Todos os posts de Flavia Callefo

Sobre Flavia Callefo

Possui graduação em Licenciatura em Ciências Biológicas pela Universidade Estadual de Campinas (2011). Possui Mestrado em Geociências pelo Instituto de Geociências da Unicamp. Atualmente é doutoranda em Geociências na Universidade Estadual de Campinas. Tem experiência na área de Geociências, com ênfase em Paleontologia.

Compostos orgânicos extraterrestres e a origem da vida na Terra

Como a vida se iniciou na Terra ainda é um mistério que intriga diversos cientistas e curiosos por muito tempo na nossa história. Na década de 20, Aleksandr Ivanovich Oparin, bioquímico russo, criou uma teoria do surgimento dos primeiros compostos orgânicos nos primórdios da evolução do nosso planeta, período no qual quase não existia oxigênio livre na atmosfera, que contava com os gases dióxido de carbono (CO2), nitrogênio (N2), vapor de água (H2O), amônio (NH3) e metano (CH4). Neste contexto, com a influência da energia liberada por relâmpagos, estas moléculas foram desintegradas dando origem a compostos orgânicos um pouco mais complexos. A teoria de Oparin foi testada experimentalmente na década de 50 por Stanley Miller, químico americano, que conseguiu formar aminoácidos simples a partir de descargas elétricas em ambiente simulando as condições da teoria de Oparin.
Os compostos orgânicos previamente formados, com a ação das descargas elétricas e raios UV provenientes do Sol, foram desencadeando reações químicas que deram origem a moléculas como álcoois, açúcares, aminoácidos e cadeias de carbono. Posteriormente surgiram proteínas e polissacarídeos. Mais tarde estas moléculas, que ficaram concentradas nos mares, deram origem às formas mais primitivas do que se podia chamar de vida, os chamados coacervados.

Perspectiva artística de como era a atmosfera primitiva da Terra, ambiente no qual teriam se formado os primeiros compostos orgânicos (fonte: autor desconhecido).

Enquanto isso, fora da Terra…

Já faz um bom tempo que se é conhecido que no espaço são encontrados diversos compostos orgânicos, como pares de bases e aminoácidos. Em 2011, por exemplo, alguns astrônomos da Universidade de Hong Kong encontraram compostos orgânicos complexos (comparados até com carvão e petróleo) em várias partes do Universo, e sugeriram que esse tipo de composto pode não ser exclusividade de formas biológicas, podendo ser espontaneamente criados por estrelas.
Em setembro de 2016, a NASA divulgou a detecção de um bilhão de pares de bases de DNA (provindas de amostras levadas da Terra) em apenas uma semana, pela utilização de um mini-sequenciador de biomoléculas em uma estação espacial, provando que é possível o sequenciamento de material genético em condições fora da Terra. Isto significa mais um importante passo para a possibilidade de detectar estes tipos de compostos em exoplanetas, por exemplo.
Mas uma notícia recente, de fevereiro de 2017, foi ainda mais animadora: foram detectados diversos compostos orgânicos, carbonatos e argilas em Ceres, o maior corpo entre o cinturão de asteroides que fica entre Marte e Júpiter, também considerado um planeta anão. Estes compostos, detectados por espectroscopia na região do infravermelho e do visível, foram mapeados em torno de uma cratera localizada no hemisfério Norte do pequeno planeta. Os compostos orgânicos encontrados possuem comprimentos de onda característicos de grupos metil (CH3-) e metileno (-CH2-).

Imagem da cratera mapeada na superfície do planeta anão Ceres, onde a coloração vermelha alcançada pela utilização de filtros espectrais combinados se refere à matéria orgânica. Fonte: NASA.

E como podemos relacionar esta descoberta com a origem da vida na Terra?

