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As duas mortes de Luzia

Oi! Quer saber meu nome? A minha tribo me chamava de Loo-dj-ahn. Mas isso foi há muito tempo atrás, antes mesmo de minha primeira morte. Hoje, pelo que sei, me chamam de Luzia. Acho que é como entendem meu nome. Como soa aos ouvidos das pessoas de hoje. Ou é uma coincidência. Sei lá.

O ENIGMA DA CAVERNA
Este é meu Cranio de verdade; atras, está como vocês imaginaram que eu fosse…

Desculpe se sou confusa, se meu raciocínio é meio falho. De fato, tenho problemas em entender o que é a verdade e o que não é. Sei, pelos relatos que escuto, que hoje vocês também estão com dificuldades de entender o que é verdade e o que é mentira. Escutei estes dias um termo que deixou confusa: Fake News, ou noticia falsa. Vocês acreditam em noticia falsa?

Eu vivi boa parte de minha primeira morte numa caverna. Onze mil anos, se minhas contas estiverem certas. Não sei se vocês sabem, mas quando se vive em cavernas a realidade é meio confusa. Não sabemos ao certo se as sombras que vemos são fantasia ou são realidade. Por muito tempo, achei que as sombras que víamos eram a verdade. Contudo, hoje, sei que eram somente projeções na parede da caverna. Soa meio confuso, mas é assim. É um enigma da caverna. Uma alegoria, como dizem alguns de vocês.

A MORTE DE LOO-DJ-AHN

De qualquer forma, meu nome é Loo-dj-ahn, e eu pertenço aos Humanos. Minha tribo representa os melhores caçadores de nosso lugar. Em nosso falar, humano é “Croovijz“. Por isso talvez vocês outros nos chamem de povos de Clovis. Mas, pensando bem,  pode ser também coincidência.

Não me lembro ao certo como morri. Fui ficando doente, tinha dores de barriga, dor de cabeça, não conseguia mais acompanhar as mulheres. Entretanto, minha tribo tentou me curar com ervas e rezas. Meus olhos foram turvando, turvando, e depois não ouvi mais nada. Quando dei por mim eu já estava dentro da caverna, onde me sepultaram. Meu corpo foi coberto por tintas mágicas para avisar os espíritos ancestrais dos Humanos. No meu funeral, devem ter me virado para o norte, que era de onde haviam vindo nossos ancestrais.

Como já disse, minha primeira morte durou onze mil anos. Há uns poucos anos atrás, o que restou de mim foi encontrado por um povo estranho que tirava seu sustento de desencavar gente de seu tumulo ancestral. Mas, antes disso eu soube que um senhor chamado Peter Lund havia começado a explorar as grutas na nossa área. Ele retirou milhares de metros cúbicos de terra e achou milhares de ossos, de animais e de humanos, que ele remeteu para seu país natal, a Dinamarca.

NUM LUGAR CHAMADO MUSEU

Muitos outros foram resgatados por estes povos escavadores. Entretanto, dos humanos, os Croovijz, só eu. Dos outros povos que habitavam nossa região, como os Larga-ossos, os Bárbaros do sul e os Pega-peixe (esses eram os nomes que nós dávamos a eles), vários foram resgatados.

Fomos levados para um lugar escuro, muito longe da caverna onde me acharam. Lá, fomos iluminados, apalpados, medidos. Contudo, quando começaram a me chamar de Luzia, a principio achei que sabiam minha língua. Mas sabem nada. Falam muita bobagem sobre nós, tentam adivinhar o que éramos e o que fazíamos somente olhando nossos ossos e vendo os utensílios que fazíamos.

Depois, tentaram adivinhar como era meu rosto…erraram feio. Tentaram de novo…erraram de novo. Por que eles querem saber tanto do mim?

A MORTE DE LUZIA

No entanto, eu estava tranquila nesta minha nova vida. Pensavam que, como Luzia, estaria tranquila. Foi quando, numa noite dessas eu vi o fogo. Estava muito quente e podia-se escutar as madeiras do teto estalando. Muita fumaça na sala onde estávamos. Foi quando ouvimos um grande estrondo e o teto desabou. Essa foi minha segunda morte.

Esse lugar que vocês chamam Museu, pegando fogo…essa foi minha segunda morte!

Contudo, minha segunda morte foi mais curta. Cerca de um mês depois, eu comecei a ouvir barulhos, movimento acima de mim. Estavam escavando atrás de meus restos de novo? Que obsessão é esta?

Depois de um tempo, me acharam ali, soterrada sob as cinzas do incêndio. Nunca vi tanto alvoroço. Os caras que estavam escavando gritavam. Alguns choravam de alegria. Eu estava de volta.

