‘Vida’ versus ‘pessoa’
A melhor coisa no voto do ministro Carlos Ayres Britto no julgamento das células-tronco, na última quarta-feira, foi o modo minucioso com que ele desfez a desonesta confusão retórica criada pelos obscurantistas entre “pessoa humana” e “ser humano”.
Uma “pessoa” tem direitos; um “ser” pode tê-los ou não.
Para ser mais claro: imagine uma máquina detectora de humanidade, uma caixa preta que realize testes biológicos e genéticos em qualquer coisa colocada em seu interior e acende uma luz verde quando a “coisa” é humana, e vermelha, quando não.
Coisas que farão a luz verde acender: gotas de saliva, fios de cabelo, flocos de caspa, aparas de unha.
Podese argumentar que o embrião humano é diferente dessas “coisas” porque ele tem o potencial do desenvolvimento pleno em uma pessoa humana.
Trata-se de um ponto discutível sob vários ângulos — por exemplo, ser um brasileiro nato e maior de 35 anos, logo um presidente da República em potencial, não me dá o direito à proteção da Polícia Federal, como presidente de facto tem; e ainda: com o avanço da tecnologia, logo toda célula do corpo humano passará a ser um embrião em potencial — mas um ponto que nem vem ao caso no debate que se trava no STF, já que os embriões em discussão lá são os congelados e abandonados pelos genitores.
Um bom modo de pensar sobre o assunto é conceber criaturas não-humanas mas que tenham direito à vida. Inteligências alienígenas, computadores conscientes, coisas assim. Ou criaturas humanas sem esse direito: a placenta, que é um clone do feto; ou um cadáver com morte cerebral. O simples fato de que é possível pensar nessas entidades hipotéticas mostra que a identidade biológica humana não é necessária ou suficiente para gerar direitos.
Requer-se algo além. Talvez seja, como diz o filósofo Peter Singer, a capacidade de sofrer. Talvez seja a capacidade de criar. Mas só ter os cromossomos certos obviamente não basta.
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