Em outubro de 2003, um trabalho publicado na revista Science mostrou que um experimento envolvendo a utilização de argila (no caso, montmorillonita) aumentou a tendência de ácidos graxos (que compõem os lipídios que formam as membranas das células) de formar membrana de camada dupla, além de induzir a formação de cadeias de RNA, moléculas que contém informação genética para a transcrição de proteínas. De acordo com o químico Alexander Graham Cairns-Smith, da Universidade de Glasgow (Escócia), autor do trabalho, na argila é onde podem ter surgido as primeiras moléculas que deram origem à vida. Isto porque as superfícies argilosas podem ter servido como um agente organizador de padrões, assim como os nossos genes atuam. Além disso, nas argilas os compostos orgânicos podem ter sido mantidos juntos e com condições ideais para o acontecimento de algumas reações químicas que seriam substanciais para a formação de proteínas, por exemplo. Em outras palavras, as partículas de argila serviriam como substratos para a união de aminoácidos para a formação de proteínas, além de favorecer a formação de dupla camada lipídica que posteriormente dariam origem às membranas celulares.
Um ambiente ideal para a evolução da vida pré-bacteriana no nosso planeta seriam as hot springs e fontes hidrotermais, regiões onde a água subterrânea aquecida geotermicamente emerge, no continente ou no assoalho oceânico, respectivamente. Estes ambientes possuem vários requerimentos que poderiam ser essenciais para as reações que deram origem à vida, além da presença de argila, como uma ampla gama de temperaturas (no qual uma deles seria ótima); presença de compostos orgânicos dissolvidos; grande disponibilidade de fósforo, zinco e níquel, etc.

Hot spring (esquerda), no parque Yellowstone, EUA. Fonte: Enciclopédia Britânica. Fonte hidrotermal em fundo oceânico (Fonte: Wikipedia).

Os carbonatos e argilas que foram encontrados no planeta anão Ceres podem fornecer evidências de que lá um dia aconteceram reações químicas na presença de água e calor, o que pode significar que os compostos orgânicos mapeados no planeta puderam ter uma origem semelhante aos primeiros compostos orgânicos mais complexos na Terra.

Museu de História Natural de Berlim, uma experiência inesquecível!

Toda pessoa que tem um mínimo de curiosidade sobre algum tema relacionado à História, Natureza e Ciências em geral tem um lugar certo onde pode se divertir: museu. Museu não é coisa para “nerd” não, muito menos exclusivo para pessoas envolvidas no meio acadêmico. Museu é lugar para gente curiosa! E os museus mundo a fora (aqueles que recebem um mínimo de incentivo financeiro, claro) hoje em dia estão cada vez mais interativos e mais diversos, com exposições dinâmicas e itinerantes, sempre se renovando para o público não visitar somente uma vez, mas sim querer voltar a cada temporada para ver coisas novas.

Em 2015 tive a oportunidade que eu achei que não teria tão cedo: visitar o Museu de História Natural de Berlim (Museum für Naturkunde Berlin). Jamais vou esquecer a emoção ao entrar (sozinha) pelo salão principal e ver as gigantescas ossadas de braquiossauros, aqueles pescoçudos, sabe? O guarda da entrada riu de mim, pois eu fiquei tão abestada ao ver tudo aquilo que chorei.

Museu de História Natural de Berlim
Braquiossauros no saguão principal

O Museu de História Natural de Berlim surgiu em meados de 1810, resultante da fusão de 3 museus: de Anatomia,  Zoologia e Mineralógico. A coleção, que hoje conta com mais de 30 milhões de itens, foi adquirida através de doações, compra e coleta em expedições. Inclusive conta com muitos fósseis brasileiros, como peixes e invertebrados do Araripe (cuja procedência não será aqui discutida para não quebrar o encanto da matéria).

Em 1889, o imperador Wilhelm II inaugurou oficialmente o museu no local onde se encontra até hoje. Durante o período da Segunda Guerra Mundial, uma parte do museu foi destruída, perdendo-se 25% da coleção, permanecendo fechado ao público até 1945, quando então foi reinaugurado. Depois da queda do Muro de Berlim e reunificação em 1989-1990, o museu foi reestruturado, foram criados novos laboratórios e foi dividido em três institutos: Paleontologia, Mineralogia e Zoologia Sistemática.

Em 2006, novamente foi reestruturado, criando-se departamentos de pesquisa, de coleções, exposição e de Educação. Foi considerado uma fundação de direito público em 2009, devido a sua grande importância na região. Em 2010 completou 200 anos e desde 2012 seu pessoal têm colocado em prática a missão de auxiliar na compreensão pública da Ciência, tornando seu conteúdo científico e pesquisas mais acessíveis para o público em geral, bem como vêm tendo uma crescente participação em eventos de Educação.

Felicidade é tirar selfie com o Archaeopterix!

Com sua integração à Instituição Leibniz para a Evolução e Ciência da Biodiversidade, o Museu de História Natural de Berlim se tornou uma das instituições de pesquisa na área de evolução biológica, geológica e de biodiversidade mais importantes do mundo, alcançando um público de mais de 500.000 visitantes por ano.

