Os estágios do laicismo

A questão da laicidade do Estado vem causando controvérsia recentemente, não só pela questão das células-tronco aqui no Brasil, como por declarações recentes do papa e, até, reflexos na eleição presidencial americana.
Mas, afinal, onde está o problema? Junto com o voto universal e a liberdade de expressão, o laicismo do Estado é um dos pilares da democracia moderna. Então, para quê tantas queixas?
Parafraseando Wittgenstein, o problema lavez esteja numa questão de linguagem — o meu “laicismo” pode não ser o seu. Para tentar clarificar a questão, proponho uma “escala de laicismo”, meio inspirada na Escala Kardashev de civilizações extraterrestres:
Laicismo Tipo I

O Estado não impõe ostensivamente religião a ninguém. Essa é a forma mais restrita, e provavelmente é a que está em prática em todo o mundo hoje, incluisive nas teocracias, no sentido de que policiais armados não invadem as casas das pessoas no Irã (ou no Vaticano) para forçar os cidadãos a se ajoelhar diante do Alcorão (ou da Bíblia). Mesmo esse grau “consensual” de laicidade, no entanto, é uma conquista relativamente recente.
Laicismo Tipo II

O Estado não faz distinções de natureza religiosa entre os cidadãos — o que equivale a dizer que o Estado não impõe, veladamente, a religião a ninguém. Afinal, mesmo que homens armados não forcem ninguém a se ajoelhar diante de livros sagrados, se quem não se ajoelha for considerado inelegível ou impedido de prestar testemunho, o efeito pode ser o mesmo. Este é o grau que já aparece ausente nas teocracias: é preciso ser católico para compor a Guarda Suíça do Vaticano, e é preciso ser um aiatolá para fazer partre do Conselho Supremo do Irã.
Laicismo Tipo III
O Estado não impõe comportamentos de natureza fundamentalmente religiosa a seus cidadãos. Este parece ser um grau comum às democracias ocidentais — onde ninguém é forçado, por lei, a andar de burca, a deixar crescer a barba, a usar turbante — mas, no Brasil, por exemplo, a lei obriga a observação de feriados religiosos e pune comportamentos como destruir imagens religiosas em público (como no caso do malfadado “chute na santa“). Aqui há espaço para polêmica: a proibição do aborto e do casamento gay, por exemplo, é fundamentalmente religiosa? Se for, trata-se de mais uma prova de que o Brasil, e parte razoável do mundo ocidental, falha em atingir esse nível de laicismo.
Laicismo Tipo IV

Valores, metas e princípios de natureza religiosa tornam-se irrelevantes para o debate de políticas públicas. Este grau, mais extremo, simplesmente nega, ao fenômeno cultural da religião, um lugar na arena das decisões de Estado. Se uma pessoa ou grupo quiser que suas idéias sejam levadas em consideração, ele/ela deve formulá-las em termos seculares, com base em evidências e argumentos lógicos que estejam embasados em premissas de aceitação comum, e não particulares de sua religião ou apoiadas em fé.
E então:
Minha impressão é de que as pessoas que se incomodam com o “avanço do laicismo” na verdade se sentem inconformadas com os tipos III e IV, e aceitam os tipos I e II como “males menores”, já que impõem barreiras ao surgimento de teocracias favorecendo a religião dos outros.
Mas, afinal, o que há de errado nos tipos III e IV? O tipo III apenas define uma dimensão de liberdade — quem não é judeu ortodoxo pode trabalhar aos sábados, mulheres não-muçulmanas não precisam usar véu. O tipo IV pode soar meio sacrílego (religião, irrelevante?), mas ele simplesmente pede que os religiosos tentem argumentar para além do princípio de autoridade, o que os católicos até tentaram fazer, um pouco, no caso das células-tronco.
No fim, quanto mais radical o laicismo, maior a liberdade do indivíduo: liberdade da violência religiosa direta (tipo I), liberdade da violência religiosa institucional (tipo II), liberdade para agir segundo a própria consciência (tipo III), liberdade para discutir, criticar, debater e cobrar argumentos (tipo IV).
A pergunta, então, deixa de ser quem se incomoda com o laicismo e passa a ser: quem se incomoda com a liberdade?

Discussão - 2 comentários

  1. Daniel disse:

    Essa escala de "estágios de laicismo" ficou muito legal.

  2. Moc disse:

    Obrigado, Daniel!Minha intuição é de que não dá pra assumir nem mesmo o nível mais básico -- o Tipo I -- e, ao mesmo tempo, encontrar argumentos consistentes para negar o avanço a sociedade rumo aos demais.

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