Artefatos que importam: a Coluna-Serpente

serpent column.jpgA mistura de concisão e redundância da linguagem antiga é irresistível, pungente como só o passado consegue ser: tôide tôn pôlemon epolemêon, ou “por estes a guerra foi guerreada”, se você quiser a tradução mais literal possível. A inscrição está na Coluna-Serpente, que ainda hoje, detonada por quase 2.500 anos de agressões, pode ser vista no Hipódromo de Constantinopla — aliás, Istambul. A Coluna-Serpente é uma das poucas lembranças materiais da vitória gloriosa, e totalmente inesperada, de um punhado de pôleis (cidades-Estado) gregas sobre o Império Persa em 479 a.C.
O que vem depois da frase que eu citei acima é uma lista dessas 31 pôleis, a qual, no geral, é compatível com a que aparece na obra do historiador grego Heródoto, embora haja algumas divergências. Talvez você esteja se perguntando porque esse artefato de bronze é chamado de Coluna-Serpente. É muito simples, Comissário: originalmente, o topo da coluna era encimado por três cabeças de réptil, as quais, por sua vez, serviam de apoio para um caldeirão de ouro.
O conjunto foi dedicado (isto é, ofertado) ao templo do deus Apolo em Delfos, o grande santuário “nacional” dos gregos, como sinal de gratidão pela vitória contra os persas. Nada mais natural do que oferecer uma serpente a Apolo, uma vez que o principal mito associado ao deus fala de sua vitória contra a serpente Píton na própria Delfos, evento que teria levado à fundação do santuário. A ironia é que, na época da invasão persa na Grécia, os sacerdotes do lugar adotaram discretamente uma linha colaboracionista de ação — estratégia rapidamente esquecida quando os gregos venceram.
Quando Constantinopla foi fundada no século IV da nossa era, o monumento foi levado para adornar o hipódromo da nova metrópole, onde está até hoje. Até o fim do século XVI as cabeças de serpente ainda faziam parte do objeto, como se pode ver nesta gravura da época otomana, abaixo. UPDATE, a pedidos dos leitores: embora não se saiba exatamente como as cabeças dos répteis caíram, pedaços de algumas delas foram recuperados e estão hoje num museu de Istambul. Clique aqui para ver uma delas.
serpent column2.jpg
Um último detalhe que me é um bocado caro: originalmente, a inscrição na Coluna-Serpente fazia referência não às cidades gregas, mas unicamente ao comandante-em-chefe da batalha decisiva contra os persas, o regente espartano Pausânias. Ao saber da insolência (Pausânias mandou gravar versos em seu louvor sem o conhecimento de sua pôlis), as autoridades de Esparta mandaram apagar a inscrição e substituí-la pela que conhecemos. Apesar de suas muitas falhas, os gregos tinham consciência de que os grandes feitos da história são forjados a muitas mãos.

Poluição inca

ResearchBlogging.orgcoroa.jpgDepois que os espanhóis chegaram, Huancavelica, na região central do Peru, ganhou o apelido de mina de la muerte. Mas bem que ela merecia ter o mesmo nome nas muitas línguas indígenas faladas nos Andes antes do Descobrimento. O motivo? Huancavelica, como mostra um estudo recente na revista científica “PNAS”, foi uma fonte considerável de poluição por mercúrio ao longo de milênios de pré-história andina.
Os dados foram levantados pela equipe cujo líder é Colin Cooke, da Universidade de Alberta, no Canadá. Que Huancavelica tinha ajudado a poluir os Andes a partir do domínio espanhol todo mundo já sabia, principalmente porque o mercúrio era o principal meio para se minerar prata durante a era colonial — o metal líquido era amalgado ao minério de prata. Não se imaginava, contudo, que as civilizações pré-colombianas da região também tivessem produzido tanta poluição.
Está tudo nos lagos
Foi o que Cooke e companhiam descobriram ao examinar sedimentos depositados no fundo de lagos da região. As camadas desses sedimentos formam um registro bastante completo do que andava acontecendo na superfície vizinha, e elas podem ser datadas por meio de isótopos radioativos, entre eles o famigerado carbono-14.
O que essas fatias de sedimentos lacustres revelam é, primeiro, um longo período de acúmulo lento, contínuo e estável de mercúrio no fundo dos lagos. A partir de 1400 a.C., a proporção de mercúrio começa a crescer, até atingir dez vezes o nível original do elemento em torno de 600 a.C. Após quase 2.000 anos de oscilações nesse patamar, com retornos ao padrão original e algumas fases de aumento da proporção de mercúrio, a coisa dispara novamente por volta do ano 1400 da nossa era, com registros de níveis do metal entre 55 e 30 vezes o esperado pela deposição natural de minérios.
Não parece muito difícil entender o porquê desses aumentos de poluição. Os dois grandes picos poluidores, de 600 a.C. e 1400-1500 d.C., batem com o apogeu dos impérios Chavín e Inca, respectivamente — dois dos principais Estados pré-históricos a dominar vastas áreas dos Andes.
Simplesmente um luxo
Ambos os impérios tinham em comum o gosto por adornar seus artefatos de ouro (como a coroa Chavín vista acima) com o vermelhão, corante vermelho (duh!) que é a forma pulverizada do cinabre, ou sulfeto de mercúrio (HgS). O vermelhão também era empregado como pintura corporal nos Andes pré-históricos.
Ou seja: ao contrário do que se viu na era colonial, as antigas civilizações andinas tinham como principal motor de sua atividade mineradora e poluidora a obtenção de bens de prestígio, ou seja, de ferramentas de ostentação social para a nobreza. Taí mais uma prova de que os seres humanos do século XXI não inventaram o conceito de fazer coisas estúpidas com o ambiente só para aparecer.
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Cooke, C., Balcom, P., Biester, H., & Wolfe, A. (2009). Over three millennia of mercury pollution in the Peruvian Andes Proceedings of the National Academy of Sciences, 106 (22), 8830-8834 DOI: 10.1073/pnas.0900517106