Enfim, os esforços de toda sua equipe valeram muito a pena! A visita ao Museu de História Natural de Berlim é uma atividade muito mais que recomendada, não só para professores e estudantes, mas para todas as pessoas que tiverem a chance de passear por Berlim. Só não chore aos pés do pescoçudo e vire piada como eu!

Para saber mais:

https://www.naturkundemuseum.berlin/

 

 

20 de novembro e a Origem dos Hominídeos

Domingo passado foi o Dia da Consciência Negra, 20 de Novembro. Neste dia, além de ser relembrada a morte de Zumbi dos Palmares, líder do Quilombo dos Palmares e símbolo da luta contra a escravidão dos negros no Brasil, também é o dia de refletirmos o valor da cultura do povo africano no país e seus legados. Eu estava procurando algum tema para escrever para o blog quando, a partir de uma reflexão a respeito de alguns questionamentos por parte de pessoas quanto a manutenção ou não desta data como feriado, me fez chegar à conclusão de que seria oportuno e ideal aproveitar para escrever sobre algo muito importante: a Evolução dos Hominídeos e o quanto o racismo pesou na pesquisa científica a respeito.

Uma breve história da evolução dos hominídios

Ao contrário do que o senso comum tende a levarmos a crer, a história evolutiva humana não segue uma evolução linear, partindo de um primata ancestral e chegando no ser humano atual. Muitas descobertas fósseis revelaram que várias espécies de hominídeos tiveram sua origem e chegaram a coexistir. É estimado que entre 6 a 8 milhões de anos atrás surgiram os primeiros hominídeos, grupo geral a qual as espécies que divergiram dos macacos se encontram. Os mais antigos hominídeos pertencem ao gênero Ardipithecus, grupo ainda muito semelhante aos macacos, principalmente com relação à postura não ereta. Em seguida, surgiram os Australopithecus aferensis, espécie a qual pertence a famosa Lucy, o fóssil mais completo e bem preservado já encontrado até agora. As espécies pertencentes ao gênero Australopitecus, em comparação com os Ardipithecus, possuíam a postura mais ereta e a caixa craniana um pouco maior. Seguindo estas modificações fenotípicas, segue o gênero Homo, sendo a espécie mais antiga a Homo habilis, da qual, sim, linearmente se seguiu até chegar a nós diretamente (ou seja, são nossos ancestrais diretos). O Homo habilis, de cerca de 2,5 milhões de anos atrás, alcançou dois grandes feitos para a linhagem: o uso de ferramentas e a conquista de novos continentes (foi o primeiro que saiu da África). Seu sucessor, o Homo erectus, de sobrecenho mais protuberante e crânio menor do que o atual, já possuía maior habilidade manual, trabalhava com utensílios utilizando o que encontrava na natureza, fazia uso do fogo e alcançou continentes como Ásia e Europa. Estudos revelaram a coexistência entre o Homo habilis e o Homo erectus. Mais para o final do Pleistoceno, surgiram os Homo neanderthalensis, os neandertais, cujas características físicas se aproximavam ainda mais do homem atual, porém ainda possuíam membros mais curtos e sobrecenho protuberante. Os Homo sapiens surgiram na África e logo alcançaram a Europa e a Ásia, e quando foi possível através da diminuição do nível do mar, atravessaram o estreito de Bering e alcançaram o continente americano.

Árvore filogenética dos hominídeos (Museu de História Natural de Londres)
Árvore filogenética dos hominídeos (Museu de História Natural de Londres)

Existe raça?

Por muitos anos, principalmente no século passado, a ciência era bastante influenciada por políticas e ideologias dominantes na sociedade. O pensamento racista tinha forte influência em pesquisas com relação à evolução do homem, existindo desde vertentes que negavam a origem comum africana até estudos que tentavam comprovar por meios empíricos a “superioridade da raça branca”. Exemplos variam desde o francês Joseph-Arthur Gobineau, com sua obra Ensaio sobre a Desigualdade das Raças Humanas, que se aproveitou equivocadamente da classificação hierárquica das espécies de Carlos Lineu (em Português) para inaugurar o “racismo científico”; desde aqueles que se aproveitavam da hipótese multirregionalista da evolução humana para tentar justificar que o homem branco teria uma origem diferente dos outros. Hoje, graças aos avanços tecnológicos, as pesquisas paleoantropológicas são muito bem respaldadas por evidências moleculares e genéticas, que geraram provas por enquanto irrefutáveis para a origem da espécie humana, que está se tornando cada vez mais refinada. O que se sabe hoje, graças às análises de DNA mitocondrial de espécimes fósseis, por exemplo, é que, sim, tivemos a mesma origem comum: na África, entre 140 a 300 mil anos atrás.

