Um pouco de ficção edificante

Os chamados gêneros fantásticos (ficção científica, fantasia, o chamado “fantástico literário” de Borges e Poe, etc.) são uma forma literária cultivada por apologistas religiosos de vários timbres e persuasões.

No caso da fantasia isso até não surpreende tanto — uma pessoa disposta a organizar sua vida em torno de poemas épicos da Idade do Bronze cedo ou tarde deve sentir a tentação de criar os próprios, como JRR Tolkien fez em “O Senhor dos Anéis” — mas a ficção científica também é um campo fértil para investidas do tipo. O que, para mim ao menos, sempre foi meio surpreendente.

Essa apropriação da fc pelo proselitismo costuma ter uma forma muito clara: ao final da narrativa, os orgulhosos cientistas vêem como os humildes padres/sacerdotes/profetas é que estavam mesmo certos, e acabam mortos, loucos ou submetem-se de bom grado a alguma forma abjeta de conversão. Talvez o melhor exemplo dessa tendência seja o ótimo (ei, qualidade independe de ideologia) “Um Cântico para Leibowitz“, de Walter M. Miller Jr.

Mas, claro, a cada ação corresponde uma reação, se me permitem tirar as leis de Newton de contexto por um momento. O fantástico conto The Streets of Ashkelon de Harry Harrison, sobre um padre que tenta leavr a palavra de Cristo a uma comunidade de ETs, talvez seja o manifesto de ateísmo mais forte e conciso já escrito, e há alguns anos foi publicada nos EUA a antologia Galileo’s Children, uma poderosa coletânea de histórias que põem a superstição (e a religião) no devido lugar.

Isso, em termos internacionais. A ficção científica brasileira, infelizmente, ainda é muito permeada pelo tipo de “moral da história” em que tradição/sentimento/misticismo dão de dez a zero na fria racionalidade.

Felizmente, há sinais de que esse negócio está dando no saco. Um exemplo que deixo aqui é o conto Cardeais em Órbita, publicado no suplemento online Palavra do Le Monde Diplomatique brasileiro.

Espero que, depois deste exemplo, surjam outros!

Discussão - 1 comentário

  1. Patola disse:

    Falar de J.R.R. Tolkien é uma oportunidade boa para citar C. S. Lewis. Como Tolkien, Lewis era bastante religioso; no entanto, diferente de Tolkien que manteve seus contos longe de sua ideologia cristã, Lewis permeou seus famosos contos Crônicas de Nárnia recheados de referências e morais religiosas.Então surgiu um sujeitinho chato chamado Philip Pullman - ateu - e no final do século XX, redigiu também uma trilogia de contos chamada "Fronteiras do Universo" (His Dark Materials) que foi aclamada por toda a crítica. Detalhe? Pullman não é só ateu, mas ateu bastante convicto e transpareceu isso em sua obra, em que se encontra forte caráter anti-religioso (especialmente em resposta à obra de Lewis). O filme que saiu agora, vindo de Hollywood e o primeiro da trilogia, "A Bússola Dourada", teve o roteiro fortemente editado pra remover as referências anti-religiosas e apetecer a um público mais amplo.A interessante é que isso tudo serve de termômetro para avaliar o fanatismo dos religiosos: qualquer busca na web revelará sítios religiosos escandalizados com o sucesso da obra de Pullman, tentativas de boicote, bloqueios descarados da obra e demais atitudes histéricas típicas de religiosos. Em contrapartida, uma busca pela obra de C. S. Lewis (muito mais antiga) vai ter alguma escandalização também pelo proselitismo religioso, mas nada mais forte do que isso: nenhum bloqueio ou mesmo boicote, nenhuma alteração drástica no roteiro, nenhuma associação de velhas piradas fazendo protestos.Esse é o mundo em que vivemos!

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