Quando dois restos (fósseis) são encontrados lado-a-lado numa rocha, é possível afirmar com 100% de certeza que ambos viveram juntos e morreram juntos?
Ou ainda…
Quando se encontra um resto de um (ou mais) organismo(s) em determinado local, é possível afirmar de antemão que este(s) organismo(s) viveu(ram) ali?
Estas são algumas das perguntas que nós paleontólogos fazemos quando estudamos os fósseis de um determinado local. Já adianto que a resposta para ambas perguntas é negativa. Existem diversas situações envolvidas na preservação de um resto. É errôneo pensar que simplesmente por terem sido preservados lado-a-lado os organismos também conviviam (compartilhavam o mesmo ambiente), ou ainda, que morreram pelo mesmo motivo. Existem casos em que os organismos sequer viveram no mesmo momento, tendo milhares de anos de diferença entre si, mas são, por acaso, preservados na mesma camada, lado-a-lado.
Então se tivermos o seguinte registro: um dente de dinossauro (que viveu no Mesozoico) preservado ao lado da garra de uma preguiça gigante (do Cenozoico) nós temos em mãos um registro com mistura temporal. Estes dois organismos não compartilhavam o mesmo ambiente porque não viveram sequer na mesma era geológica (um é o Mesozoico e outro do Cenozoico). Mas como é que estes dois restos foram parar ali, juntos? Muitos são os eventos que podem levar à mistura temporal. Neste caso em específico podemos pensar que o dente de dinossauro já havia sido preservado e foi retrabalhado (carregado e depositado) com sedimentos mais novos que por um acaso continham restos do referido mamífero gigante… A mistura temporal é, portanto, uma das eventualidades que podem alterar/modificar o registro fossilífero, tornando-o um pouco mais difícil de ser compreendido.
Mas ainda antes de chegarmos à possibilidade da mistura temporal existe uma outra grande contingência: da preservação (ou não) do resto. É preciso que fique claro para você que nem todos os organismos produzem fósseis. Existe uma série de fatores que ocorrem deste o momento em que ele morre até o momento em que alguma pessoa o encontra.
Quais são, então, as chances de se produzir um fóssil? Em 99,9% das vezes em que um organismo morre, ele é destruído. Então (sendo otimista), em 0,1% dos casos a possibilidade existe, persiste. Pense, também, que quanto mais antigo este resto (ou vestígio) é, maiores são as chances de ele ser destruído, pois mais tempo a natureza tem para que ele seja “reciclado”. E ainda… mesmo que este fóssil persista até os dias atuais, quais são as chances de ele ser encontrado por alguém? Num planeta que atualmente possui 149,67 milhões de km2 de áreas emersas… as chances são pequenas (claro que do total dessa área, nem todas as rochas disponíveis são as sedimentares, mas mesmo assim, as possibilidades são baixas). Por isso escolhi a palavra: contingência, no sentido de acaso, eventualidade e/ou possibilidade (ou não) de algo acontecer.
Vou tentar ilustrar isso com o que vi e aprendi numa visita às cavernas de Sterkfontein, na área de Joanesburgo, África do Sul, e que, inclusive, está muito bem explicado neste vídeo. Vou contar a história da descoberta e das eventualidades envolvidas, voltando no tempo até o momento de “produção” deste registro do passado… me acompanhe!
Ali, numa área que é denominada “o berço da humanidade” os estudos paleoantropológicos ocorrem desde os anos 1935, na busca por fósseis de hominídeos. No entanto, a região foi imensamente explorada para a produção de calcário, antes de ser tombada como patrimônio da humanidade. Neste tipo de exploração, as cavernas são abertas por dinamites… sim, dinamites, explosões, destruição(!).
Mesmo tendo sido imensamente explorada, é bem plausível de se dizer que foram estas explosões que levaram às descobertas já feitas na região, uma vez que possibilitaram o acesso ao local e aos fósseis depositados dentro destas cavernas. Sim, é provável que muitos devem ter sido perdidos, explodidos, mas penso que, de outra forma, os cientistas não teriam conseguido chegar até ali;
…é ou não e muito acaso envolvido? Mas as eventualidades ainda não terminaram. As descobertas mais recentes, principalmente em cavernas que foram pouco exploradas pelos mineradores (ou seja, que sofreram menos implosões), são de hominídeos bastante completos, isto é, com muitos ossos de seus corpos preservados juntos, o que é extremamente raro na paleoantropologia. Segundo Lee Berger, um eminente paleontropólogo envolvido nas últimas descobertas dali, existem mais pesquisadores na área do que fósseis para se estudar. Então a descoberta de esqueletos de hominídeos com muitos ossos é excepcional.
Se voltarmos ainda mais no tempo e tentarmos imaginar os motivos que levaram a um hominídeo morrer ali, vamos perceber mais um “lance de dados” envolvido: as explicações científicas para estas descobertas apontam que as cavernas que possuem estes fósseis de hominídeos quase completos não eram seus locais de vida. Muito provavelmente, há cerca de 1,8 M.a., estes homens e mulheres do passado estavam caminhando na savana e inadvertidamente caíram para dentro das cavernas, onde pereceram, seus ossos fossilizaram, e foram descobertos após explosões dos mineradores da região os colocarem mais acessíveis aos cientistas que ali começaram a explorar o potencial fossilífero da região (anos 2000)…ufa…!
Quando alguém me pergunta se, durante minha vida profissional, já encontrei algum fóssil importante, a primeira coisa que vem em minha cabeça é… seria isso realmente essencial? Será que devo ir ao campo esperando encontrar um fóssil “importante”? e, afinal de contas, o que é um fóssil importante? Espero que o texto tenha conseguido mostrar que qualquer registro de vida do passado é importante e extremamente raro; e muitas são as casualidades envolvidas em sua preservação. Nada mais raro e especial que poder olhar para (um piscar de olhos) (d)o passado e compreendê-lo!
Até o próximo post! Não deixem de comentar...