Monoteísmo e política

Enquanto não dou um jeito de pilotar um post novo decente, gostaria de direcionar a atenção do gentil leitor ao interessantíssimo texto no blog do professor Osame Kinouchi, velho amigo e leitor, seja na era G1, seja por aqui.
Trata-se de uma análise muito legal dos aspectos políticos e sociais, e não apenas religiosos, que estão embutidos nos textos bíblicos. Parte das conclusões são especulativas, outras andam sendo questionadas — como a associação do Gênesis à época de Salomão — mas vale muito a leitura.

Vote no Carbono-14 no I Prêmio ABC para Blogs Científicos!

Foi dada a largada para a votação do I Prêmio ABC para Blogs Científicos, uma iniciativa do Anel de Blogs Científicos do Laboratório de Divulgação Científica da USP de Ribeirão Preto. O Chapéu, Chicote e Carbono-14 está concorrendo na categoria Ciências Sociais e Educação (Ciências Sociais e humanidades + Educação e Blogs Didáticos). Eu poderia estar roubando, eu poderia estar matando, mas estou aqui pedindo o SEU voto 😉
Mas calma: o esquema de votação é por pares, e não pelo público em geral, o que significa que só os blogueiros já cadastrados no Anel de Blogs Científicos terão direito a voto. Portanto, se você é um deles, agradeço se puder considerar minhas humildes aventuras arqueológicas dignas dessa honraria. E, claro, não se esqueça de votar também nos demais colegas do ScienceBlogs Brasil que estão nessa disputa, e que certamente merecem estar entre os primeiros do país!

Cachorro-quente das cavernas?

