árvore usada para fabricar a cruz foi identificada como uma oliveira, o que provavelmente indica que o condenado estava pregado a pouca distância do chão, talvez até no nível do rosto do “público” da execução.
As pernas de Yehohanan estavam quebradas, o que pode indicar dano intencional pelos executores como forma de acelerar a morte do condenado — sem o apoio dos membros inferiores, ficaria muito difícil para um crucificado continuar respirando na posição em que estava na cruz.
Seja como for, o destino do coitado pode até ser considerado relativamente sortudo. Os dados históricos sobre a prática da crucificação indicam que o mais comum era deixar o corpo do criminoso ser consumido por aves de rapina e cães. No máximo, o que sobrava era jogado numa vala comum. É por isso que muitos historiadores duvidam da narrativa tradicional do enterro de Jesus nos Evangelhos — dificilmente Pilatos permitiria que alguém como ele tivesse uma sepultura digna. O caso de Yehohanan, mesmo assim, indica que isso não era impossível.

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