O milagre do milagre
Sempre achei curiosa a deferência com que a mídia trata os anúncios de milagres reconhecidos pelo Vaticano, os tais que podem levar este ou aquele beato a virar santo. Afinal, quando um guru indiano afirma que uma estátua do deus-elefante Ganesh está bebendo leite, a notícia sai, se sair, como uma curiosidade tola, ao lado da cabra de duas cabeças e da mais recente bebedeira de Mel Gibson.
Já quando uma autoridade católica anuncia um milagre, o assunto não só migra para as páginas mais nobres, como o tratamento, longe de ser crítico, oscila entre o neutro e o reverente. Por quê?
Nas faculdades de jornalismo, ensina-se que, entre os critérios para definir o que é notícia estão o número de pessoas interessadas na questão e a proximidade entre o público e o fato. Esses critérios explicam o maior espaço dado aos santos católicos: o catolicismo é a segunda maior religião do mundo (atrás do islã), e ainda predomina no Brasil.
Nada disso dá conta, porém, da reverência.
Existe um argumento muito elegante, do filósofo David Hume (1711-1776), que diz, resumidamente, o seguinte: o que parece mais impossível: a pessoa que narra o milagre estar enganada (ou mentir) ou o fato ter acontecido como ela diz? Na dúvida, é sempre mais prudente optar pela “impossibilidade” menor.
Jornalistas já aplicam um princípio parecido às promessas dos políticos. Só a religião é que parece imune.
No caso dos processos de canonização, nem é preciso chegar à filosofia. Basta estatística. No geral, esses “milagres” são curas, ditas inexplicadas – adjetivo que, numa manobra retórica não exatamente honesta, vira, muitas vezes, “inexplicáveis” – e, portanto, atribuídas, na falta de coisa melhor, a orações para o beato em questão.
Agora, comunidades católicas geralmente lançam grandes campanhas pela canonização de seus beatos favoritos. Isso põe centenas, milhares ou, até, milhões de pessoas, com problemas diversos, rezando para o candidato.
Num escala dessas, alguém obter uma “graça milagrosa” não é mais difícil do que alguém ganhar na loteria. É a chamada lei dos grandes números: se uma coisa tem 0,01% de chance acontecer, ela ocorrerá, por puro acaso, mais um menos uma vez a cada dez mil tentativas.
Claro, pessoas religiosas estão livres para chamar o acaso de milagre, se lhes aprouver. O que não é certo é o jornalista passar adiante uma afirmação de fé como se fosse uma confirmação de fato. Há, afinal, o risco de Ganesh aparecer para exigir tratamento igual…
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