ResearchBlogging.orgperritofeo.jpgLeio no jornalão americano “New York Times” uma proposta mirabolante para explicar a domesticação dos cães: fazer cachorro-quente. Literalmente. Peter Savolainen e seus colegas do Real Instituto de Tecnologia de Estocolmo, na Suécia, afirmam que os primeiros totós a serem criados por humanos serviram de comida, e só depois passaram a ser tratados como companheiros de caça, guardas e animais de trabalho.
É claro que a hipótese tem apelo popular, em parte por ser nojenta, em parte por ser um tanto cômica. Mas, quando olhamos os dados científicos publicados por Savolainen e companhia, é difícil evitar a impressão de que eles estão forçando um pouco a barra. Tanto que a ideia do filé de buldogue nem entra no resumo do artigo, recém-publicado na revista especializada “Molecular Biology and Evolution”.
O que Savolainen e companhia realmente fizeram foi analisar o DNA mitocondrial (aquele presente nas mitocôndrias, as usinas de energia das células) de cerca de 1.500 cães, em busca de padrões geográficos e de uma data estimada de domesticação. Segundo eles, a diversidade genética indica uma origem única, no sul da China, há uns 12 mil anos, quando a agricultura e a vida sedentária estava emergindo na região.
Beleza. Nada contra. O problema é fazer o pulo-do-gato (só pra combinar com quem quer sacanear a cachorrada) da origem no sul da China para o uso culinário dos cães. É fato que levar cachorros para a panela é comum nessa parte do mundo; também é fato que, em alguns sítios arqueológicos de lá, foram encontrados ossos de cachorro com marcas de corte. Daí a estabelecer que a motivação da domesticação foi devorar os bichos é ir um tanto longe demais.
Primeiro, “esse documento não prova nada”, como diz o Báteman: marcas de corte podem só significar sepultamento secundário, em que o corpo é descarnado antes do enterro. É preciso usar critérios mais detalhados pra provar o consumo culinário da carne. Também é preciso saber o quão comuns são esses sítios de churrasco de cachorro, e que idade eles têm. Finalmente, algum chinês pré-histórico pode muito bem ter comido seus cãezinhos no desespero, e não como algo rotineiro — em situação de guerra, nem os alemães desprezavam um salsichão canino, diz a lenda.
O que a gente sabe de outras culturas sobre o consumo de carne de cão — caso dos polinésios ou dos astecas, que curtiam fatiar o xoloitzcuintle, raça careca que você vê na foto acima — é que em geral ele é motivado ou favorecido pela relativa falta de outras fontes de proteína animal. Surgiram raças já dedicadas ao abate — motivo pelo qual o xoloitzcuintle foi selecionado para ser careca. Pode até ser que esses critérios sejam satisfeitos pelos mais antigos cães chineses, mas, por enquanto, a ideia parece especulol puro.
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Pang, J., Kluetsch, C., Zou, X., Zhang, A., Luo, L., Angleby, H., Ardalan, A., Ekstrom, C., Skollermo, A., Lundeberg, J., Matsumura, S., Leitner, T., Zhang, Y., & Savolainen, P. (2009). mtDNA Data Indicates a Single Origin for Dogs South of Yangtze River, less than 16,300 Years Ago, from Numerous Wolves Molecular Biology and Evolution DOI: 10.1093/molbev/msp195