O MUSEU E A TRIBO

Soube que o lugar onde estava tinha um nome de Museu. Era um prédio grande e bonito. Mas sempre ouvia falar de problemas. O povo que cuidava de mim sempre reclamava que o prédio estava em perigo. Perigo de quê? eu pensava: de um ataque de bárbaros inimigos? De grandes animais selvagens?

No entanto, parece que eles não tinham recebido muito recurso para manter o Museu. Faltavam recursos para o prédio ser seguro, para evitar incêndios. Depois, os chefes da tribo de vocês não estavam interessados nessa história de Museu. Ouvi que um dos chefes havia reclamado: “Já pegou fogo, quer que eu faça o quê?”.

Preciso dizer que achei esta fala típica de bárbaro, desses bem primitivos. Eles nunca assumem a responsabilidade do que fazem, como crianças grandes. Falam alguma coisa, depois voltam atrás. Querem deixar tudo confuso. Ou não sabem direito o que estão fazendo. Minha segunda morte tem a ver com essa confusão dentro da tribo que me resgatou da caverna.

A VIDA É CURTA…

Agora, estou esperando ser reconduzida à minha sala tranquila. Lá, dezenas de pessoas passavam admirando meu esqueleto e vendo o modelo de meu rosto. Contudo, eu sei que ele não é meu verdadeiro rosto. Eu também bem sei, no entanto, que nunca vão adivinhar como era o meu verdadeiro rosto. Mas eu sinto um certo orgulho deste rosto eu virei.

à direita, o paradigma antigo; à esquerda, o paradigma atual…vocês continuam errando…

Os barbaros que me desencavaram  dizem que sou um dos humanos mais antigos do país deles. Me admiram. Os bárbaros que cuidam de mim me tratam muito bem. Entretanto, os chefes da tribo deles, não ligam para ossos de gente. Ouvi dizer que eles gostam de uma coisa chamada dinheiro. Por esse tal de dinheiro brigam o tempo todo. Algumas vezes, se matam.

Contudo, não sei o que aconteceu com minha tribo. Sinto saudades deles. Mas ao mesmo tempo admiro esta tribo barbara que tanto empenho tem de cuidar de mim. Apesar dos chefes que eles escolhem para eles mesmos. Podem me chamar de Luzia. Loo-dj-ahn já morreu uma vez. Luzia, outra. Espero ainda durar mais um pouco, ver mais algumas coisas, aprender.

Mas o que se pode esperar mais de uma curta vida de onze mil e poucos anos?

 

PS – agradeço à Gustavo Teramatsu por me alertar sobre o novo paradigma do rosto de Luzia

Morte, casualidade e explosões: ou como “fazer” um fóssil

Quando dois restos (fósseis) são encontrados lado-a-lado numa rocha, é possível afirmar com 100% de certeza que ambos viveram juntos e morreram juntos?

Ou ainda…

Quando se encontra um resto de um (ou mais) organismo(s) em determinado local, é possível afirmar de antemão que este(s) organismo(s) viveu(ram) ali?

Texto de Carl Sagan, cientista americano famoso por ser um grande divulgador de ciência.
Texto de Carl Sagan, cientista americano famoso por ser um grande divulgador de ciência.

Estas são algumas das perguntas que nós paleontólogos fazemos quando estudamos os fósseis de um determinado local. Já adianto que a resposta para ambas perguntas é negativa. Existem diversas situações envolvidas na preservação de um resto. É errôneo pensar que simplesmente por terem sido preservados lado-a-lado os organismos também conviviam (compartilhavam o mesmo ambiente), ou ainda, que morreram pelo mesmo motivo. Existem casos em que os organismos sequer viveram no mesmo momento, tendo milhares de anos de diferença entre si, mas são, por acaso, preservados na mesma camada, lado-a-lado.

Então se tivermos o seguinte registro: um dente de dinossauro (que viveu no Mesozoico) preservado ao lado da garra de uma preguiça gigante (do Cenozoico) nós temos em mãos um registro com mistura temporal. Estes dois organismos não compartilhavam o mesmo ambiente porque não viveram sequer na mesma era geológica (um é o Mesozoico e outro do Cenozoico). Mas como é que estes dois restos foram parar ali, juntos? Muitos são os eventos que podem levar à mistura temporal. Neste caso em específico podemos pensar que o dente de dinossauro já havia sido preservado e foi retrabalhado (carregado e depositado) com sedimentos mais novos que por um acaso continham restos do referido mamífero gigante… A mistura temporal é, portanto, uma das eventualidades que podem alterar/modificar o registro fossilífero, tornando-o um pouco mais difícil de ser compreendido.

