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Compostos orgânicos extraterrestres e a origem da vida na Terra

Como a vida se iniciou na Terra ainda é um mistério que intriga diversos cientistas e curiosos por muito tempo na nossa história. Na década de 20, Aleksandr Ivanovich Oparin, bioquímico russo, criou uma teoria do surgimento dos primeiros compostos orgânicos nos primórdios da evolução do nosso planeta, período no qual quase não existia oxigênio livre na atmosfera, que contava com os gases dióxido de carbono (CO2), nitrogênio (N2), vapor de água (H2O), amônio (NH3) e metano (CH4). Neste contexto, com a influência da energia liberada por relâmpagos, estas moléculas foram desintegradas dando origem a compostos orgânicos um pouco mais complexos. A teoria de Oparin foi testada experimentalmente na década de 50 por Stanley Miller, químico americano, que conseguiu formar aminoácidos simples a partir de descargas elétricas em ambiente simulando as condições da teoria de Oparin.
Os compostos orgânicos previamente formados, com a ação das descargas elétricas e raios UV provenientes do Sol, foram desencadeando reações químicas que deram origem a moléculas como álcoois, açúcares, aminoácidos e cadeias de carbono. Posteriormente surgiram proteínas e polissacarídeos. Mais tarde estas moléculas, que ficaram concentradas nos mares, deram origem às formas mais primitivas do que se podia chamar de vida, os chamados coacervados.

Perspectiva artística de como era a atmosfera primitiva da Terra, ambiente no qual teriam se formado os primeiros compostos orgânicos (fonte: autor desconhecido).

Enquanto isso, fora da Terra…

Já faz um bom tempo que se é conhecido que no espaço são encontrados diversos compostos orgânicos, como pares de bases e aminoácidos. Em 2011, por exemplo, alguns astrônomos da Universidade de Hong Kong encontraram compostos orgânicos complexos (comparados até com carvão e petróleo) em várias partes do Universo, e sugeriram que esse tipo de composto pode não ser exclusividade de formas biológicas, podendo ser espontaneamente criados por estrelas.
Em setembro de 2016, a NASA divulgou a detecção de um bilhão de pares de bases de DNA (provindas de amostras levadas da Terra) em apenas uma semana, pela utilização de um mini-sequenciador de biomoléculas em uma estação espacial, provando que é possível o sequenciamento de material genético em condições fora da Terra. Isto significa mais um importante passo para a possibilidade de detectar estes tipos de compostos em exoplanetas, por exemplo.
Mas uma notícia recente, de fevereiro de 2017, foi ainda mais animadora: foram detectados diversos compostos orgânicos, carbonatos e argilas em Ceres, o maior corpo entre o cinturão de asteroides que fica entre Marte e Júpiter, também considerado um planeta anão. Estes compostos, detectados por espectroscopia na região do infravermelho e do visível, foram mapeados em torno de uma cratera localizada no hemisfério Norte do pequeno planeta. Os compostos orgânicos encontrados possuem comprimentos de onda característicos de grupos metil (CH3-) e metileno (-CH2-).

Imagem da cratera mapeada na superfície do planeta anão Ceres, onde a coloração vermelha alcançada pela utilização de filtros espectrais combinados se refere à matéria orgânica. Fonte: NASA.

E como podemos relacionar esta descoberta com a origem da vida na Terra?

Em outubro de 2003, um trabalho publicado na revista Science mostrou que um experimento envolvendo a utilização de argila (no caso, montmorillonita) aumentou a tendência de ácidos graxos (que compõem os lipídios que formam as membranas das células) de formar membrana de camada dupla, além de induzir a formação de cadeias de RNA, moléculas que contém informação genética para a transcrição de proteínas. De acordo com o químico Alexander Graham Cairns-Smith, da Universidade de Glasgow (Escócia), autor do trabalho, na argila é onde podem ter surgido as primeiras moléculas que deram origem à vida. Isto porque as superfícies argilosas podem ter servido como um agente organizador de padrões, assim como os nossos genes atuam. Além disso, nas argilas os compostos orgânicos podem ter sido mantidos juntos e com condições ideais para o acontecimento de algumas reações químicas que seriam substanciais para a formação de proteínas, por exemplo. Em outras palavras, as partículas de argila serviriam como substratos para a união de aminoácidos para a formação de proteínas, além de favorecer a formação de dupla camada lipídica que posteriormente dariam origem às membranas celulares.
Um ambiente ideal para a evolução da vida pré-bacteriana no nosso planeta seriam as hot springs e fontes hidrotermais, regiões onde a água subterrânea aquecida geotermicamente emerge, no continente ou no assoalho oceânico, respectivamente. Estes ambientes possuem vários requerimentos que poderiam ser essenciais para as reações que deram origem à vida, além da presença de argila, como uma ampla gama de temperaturas (no qual uma deles seria ótima); presença de compostos orgânicos dissolvidos; grande disponibilidade de fósforo, zinco e níquel, etc.

Hot spring (esquerda), no parque Yellowstone, EUA. Fonte: Enciclopédia Britânica. Fonte hidrotermal em fundo oceânico (Fonte: Wikipedia).

Os carbonatos e argilas que foram encontrados no planeta anão Ceres podem fornecer evidências de que lá um dia aconteceram reações químicas na presença de água e calor, o que pode significar que os compostos orgânicos mapeados no planeta puderam ter uma origem semelhante aos primeiros compostos orgânicos mais complexos na Terra.