Ceticismo bíblico, parte 1: Eclesiastes

Ecclesiastes.jpgDepois de passar algumas (várias) semanas no olho do furacão do jornalismo científico, finalmente arranjei um tempinho para dar início à minha tão propalada série bíblica aqui no blog. Promessa é dívida: “o que você jurar, cumpra”, como diz o autor do livro que é o primeiro da nossa lista de céticos israelitas. Falo de Koheleth, ou, se você preferir a tradução grega do apelido, o Eclesiastes.
Tanto em hebraico (língua original do livro de Eclesiastes) quanto em grego, a palavra significa algo como “o sujeito que reúne, que monta um conjunto” – “Eclesiastes” tem a mesma origem do grego ekklessía, “assembleia”. O problema é saber o que nosso amigo Koheleth reunia, afinal: alguns acham que a palavra se refere à reunião de pessoas mesmo, como nas assembleias das cidades-Estado gregas; outros apontam que a reunião é de provérbios, sermões e ditos sábios, os quais compõem o livro. Claro que os dois sentidos não são autoexcludentes.
Presente em qualquer Bíblia, seja ela católica, protestante ou judaica, o Eclesiastes tem uma série de características interessantes que sugerem que ele foi escrito tardiamente se comparado ao resto do Antigo Testamento (uma data em torno de 400 a.C. ou pouco depois talvez seja um bom chute).
A gramática do texto não é lá muito castiça, e há duas palavras de origem persa no livro, pardes (“jardim”, origem da nossa palavra “paraíso”) e pitgam (“sentença”). Ora, a influência cultural persa só começou a se fazer sentir no fim do século VI a.C., quando a Pérsia conquistou todo o Oriente Médio antigo. Por isso mesmo, embora o Koheleth se identifique na primeira pessoa como “filho de David, rei em Jerusalém”, tudo indica que se trate de outro traço comum dos livros bíblicos tardios: a pseudoepigrafia, uma espécie de ghost-writing. No caso, o autor bíblico assume o manto de um grande personagem do passado para ressaltar sua autoridade — até porque não havia mais reis no que restou do território israelita durante o domínio persa.
Vento, vento, vento
Depois desse breve cenário, vamos ao que interessa: conteúdo. Uma palavrinha hebraica, hevel (algo como “ar”, “vento”, “sopro”), é a chave para se entender o pensamento cético e pessimista do misterioso Koheleth. Traduzida às vezes como “vaidade” ou “futilidade”, hevel é, para o autor, o sinal da impossibilidade do homem de achar algum grande padrão ou ordem nos acontecimentos cósmicos.
Nesse ponto, o Koheleth diz coisas que não ficariam deslocadas na boca de um deísta — ou seja, um sujeito que até acha que Deus criou as leis do Universo, mas que depois disso deixou basicamente a natureza seguir seu curso sem interferências. Esses ritmos naturais são imutáveis, diz ele no capítulo 1:
“Só acontecerá/O que já aconteceu/Só ocorre/O que já ocorreu/Não há nada de novo/Debaixo do Sol!”
Mais do que isso, em vários pontos o Koheleth parece desafiar um dos pressupostos fundamentais da religião israelita mais tradicional: a ideia de que Deus basicamente recompensa os bons e pune os maus. O mundo real é muito mais complicado, diz o autor:
“E eis outra frustração: o fato de que a sentença imposta pelos atos maus não é executada rapidamente, e é por isso que os homens têm coragem de fazer o mal — o fato de que um pecador pode fazer o mal cem vezes, e ainda assim sua punição é adiada (…) Pois o mesmo destino aguarda a todos: ao justo e ao injusto; ao bom e ao puro, e ao impuro; ao que sacrifica [a Deus] e ao que não sacrifica; ao que é agradável e ao que é desagradável (…) Essa é a coisa mais triste em tudo o que acontece debaixo do Sol: o mesmo destino aguarda a todos.”
O bicho homem
Alguns especialistas no estudo do texto bíblico sugerem que o Koheleth escreveu sua obra numa época em que a religião judaica estava começando a adotar a crença na imortalidade da alma e em recompensas ou punições depois da morte, sob influência dos persas e, mais tarde, dos gregos. O autor do livro, no entanto, é categórico: a morte é o fim — uma visão mais antiga que parece ter predominado entre os autores dos livros bíblicos anteriores. Ele diz que a diferença entre humanos e animais, nesse sentido, é pequena, ou até inexistente:
“Então eu decidi, no que diz respeito aos homens, não compará-los a seres divinos, mas encarar o fato de que eles são animais. Pois, em relação ao destino do homem e o destino do animal, eles têm o mesmo destino: como um deles morre, assim também morre o outro, e ambos têm o mesmo hálito vital; o homem não tem superioridade em relação ao animal, uma vez que ambos de nada valem. Ambos vão para o mesmo lugar; ambos vêm do pó e para o pó retornam.”
Diante desse pessimismo todo, será que é o caso de cortar os pulsos? Não, diz o Koheleth. O homem tem de se conformar com sua pequenez e aproveitar, sempre que possível, o que a vida tem de melhor:
“Vá, coma seu pão em contentamento, e beba seu vinho em alegria; pois sua ação foi há muito tempo aprovada por Deus. Que suas roupas estejam sempre lavadas, e que na sua cabeça nunca falte perfume. Desfrute a felicidade com uma mulher que você amar todos os dias de sua vida que lhe forem concedidos debaixo do Sol (…) O que quer que esteja em seu poder fazer, faça-o com toda a sua capacidade. Pois não há ação, nem raciocínio, nem aprendizado, nem sabedoria no Sheol [a região dos mortos para os israelitas antigos, parecida com o Hades grego], que é para onde você vai.”
Portanto, se eu fosse resumir numa única frasezinha grudenta o conteúdo do Eclesiastes, acho que parafrasearia a famosa campanha dos ônibus ateus: “Provavelmente existe um Deus, mas nunca dá pra saber se e quando Ele vai intervir nos assuntos humanos; então, pare de se preocupar e aproveite a vida”.
Mas hein?
O mais curioso de toda essa história é que, embora os organizadores anônimos da Bíblia hebraica tenham aceitado colocar esse livro cético na lista dos considerados inspirados por Deus, eles também parecem ter tentado “domesticar” o significado dele, ao menos em parte.
Alguns parágrafos no último capítulo do Eclesiastes parecem ter sido acrescidos por um editor e basicamente desdizem as afirmações mais perturbadoras do autor original. A probabilidade de eles serem de um autor secundário é alta porque eles aparecem logo depois de uma fala que espelha exatamente a abertura do livro, quase como um refrão. Os autores antigos costumavam usar essa estrutura em espelho, ou “inclusio”, para fechar seu raciocínio. A frase final quebra essa unidade, dizendo:
“O resumo do tema, no fim das contas, é: reverencie a Deus e observe seus mandamentos! Pois isso se aplica a toda a humanidade: que Deus pedirá contas de toda criatura por todas as coisas desconhecidas, sejam elas boas ou más.”
Essa mensagem se encaixa perfeitamente com a visão tradicional da religião israelita, mas tem pouco a ver com o pensamento iconoclasta do Koheleth.
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O nosso próximo cético bíblico é o autor do livro de Jó, também no Antigo Testamento. Não percam!