Mas ainda antes de chegarmos à possibilidade da mistura temporal existe uma outra grande contingência: da preservação (ou não) do resto. É preciso que fique claro para você que nem todos os organismos produzem fósseis. Existe uma série de fatores que ocorrem deste o momento em que ele morre até o momento em que alguma pessoa o encontra.

Quais são, então, as chances de se produzir um fóssil? Em 99,9% das vezes em que um organismo morre, ele é destruído. Então (sendo otimista), em 0,1% dos casos a possibilidade existe, persiste. Pense, também, que quanto mais antigo este resto (ou vestígio) é, maiores são as chances de ele ser destruído, pois mais tempo a natureza tem para que ele seja “reciclado”. E ainda… mesmo que este fóssil persista até os dias atuais, quais são as chances de ele ser encontrado por alguém? Num planeta que atualmente possui 149,67 milhões de km2 de áreas emersas… as chances são pequenas (claro que do total dessa área, nem todas as rochas disponíveis são as sedimentares, mas mesmo assim, as possibilidades são baixas). Por isso escolhi a palavra: contingência, no sentido de acaso, eventualidade e/ou possibilidade (ou não) de algo acontecer.

Vou tentar ilustrar isso com o que vi e aprendi numa visita às cavernas de Sterkfontein, na área de Joanesburgo, África do Sul, e que, inclusive, está muito bem explicado neste vídeo. Vou contar a história da descoberta e das eventualidades envolvidas, voltando no tempo até o momento de “produção” deste registro do passado… me acompanhe!

Uma das cavernas abertas para visitação em Sterkfontein, no Berço da Humanidade, Johanesburgo, África do Sul
Uma das cavernas abertas para visitação em Sterkfontein, no Berço da Humanidade, Joanesburgo, África do Sul

Ali, numa área que é denominada “o berço da humanidade” os estudos paleoantropológicos ocorrem desde os anos 1935, na busca por fósseis de hominídeos. No entanto, a região foi imensamente explorada para a produção de calcário, antes de ser tombada como patrimônio da humanidade. Neste tipo de exploração, as cavernas são abertas por dinamites… sim, dinamites, explosões, destruição(!).

Mesmo tendo sido imensamente explorada, é bem plausível de se dizer que foram estas explosões que levaram às descobertas já feitas na região, uma vez que possibilitaram o acesso ao local e aos fósseis depositados dentro destas cavernas. Sim, é provável que muitos devem ter sido perdidos, explodidos, mas penso que, de outra forma, os cientistas não teriam conseguido chegar até ali;

…é ou não e muito acaso envolvido? Mas as eventualidades ainda não terminaram. As descobertas mais recentes, principalmente em cavernas que foram pouco exploradas pelos mineradores (ou seja, que sofreram menos implosões), são de hominídeos bastante completos, isto é, com muitos ossos de seus corpos preservados juntos, o que é extremamente raro na paleoantropologia. Segundo Lee Berger, um eminente paleontropólogo envolvido nas últimas descobertas dali, existem mais pesquisadores na área do que fósseis para se estudar. Então a descoberta de esqueletos de hominídeos com muitos ossos é excepcional.

Matthew Berger, o menino que encontrou um dos fósseis de hominídeos mais completo até o momento, o de Australopithecus sediba.
Matthew Berger, o menino que encontrou um dos fósseis de hominídeos mais completo até o momento, o de Australopithecus sediba.

Se voltarmos ainda mais no tempo e tentarmos imaginar os motivos que levaram a um hominídeo morrer ali, vamos perceber mais um “lance de dados” envolvido: as explicações científicas para estas descobertas apontam que as cavernas que possuem estes fósseis de hominídeos quase completos não eram seus locais de vida. Muito provavelmente, há cerca de 1,8 M.a., estes homens e mulheres do passado estavam caminhando na savana e inadvertidamente caíram para dentro das cavernas, onde pereceram, seus ossos fossilizaram, e foram descobertos após explosões dos mineradores da região os colocarem mais acessíveis aos cientistas que ali começaram a explorar o potencial fossilífero da região (anos 2000)…ufa…!

Quando alguém me pergunta se, durante minha vida profissional, já encontrei algum fóssil importante, a primeira coisa que vem em minha cabeça é… seria isso realmente essencial? Será que devo ir ao campo esperando encontrar um fóssil “importante”? e, afinal de contas, o que é um fóssil importante? Espero que o texto tenha conseguido mostrar que qualquer registro de vida do passado é importante e extremamente raro; e muitas são as casualidades envolvidas em sua preservação. Nada mais raro e especial que poder olhar para (um piscar de olhos) (d)o passado e compreendê-lo!

Até o próximo post!

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