As joias do Universo

No último dia 22 de Fevereiro, a agência espacial norte-americana NASA divulgou uma notícia que movimentou a comunidade científica e o mundo todo. Foi anunciada a descoberta de um sistema planetário composto de sete planetas orbitando uma estrela anã-vermelha. A estrela, com apenas cerca de 8% da massa de nosso Sol, já havia sido registrada anteriormente e foi batizada em referencia ao Telescópio TRAPPIST (que por sua vez recebeu este nome em homenagem aos monges católicos trapistas, uma ordem comum na Bélgica e na Holanda e famosa por suas deliciosas cervejas). Os sete planetas do Sistema TRAPPIST (planetas “b”, “c”, “d”, “e”, “f”, “g” e “h”) possuem órbitas pequenas, tamanhos similares aos da Terra e possivelmente são rochosos. Os planetas “e”, “f” e “g” encontram-se em uma distância que pode indicar a existência de água no estado líquido. A NASA tem planos de investigar sinais de atmosfera nestes planetas e se podem realmente possuir água líquida.

O Sistema TRAPPIST (www.nasa.gov)

Tal descoberta é realmente algo extraordinário, mas devemos ser cautelosos com as notícias que já se espalharam pelas mídias, em especial pela rede mundial de computadores, e que muitas vezes não estão embasadas em fatos concretos, mas na imaginação e nos anseios pessoais de seus autores. Não é verdade que a NASA descobriu um sistema planetário que possua vida, nem mesmo foi relatada a existência de água no estado líquido, mas a simples possibilidade de existência deste composto primordial já empolga muitas das pessoas que acreditam que a vida animal complexa que habita a Terra também esteja espalhada pelo Universo. Há, no entanto, uma corrente oposta e me lembrei da mesma com todo o frenesi causado pelo Sistema TRAPPIST. Há cientistas que defendem a hipótese da “Terra Rara”, segundo a qual a vida microbiana simples pode estar difundida pelo Universo, mas a vida animal complexa é muito rara. Ainda quando estava na graduação tive a oportunidade de ler o best-seller do paleontólogo Peter D. Ward e do astrobiólogo Donald Browlee (ambos norte-americanos): “Rare Earth: Why Complex Life Is Uncommon in the Universe” e que me deixou fascinado! Embora muitas pessoas se excitem com a ideia de vida complexa extraterrestre, a possibilidade de sermos um evento de tamanha singularidade como apresentado pela hipótese da Terra Rara me parece muito mais excitante!

Capa do livro “Rare Earth: Why Complex Life is Uncommon in the Universe”, de Peter D. Ward e Donald Browlee (2000)

Enquanto a vida simples microbiana é adaptada às mais adversas condições, como temperaturas extremas de ambientes polares e de ambientes próximos a vulcões, a vida animal complexa é mais restrita e sua existência depende de muitas singularidades que tornam o nosso “pálido ponto azul” (como apelidado pelo grande astrônomo e divulgador da ciência, Carl Sagan) tão raro! Para que a vida animal complexa pudesse surgir em nosso planeta foram necessários bilhões de anos de história geológica, cerca de 3,8 bilhões ou mais. Segundo a hipótese da Terra Rara, planetas mais jovens não possuiriam idade suficiente para que a vida pudesse surgir e evoluir para formas tão complexas como ocorreu na Terra. Além do tempo de existência dos planetas, há inúmeras outras condições para abrigarem seres complexos, como os que estão lendo este texto.

É necessário que o planeta não esteja situado na zona central de sua galáxia, pois no centro das galáxias é maior a probabilidade de que ocorram impactos com asteroides e cometas, que podem extinguir a vida. É necessário que o planeta mantenha parte de seu calor primordial, o suficiente para que exista a força capaz de mover seus continentes. Não fosse a tectônica de placas em nossa Terra rara, não haveria continentes-ilha, palco do isolamento geográfico que levou às inúmeras especiações e a diversificação da vida complexa. É necessário que o planeta tenha uma órbita estável e quase circular. Planetas com órbitas erráticas ou que não apresentem órbitas próximas de serem circulares não teriam condições climáticas que suportassem a vida complexa como conhecemos, pois ora estariam muito próximos de sua estrela, ora estariam muito distantes. É necessário que a própria estrela seja estável, sem muitas flutuações na energia liberada. E mesmo em um sistema planetário com uma estrela relativamente estável, pode ocorrer a liberação de energia em excesso, o que faz necessário um campo magnético protegendo o planeta.  Mesmo na presença de todas estas condições, é ainda importante a existência de um planeta vizinho de muita massa e que com seu poderoso campo gravitacional atraia qualquer bólido errante, protegendo o planeta, como faz Júpiter em relação à Terra. Muitos podem pensar que a hipótese da Terra Rara falhe ao não considerar que a vida em outros planetas possa ser diferente da que aqui ocorre (composta de outras macromoléculas essenciais) e que tenha outras exigências para progredir de formas simples a formas complexas. No entanto, a única forma de vida conhecida é a que existe em nosso planeta, e o que definimos como vida está restrito a ela.

A descoberta do Sistema TRAPPIST é uma boa nova e merece toda a empolgação da comunidade científica e de todas as pessoas que são apaixonadas por ciência, mas não creio que estamos próximos de encontrar vida complexa. Podemos sim ter esperança de que exista água no estado líquido, em especial na zona que abriga os planetas “e”, “f” e “g”, e que os planetas sejam realmente rochosos e que possuam atmosferas similares às da Terra, e que abriguem, talvez, vida microbiana, vida mais simples. Mas a vida complexa parece ser rara no Universo! Nós temos a sorte de viver em um planeta que a abriga e que ainda registra nas rochas, através dos fósseis, a história de sua evolução. A Terra é rara, toda sua diversidade de organismos complexos é rara e o registro fóssil é ainda mais raro. As joias do Universo podem estar mais próximas de nós do que pensamos.

A Terra, nosso pálido ponto azul, vista de Saturno e fotografada pela sonda Cassini em 2013. Uma das joias do Universo! (www.science.nasa.gov)