Unesp Ciência: enfim, os links

Graças às boas graças (oops!) da nobre Giovana Girardi, temos os links da recém-lançada Unesp Ciência. É só clicar aqui para se esbaldar, macacada. Foi mal pelo quiprocó de ontem.

Mea culpa, mea maxima culpa

A relação entre cientistas e jornalistas nem sempre é fácil, como muita gente que nos visita aqui no ScienceBlogs está careca de saber. Por uma mistura de cansaço, descuido, pressa e azar, acabei publicando na Folha desta semana uma reportagem que desagradou bastante meu entrevistado, José Eduardo de Carvalho, da Unifesp de Diadema. O professor José Eduardo enviou uma carta a ser publicada no jornal sobre o problema, mas como o espaço de cartas é sempre limitado, achei que seria interessante colocar todas as críticas por aqui. É o mínimo que posso fazer como mea culpa. Seguem os comentários abaixo, enviados por e-mail.
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Prezado Reinaldo,
acabei de ler o artigo com atenção e percebi que nele há imprecisões que não deveriam ter sido publicadas sem revisão por este jornal!
Vou tentar apontar algumas coisas do que li:
1. “As pesquisas com um sapo e uma perereca habituados à secura do sertão estão revelando truques fisiológicos e comportamentais inusitados, que permitem aos bichos aguentar a falta d’água.”
Comentário: Desde quando, na história da biologia, ajustes fisiológicos e comportamentais tão importantes quanto esses apresentados por estes animais são “truques” “inusitados”. Há vasta literatura sobre o assunto e nós construimos nossas hipóteses sobre “décadas” de pesquisa sobre animais tolerantes a estas condições. Creio que por mais glorioso que seja o espírito de divulgação da ciência, esta tem que ser feita com termos apropriados, o que não necessariamente são técnicos.
2. “José Eduardo de Carvalho, da Unifesp de Diadema (Grande São Paulo), apresentou resultados recentes de seus estudos sobre o tema na reunião anual da Fesbe (Federação de Sociedades de Biologia Experimental), que terminou sábado em Águas de Lindoia (SP)”
Comentário: Já disse nas mensagens anteriores e na palestra na Fesbe que esses trabalhos são de uma colaboração com pesquisadores da USP (Carlos Navas e Isabel Cristina Pereira). É bastante injusto ver isso escrito na forma como está.
3. “Contudo, as observações de Carvalho com o sapo sertanejo Rhinella granulosa subvertem essa lógica. “Os juvenis da espécie, depois de concluírem a metamorfose [de girino para sapo], passam toda a estação seca ativos. São sapos pequenininhos pulando num solo com 50ºC de temperatura”, contou o pesquisador à Folha.”
Comentário: Nós não sabemos ao certo o que estes animais fazem, e aspectos fisiológicos relacionados com a tolerância a altas temperaturas já foram bastante explorados em diversos trabalhos. O nosso trabalho ( 2007 Comparative Biochemistry and Physiology, Part A 147: 647-657) discute isso e explora o assunto em uma espécie de interesse nacional.
4. “O que acontece, ao que tudo indica, é que as enzimas (proteínas aceleradoras de reações químicas) que regem o ciclo respiratório dos sapinhos são capazes de resistir intactas a essas temperaturas, que derrotariam qualquer ser humano”.
Comentário: A frase “que derrotariam qualquer ser humano” me levou a pensar que humanos não poderiam viver na temperatura das caatingas, o que não é o caso.
5. “A gente ainda não sabe como ele consegue isso”, afirma Carvalho. A hipótese do pesquisador é que outras substâncias, as chamadas chaperonas, formam um invólucro que impede as enzimas de simplesmente derreter. O interessante é que o sapo adulto, de porte mais avantajado, perde o gosto pela vida no limite e adota hábitos noturnos”
Comentário: as proteínas chaperonas (estudadas a décadas!) não são “substâncias”, e formar um “invólucro que impede as enzimas de simplesmente derreter” é conceitualmente errado! As chaperonas não formam “invólucros” e proteínas (como as enzimas) não “derretem”. Isso tudo, apesar de ter um espírito de divulgação voltado ao publico leigo ao assunto, não é adequado.