Systema Naturae, de Carlos Lineu (Carolus Linnaeus), no qual as espécies são classificadas hierarquicamente.
Systema Naturae, de Carlos Lineu (Carolus Linnaeus), no qual as espécies são classificadas hierarquicamente.

Porém, a descoberta da origem comum não foi suficiente para conter debates a respeito da separação do ser humano em raças. É importante salientar e valorizar os estudos genéticos, principalmente a respeito das mutações que geram fenótipos tão variados e conferem a adaptação a condições ambientais diferentes. A variabilidade genética entre populações é o que faz com que o ser humano tenha características tão diferentes entre si em várias regiões do mundo, mas não tem significado biológico para a separação em raças. Uma das mais recentes tentativas está no best-seller A Troublesome Inheritance (Uma Herança Incômoda), do britânico Nicholas Wade, publicado em 2014, no qual o autor utiliza dos estudos de Lineu e até de avançados estudos de variação genética para defender a separação dos humanos em raças, defendendo até que a desigualdade entre os humanos, inclusive no âmbito socioeconômico, se daria por conta de uma seleção natural nos genes. É claro que esta obra também foi recebida com cautela e descrédito por uma grande parte da comunidade científica, mas a questão é que ainda é necessário quebrar correntes como estas.

Aproveitando as reflexões do dia 20 de Novembro, uma das conclusões que consigo tirar é que, mesmo com tantos avanços na Ciência, é necessário também termos avanços no senso de humanidade e na maneira com que lidamos com o conhecimento. Numa sociedade moderna onde haja bom senso para se lidar com a Ciência, não pode haver espaço para confundir o pensamento científico com a defesa de posições pessoais, sejam políticas, ideológicas ou mesmo de religião, para tentar impor na sociedade ideologias de determinados grupos. Isto não deixa de ser uma tentativa de se perpetuar a pseudociência e o preconceito. Por essas e outras questões que acho mais do que justo dias como o da Consciência Negra, para que um dia, quem sabe, haja avanços na consciência humana.

Vamos deixar o mamute extinto

Há poucos anos se vêm noticiando mundo a fora tentativas mirabolantes de trazer animais já extintos de volta à vida, como o grandioso mamute. Este grande animal pleistocênico é o maior alvo desta ideia por razões diferenciadas, dentre elas, a facilidade de encontrar seus corpos mumificados extremamente bem preservados devido ao aparecimento de diversos espécimes por conta do derretimento do gelo em regiões como a Sibéria. Não é de se estranhar que, vendo-os assim tão bem preservados, a ideia de “revivê-los” fica extremamente atraente, seja pelo fascínio que estes grandes animais despertam, seja pela ambição de ser dono de um grande feito como este.

Bebê mamute mumificado. Créditos: Martin Meissner
Bebê mamute mumificado. Créditos: Martin Meissner

Mas será que a interferência nos caminhos que foram traçados naturalmente pela história do nosso planeta seria realmente uma boa ideia? O que seria do pobre mamute, que fora adaptado para os períodos glaciais da Terra, a habitar grandes espaços, correr atrás de suas presas e se defender de seus predadores, bem ao modo da Era do Gelo? Os tempos eram outros, as características físicas e ambientais de nosso planeta eram outras.

O surgimento de novas tecnologias na área da biologia molecular tende a aguçar a mente dos pesquisadores mais ambiciosos, o que é excelente para novas descobertas, chances de desenvolvimento de cura e tratamento de doenças, e principalmente, um maior domínio e possibilidade de manipulação do genoma de inúmeras espécies, incluindo o ser humano. E por que não os mamutes?

Em meados de 2015, o geneticista George Church, de Harvard, e seus colaboradores, anunciaram que utilizaram uma técnica de “edição de genes chamada CRISPR (do inglês Clustered Regularly Interspaced Short Palindromic Repeats, ou seja, Repetições Palindrômicas Curtas Agrupadas e Regularmente Interespaçadas) para inserir genes de mamute em elefantes. Estes genes inseridos seriam os responsáveis pela expressão de alguns caracteres dos mamutes, como tamanho das orelhas mais reduzido, cor e comprimento dos pelos e a presença de gordura subcutânea. É claro que pesquisadores como estes têm em mente que, apesar da ideia soar simples, há muitas questões em jogo, como a reação das células à expressão desses genes, se de fato conseguiriam dar origem à tecidos especializados, etc.

