Um Vietnã por ano? Mesmo?

Acho que não há cristão (ou judeu, budista, ateu, muçulmano, pagão…) no Brasil que já não tenha sido golpeado na cabeça com a afirmação de que o trânsito em nosso país “mata a cada ano tanto quanto a guerra do Vietnã em toda a sua duração”. Não é que eu seja contra campanhas para tornar os motoristas e pedestres mais atentos e conscientes, mas uma boa causa não merece um mau argumento. E esse papo do Vietnã é um dos piores.
Sem entrar no mérito de que o argumento é de péssimo gosto, pois ignora solenemente os vietnamitas mortos (na casa dos milhões), concentrando-se apenas no número de americanos (cerca de 60 mil, entre mortos e desaparecidos em combate), destaco que a comparação traz, logo de início, uma marca característica da manipulação incorreta – às vezes, inescrupulosa – de dados: a comparação entre números absolutos que não oferece um dado proporcional que permita colocá-los em contexto.
Para ficar num exemplo bocó: a Lituânia teve 370 homicídios em 2000. Os EUA, 16 mil. Os EUA são mais violentos? Bom, a taxa de homicídio por 100 mil habitantes da Lituânia ficou em 10,22 e a dos EUA, em 5,53. Ao omitir as populações envolvidas e citar apenas o número bruto, corre-se o risco de causar uma impressão errada de risco.
Bom, pondo os dados do Vietnã em perspectiva: houve 60 mil militares americanos mortos/desaparecidos no Sudeste Asiático durante o conflito, de um total de 3,4 milhões envolvidos. Isso dá uma taxa de mortalidade de 1,74%.
E os dados do trânsito? Usando números de 2002 – o ano para o qual encontrei o relatório mais completo online – temos 54 mil casos de morte ou invalidez permanente causados por acidentes de trânsito, segundo o DPVAT. Então: 60 mil no Vietnã, 54 mil nas ruas e estradas. Parecido, não?
De jeito nenhum. A frota brasileira de veículos automotores, em 2002, era de 34 milhões de veículos, dez vezes mais que o total de americanos envolvidos no conflito do Sudeste Asiático. Mesmo supondo que cada veículo só transporte uma pessoa, em média, a taxa cai de 1,74% para 0,174%.
Mas, ei, até motocicletas andam com carona por aí. E boa parte da frota é composta de ônibus. Supondo uma média de 6 ocupantes por veículo (indo desde motos sem garupa até ônibus lotados com 40 passageiros, e sem levar em conta a multidão de pedestres), o número cai a 0,029%.
Reprisando: o risco de você morrer no trânsito no Brasil, ao longo de um ano, é pelo menos no máximo 1/60 do que seria se você fosse mandado para a guerra do Vietnã.
Então, podemos relaxar? Nananina.
Nos EUA, que têm uma população significativamente maior que a nossa, o total absoluto de mortes no trânsito é praticamente igual ao brasileiro – o que é evidência clara de que há coisas que poderíamos estar fazendo melhor. Mas assustar as pessoas com comparações sem sentido não é, obviamente, uma delas.

Discussão - 6 comentários

  1. Claudia Chow disse:

    Adoro ver esses números mágicos desvendados! 🙂

  2. Thiago disse:

    Números o que seria de nós sem eles ou como os usamos?
    Isso sem contar os genocídios do pacífista Gandhi...
    Vamo que vamo!!!

  3. Igor Santos disse:

    O que seria do mundo sem a matemágica?

  4. Alan disse:

    Discordo.
    Esse argumento não é para comparar onde se morre mais, ou para definir as chances que se tem de morrer em cada situação.
    É um argumento para quantificar quantas mortes acontecem no transito.

  5. cretinas disse:

    Oi, Alan!
    O problema é que a quantificação tenta estabelecer uma comparação entre o trânsito e a guerra, uma comparação que não se sustenta para além dos números brutos. Não se trata de uma simples quantificação, mas de uma tentativa de atribuir um significado ao número. E esse significado ("o trânsito brasileiro mata como uma guerra") não se sustenta.

  6. Alan disse:

    Entendi.
    Existe muito disso, não é? Coisas do tipo "x acontece tanto quanto y".
    Vou passar a prestar mais atenção.
    Valeu. 😉

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