6. “A situação da perereca Pleurodema diplolistris é ainda mais inusitada. Em ambientes secos, muitos animais adotam a chamada estivação, que pode ser considerada a “irmã gêmea” da hibernação em ambientes onde o calor intenso, e não o frio, é o inimigo. Animais que estivam também podem ficar numa espécie de animação suspensa até o calor amainar.”
Comentário: O conceito de estivação ainda é muito discutido e não sabemos se P. diplolistris realmente estiva nos moldes tradicionais. As evidências do trabalho mostram isso. mas dizer que a estivação é a “irmã gêmea” da hibernação ficou mais uma vez inadequado e, conceitualmente, errado. Ainda que P. diplolistris estive, certamente não são necessariamente as altas temperaturas que levam a isso, mas a falta de recursos hídricos. Como eu salientei na palestra, o regime de chuvas – e não a temperatura – tem mais relação com as fases de atividade e inatividade – aparente – dos animais.
7. “Mas não a P. diplolistris. “Considera-se que o bicho estiva, mas na verdade nós vimos que ele, ao se enterrar, fica se movendo o tempo todo, buscando as áreas do solo arenoso onde há mais umidade”, diz Carvalho. Seria um tipo de estivação com “insônia”.
Comentário: Ainda não sabemos se os animais ficam se movendo o tempo todo. Nós temos evidências de que estes parecem se enterrar cada vez mais profundamente quando há um prolongamento da estação seca. Mas nós não sabemos a que taxa os animais se movem, ou mesmo se fazem isso de fato ou foi apenas um achado coincidente. Mas dai dizer que Pleurodema diplolistris “estiva” mas tem “insônia” também é inadequado.
8. “Carvalho faz parte do recém-criado Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Fisiologia Comparada, iniciativa que reúne diferentes centros do Brasil. As pesquisas que o grupo conduz vai muito além da curiosidade pelo inusitado.”
Comentário: Eu de fato hoje em dia faço parte do INCT em Fisiologia Comparada, mas todos os trabalhos apresentados foram realizados em grande colaboração com o Prof. Carlos Arturo Navas (do Instituto de Biociências da USP de São Paulo) e com a aluna de mestrado (co-orientada por mim) Isabel Cristina Pereira. Isso foi deixado claro diversas vezes na palestra e nas mensagens. Os dois trabalhos, com R. granulosa e com P. diplolistris, foram financiados pelo projeto do Prof. Carlos Navas provenientes da FAPESP. É injusto não ressaltar a importância do trabalho sem mencionar isso. Como disse, o trabalho com Rhinella granulosa já esta publicado, e aquele com P. diplolistris é a tese de mestrado da Isabel que ainda nem foi defendida.
9. “Os animais que estudamos podem ser modelos interessantes de diversas situações fisiológicas”, diz outro membro do instituto, Luciano Rivaroli, da Universidade Federal de São João del Rey (MG).”
Comentário: O Prof. Luciano é um grande amigo, mas ele nada tem com estes trabalhos com anuros. Da forma como está na matéria ele acaba levando mais crédito do que o meus colaboradores mais próximos.
Apesar de todos esses equivocos, creio que os principais problemas seriam prontamente solucionados se eu tivesse tido a chance de ler o conteúdo da matéria antes dessa ser publicada. Se isso fosse feito, o objetivo da reportagem de levar ao publico externo à universidade a divulgação dos conhecimentos que aqui são gerados teria sido alcançado com grande sucesso e com GRANDE GRATIDÃO de minha parte. Acredito que encurtar o caminho que existe entre a universidade e a comunidade é a melhor forma de construirmos um país melhor e próspero, livre de preconceitos e enganações.

Orgulho do tio

O Brasil ganha hoje uma nova revista de divulgação científica, a Unesp Ciência, patrocinada pela universidade homônima. Escrevi uma reportagem para o primeiro número, mas não é sobre isso que quero falar, não. Escrevo apenas para ressaltar o PRIMOROSO texto da nossa colega Scibling Luciana Christante, do Efeito Adverso, sobre o trabalho da arqueóloga Ruth Künzli. É uma das visões mais gostosas de ler sobre o dia-a-dia da arqueologia que já apareceram nos últimos tempos. Parabéns, Lu! E leiam — afinal, é de grátis 😉

O jeito certo e o jeito do Indy

Eu sempre achei que o Indy tinha alguns probleminhas com o método científico.
indiana.jpg
Dica do sempre alerta Atila, visto por ele no Capinaremos.

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