Pensando em um futuro não muito distante, e se por acaso um experimento como este tivesse sucesso? E se nascesse um mamute de um elefante vivo? Outra questão importante a se pensar é com relação aos efeitos do meio externo ao fenótipo (características físicas do organismo que têm origem da expressão dos genes). Seria um híbrido com características tão semelhantes assim aos mamutes pleistocênicos? São inúmeras questões a serem pensadas além do experimento em laboratório. Pensando em um sucesso ainda maior (que é com relação à sobrevivência desses híbridos), até quanto tempo viveriam? Ou seriam saudáveis por quanto tempo? E penando na manutenção desses animais, teriam eles, obviamente, que ficarem restritos à ambientes polares, com alimentação fornecida e especializada, etc.

Quero deixar claro que não estou querendo levantar somente os aspectos negativos deste tipo de pesquisa, até por que acho que a ousadia é um estímulo para mover a Ciência, e nela há espaço para qualquer experimento, desde que esteja de acordo com as questões éticas. Mas o objetivo deste post é levantar as implicações à longo prazo e gerar uma reflexão do quanto valeria a pena realizar tal façanha. Apenas sou mais adepta da ideia de se utilizar técnicas como esta, por enquanto, para tentar auxiliar na luta contra a extinção de espécies atuais devido às ações antrópicas, por exemplo.

Como diz a famosa expressão, a natureza sabe o que faz.  Os eventos de extinção que ocorreram ao longo da história da vida na Terra, sejam eles por causa da própria evolução da geosfera (por exemplo, o movimento das placas tectônicas e vulcanismo, que expeliram enormes quantidades de gases na atmosfera), ou por interações ecológicas (competição entre espécies, predação, etc), ou como obra do acaso (como os impactos de corpos celestes), apesar de terem sido catastróficos para os seres que viviam nestes períodos, foram responsáveis pela “reciclagem” da vida na Terra, ou seja, possibilitaram o surgimento de novos organismos, de novos nichos, até a vida se moldar ao que conhecemos hoje. Estamos aqui devido às extinções ocorridas? Provavelmente elas têm grande parte nisso.

A evolução da vida tende a acompanhar as mudanças que a Terra vai sofrendo com o passar do tempo geológico, mas o tempo sentido pelo homem é curto demais, tem uma escala muito, mas muito menor. Então tendemos a não enxergar os benefícios causados por eventos catastróficos ou mudanças naturais, quanto menos ainda perceber os efeitos que o ambiente causa, à longo prazo, no sucesso ou “fracasso” da sobrevivência de uma espécie. Pensando desta maneira, apesar de também sermos agentes causadores de mudanças, nossas ações estão causando um prejuízo à biodiversidade do planeta muito mais além da conta para a recuperação natural dessas extinções provocadas. Mas isto seria uma discussão para outro post.

Quanto aos mamutes? Por mim é melhor deixá-los extintos, para o bem deles, e para o bem do nosso planeta. Sim, a natureza sabe o que faz, e às vezes o acaso faz bem também!

Do gelo à biodiversidade – Snowball Earth

Os períodos de glaciações pelos quais a Terra passou que são mais famosos aos olhos da população, graças a filmes bem populares, são as que ocorreram durante o Quaternário, as chamadas “Eras do Gelo”. Neste cenário, podemos exemplificar a megafauna que reinava, como os mamutes e preguiças gigantes. Todo mundo deve imaginar que nesses períodos, onde a temperatura diminuía consideravelmente e o gelo cobria extensas áreas do globo, deveria ter efeitos devastadores para a vida no planeta. E de fato tinha, pois a oferta de alimentos e refúgios diminuía, assim como a luminosidade e calor nos oceanos e continentes. De um modo geral, a produtividade primária era consideravelmente prejudicada. Mas eventos como essas glaciações foram cruciais para grandes passos na evolução e diversificação da vida em um certo período da história da Terra. E este período foi há aproximadamente 540 milhões de anos atrás, que marca o fim do Pré-Cambriano, onde a vida era dominada por microrganismos e restrita aos oceanos.

Sabe-se que antes do período Cambriano (540 milhões de anos atrás), a vida surgiu de forma unicelular e permaneceu relativamente simples até ocorrer a chamada Explosão da Vida Cambriana, na qual houve uma verdadeira multiplicação e diversificação da vida multicelular, inclusive o surgimento de partes duras como exo e endoesqueletos. Mas o que poderia ter sido o gatilho para essa repentina (do ponto de vista do tempo geológico) diversidade da vida? E o que isso tem haver com as glaciações?

Figura 1: Snowball Earth (Terra Bola de Neve) – perspectiva artística de como a Terra ficou coberta por gelo no Pré-Cambriano. Fonte: desconhecido.
Figura 1: Snowball Earth (Terra Bola de Neve) – perspectiva artística de como a Terra ficou coberta por gelo no Pré-Cambriano. Fonte: desconhecido.

Bom, para responder a estas perguntas, precisamos primeiro nos atentar a duas evidências curiosas desse intervalo de tempo (Pré-Cambriano – Cambriano). A primeira delas são depósitos de tilitos encontrados em diversos locais do mundo. Essas rochas são relativas à deposição por ação de geleiras, e são datadas de 800 a 600 milhões de anos, ou seja, pertencem ao final do Pré-Cambriano. Seriam evidências de glaciações que ocorreram neste período. Há algumas teorias que apontam que as causas dessas glaciações no Pré-Cambriano teriam sido geradas pelo aumento do sequestro de carbono da atmosfera por maior fixação de CO2 pelo solo no supercontinente Rodínia, o que diminuiu o efeito estufa da Terra, tendo como consequência a diminuição da temperatura. Com isto, houve uma expansão das calotas polares e, consequentemente, um aumento no albedo (quando os raios solares refletem ao atingem a superfície da Terra). Esta intensificação do albedo teria aumentado mais ainda a expansão das calotas polares, que atingiram latitudes próximas ao Equador, dando o significado literal para a expressão Snowball Earth (Terra Bola de Neve).

A segunda evidência consiste de camadas de carbonatos (rochas que se formam a temperaturas mais quentes e muitas vezes são associadas à precipitação orgânica), encontradas depositadas logo acima das camadas de tilitos (depositadas em ambientes de geleiras). O fato curioso é que isto representaria uma mudança brusca de significados paleoambientais: de um ambiente glacial a um ambiente quente em um intervalo muito curto de tempo. O que poderia explicar essa sucessão de depósitos inusitada é que, por mais que a Terra estivesse coberta por gelo, o movimento dos continentes continuava. Sendo assim, o rifteamento do supercontinente Rodínia ocasionou intensa atividade vulcânica, o que aumentou as concentrações de CO2 na atmosfera, gerando novamente um efeito estufa, o qual auxiliou no derretimento das geleiras.

Figura 2: reconstituição paleoartística do que seria a Fauna de Ediacara. Vitrine do Smithsonian Museum, Washington, DC.
Figura 2: reconstituição paleoartística do que seria a Fauna de Ediacara. Vitrine do Smithsonian Museum, Washington, DC.

Entendendo esta história toda, podemos agora tratar da explosão da vida ocorrida no Cambriano. Como dito anteriormente, um período glacial não é tão favorável à manutenção da vida na Terra, ainda mais os tipos de vida reinantes nos mares do Pré-Cambriano, que eram menos complexas. Não só a temperatura diminuiu, mas também a luminosidade nos oceanos devido ao recobrimento pelo gelo. Com isto, a vida ficou restrita a porções de refúgio, como fontes hidrotermais, zonas de rifteamento e lugares onde a espessura do gelo que recobria as águas era menor. As formas de vida que não resistiram a esta mudança ambiental extrema morreram e acabaram enriquecendo as águas dos oceanos com matéria orgânica. Quando a temperatura da Terra voltou a subir, houve condições para a proliferação da vida novamente, de maneira mais intensa e muito mais diversificada. Hipóteses que defendem o aumento da oxigenação nos mares sustentam que isto pode ter sido um dos gatilhos para eventos evolutivos que deram origem a toda aquela diversidade.

Enfim, com tantas hipóteses e incertezas acerca da teoria do Snowball Earth, que até hoje é muito controversa, não se pode negar que houve benefícios para a vida na Terra após este período. Desta explosão de vida que ocorreu no Cambriano é que teve origem os ancestrais de diversos filos que conhecemos hoje, que fazem parte da grande biodiversidade do nosso planeta.

Figura 3: Explosão da vida cambriana. Fonte: Burgess Shale Fauna, de Carel Brest van Kempen, 1989.
Figura 3: Explosão da vida cambriana. Fonte: Burgess Shale Fauna, de Carel Brest van Kempen, 1989.

O Hadeano – primórdios do nosso planeta

Perspectiva artística da Terra no Hadeano.
Perspectiva artística da Terra no Hadeano.

Se contássemos a história do planeta Terra num diário, em detalhes, provavelmente não haveria papel ou armazenamento digital suficiente para guardar tanta informação. Talvez se resumíssemos bastante, e dividíssemos em etapas os principais acontecimentos desde o “nascimento” do nosso planeta, a tarefa ficaria mais viável. Uma maneira que o ser humano inventou para se visualizar melhor o que seria a história do nosso planeta é a chamada Escala do Tempo Geológico, a qual divide e classifica com nomes e idades os principais eventos do planeta desde a sua formação há aproximadamente 4,6 bilhões de anos atrás (Ga).

Digamos que o primeiro capítulo desse enorme diário seria como se faltassem muitas informações e, portanto, seria escrito com base em poucas evidências palpáveis e muitas suposições. Isto porque nos primórdios do nosso planeta, ainda quando a superfície não estava suficientemente consolidada, tudo parecia um grande mar de lava incandescente, com a constante “destruição” das rochas que eram formadas. A este verdadeiro inferno que reinava, deu-se o nome de Hadeano (do deus grego Hades, o deus do mundo inferior). Os éons são as maiores divisões do tempo geológico, nos quais são alocadas as eras. O Hadeano, por ser um momento muito obscuro da história do planeta, não é considerado oficialmente um éon, e tampouco contém eras oficiais na escala do tempo geológico, apesar de serem sugeridas subdivisões.

No princípio, a Terra era extremamente quente devido ao processo de acreção planetária. Formou-se um núcleo pesado e denso de ferro, o núcleo da Terra, e ao redor uma massa de material menos denso e rico em silicatos, como um mar de magma. O material que ficou entre o núcleo e a superfície gerou o manto. O magma que se esfriava na superfície dava origem à crosta, que ainda não era muito bem estabelecida, principalmente devido ao intenso vulcanismo e bombardeio de meteoritos e asteróides. Apesar de o Sol, que neste tempo também estava em seus primórdios, não ter a capacidade de aquecer a Terra, o efeito estufa gerado pela atividade vulcânica no planeta era muito intenso. Os registros mais antigos datam de 4,28 Ga, de rochas que foram encontradas na baía de Hudson, ao norte de Quebec, no Canadá [1]; e de 4,4 Ga, de zircões encontrados na Austrália [2].

Zircão de 4,4 Ga.
Zircão de 4,4 Ga.

O Hadeano engloba desde a formação da Terra, há 4,6 Ga, até mais ou menos 3,8 Ga, ou seja, engloba cerca de 800 milhões de anos (Ma). Então, por 800 Ma, podemos dizer que a Terra era impossível de ser habitada por seres vivos que conhecemos hoje. Até mesmo porque, além da superfície inconsolidada, explosões vulcânicas constantes e temperaturas extremamente altas, o bombardeio de corpos celestes errantes que atingiam a superfície da Terra era muito mais intenso, e muitas vezes estes corpos tinham o tamanho de quilômetros de diâmetro. Estes, ao atingirem a Terra, destruíam tudo com o impacto e liberava-se enormes quantidades de energia. Portanto, era muito difícil se preservar registros, tanto rochosos, quanto mais ainda de alguma possível molécula orgânica que poderia ter se formado. Pouco material foi preservado deste momento da história da Terra.

Mas nem tudo tinha somente um significado devastador. Além de a Terra estar, naquele momento, em processo de evolução e consolidação de sua superfície, os impactos que sofria tiveram um importante papel na diferenciação e retrabalhamento de sua crosta e manto superior [3]. Além do mais, foi no Hadeano que se formou a nossa atmosfera (com uma composição diferente, rica em gases como enxofre, amônio e metano, e ausência de oxigênio) e os primeiros mares pela precipitação de moléculas de água produzidas por atividade vulcânica após a diminuição da frequência dos impactos dos meteoritos e asteróides, quando enfim começa a contar o próximo éon, o Arqueano.

Referências:

[1] O’Neil1, J. , Richard W. Carlson, R.W., Francis, D., Stevenson, R.K. 2008. Neodymium-142 Evidence for Hadean Mafic Crust. Science, v.321, pp. 1828-1831.DOI: 10.1126/science.1161925

[2]Bowring, S. 2014. Early Earth: Closing the gap. Nature Geoscience, 7, 169–170. DOI:10.1038/ngeo2100

[3]Fairchild, T.R. 2000. A Terra: Passado, Presente e Futuro. In: TEIXEIRA, W.; FAIRCHILD, T.R.; TOLEDO, M.C.; TAIOLI, F. ed. Decifrando a Terra (capítulo 23). São Paulo, Oficina de Textos. p.493-516.

 

 

Microbialitos – fósseis mais persistentes

Os fósseis são importantes ferramentas para se entender o passado da Terra e a evolução da vida nela. Chamam a atenção por muitas vezes serem bonitos, por apresentarem formatos e espécies não mais existentes que causam curiosidade e aguçam o interesse de pessoas de todas as idades. Porém, nem todos os fósseis são visíveis ou mostram claramente um organismo preservado. Os seres vivos são capazes de deixar seu registro de uma maneira indireta, como se fosse uma assinatura escrito: “passei por aqui”.  Fósseis como estes são chamados de icnofósseis (icno = marca) e podem ser um produto do metabolismo de algum organismo (cocô e xixi, por exemplo), pegadas, bioconstruções, etc.

Figura 1 – Estromatólito de Vazante/MG, Brasil. Este exemplar possui cerca de 1,2 bilhões de anos.
Figura 1 – Estromatólito de Vazante/MG, Brasil. Este exemplar possui cerca de 1,2 bilhões de anos.

Os microrganismos foram os primeiros seres a conseguirem deixar no registro geológico sua marca. Desde os primórdios da vida na Terra, eles foram capazes de deixar bioconstruções chamadas de microbialitos. Estes são formados através do aglutinamento de grãos de sedimento, como areia, na substância mucilaginosa secretada pelas bactérias, o EPS (substância extracelular polimérica), e pela indução da precipitação de carbonato de cálcio devido ao metabolismo delas. Descomplicando um pouquinho, é como se as bactérias construíssem estruturas que mais tarde litificam (viram rocha!). Com o passar do tempo, os microrganismos que ali viviam deixam de existir, ficando somente o registro de sua atividade metabólica, os microbialitos.

Figura 2 – Estromatólitos gigantes de Santa Rosa de Viterbo/SP, Brasil.
Figura 2 – Estromatólitos gigantes de Santa Rosa de Viterbo/SP, Brasil.

Um microbialito pode ser desde um simples biofilme preservado em um substrato (as chamadas MISS – estruturas sedimentares microbialmente induzidas); esteiras microbianas, que são comunidades de microrganismos diferentes vivendo em associação; ou bioconstruções chamadas estromatólitos (figura 1), que podem alcançar até mais de dois metros de altura (figura 2).

Os microbialitos são importantes por diversas razões, além do pioneirismo em questão de registro fossilífero. Eles são excelentes reservatórios de petróleo (vide o petróleo das camadas do Pré-Sal, que estão alojados em estromatólitos), fornecem informações a respeito do ambiente em que foram formados e podem até serem associados ao que se espera encontrar como sinais de vida fora da Terra, como as estruturas “suspeitas” registradas pela sonda Curiosity, em Marte (figura 3), muito semelhantes às MISS observadas em variados lugares da Terra (Noffke, 2015). Salvo a sua diminuição em abundância a partir de 540 milhões de anos atrás, quando os organismos multicelulares encontraram em seus microrganismos formadores uma fonte de alimento, os microbialitos abrangem um grande intervalo no tempo geológico, extendendo sua existência mesmo após todos os eventos de extinção, estando presentes até os dias de hoje.

Figura 3: Comparação de estruturas encontradas em Marte com MISS da Terra.
Figura 3: Comparação de estruturas encontradas em Marte com MISS da Terra.

Referências

Noffke, N. 2015. Ancient Sedimentary Structures in the <3.7 Ga Gillespie Lake Member, Mars, That Resemble Macroscopic Morphology, Spatial Associations, and Temporal Succession in Terrestrial Microbialites. Astrobiology, 15(2): 169-192.