Hóstia roubada e obscurantismo medieval

Acho que todo mundo (ou, ao menos, todo mundo que tem alguma afinidade por este blog) já conhece a hilariante história da hóstia seqüestrada por um estudante americano na Flórida e suas repercussões — por exemplo, a campanha desencaedada por grupos católicos contra um professor de biologia que teve o displante de comentar o caso dizendo que “isso não passa de um maldito biscoito!”.

(Não está claro se os católicos se opuseram mais ao uso da palavra “maldito” ou a “biscoito”)
Mas o ponto para o qual eu gostaria de chamar atenção é o verdadeiro estupro da lógica e do bom senso presente na doutrina católica da transubstanciação, segundo a qual cada hóstia consagrada é, de fato, o corpo de Jesus Cristo. Veja bem: não é que a hóstia simboliza ou representa Cristo. Ela é, na verdade, um pedaço de carne humana, que só parece ser um pedaço de pão.

Essa doutrina é, talvez, o exemplo mais claro de como a teologia é capaz de manipular palavras e distorcer significados até reduzir tudo a um amontoado de sons e marcas no papel que, embora tenham um sentido familiar, na verdade expressam conceitos totalmente diversos dos esperados. É o equivalente lógico de insistir que um saco de açúcar cheio de pimenta na verdade contém açúcar porque, afinal, é um saco de açúcar.
No caso da transubstanciação, essa versão medievla da novilíngua orwelliana se vale da velha distinção aristotélica entre “acidente” e “substância”. Em linhas gerais, trata-se de uma distinção que faz sentido: madeira é madeira (substância) mas pode ser usada para fazer portas, cadeiras, carroças (acidentes). Assim, substância é o que a coisa é; acidente é a forma que ela assume.
Aqui também é interessante notar a distinção platônica entre essência e aparência: uma cadeira, por exemplo, é essencialmente uma superfície para sentar, com apoio para as costas (sem o apoio, seria um banquinho). As diversas cadeiras possíveis, com seus vários materiais, cores, estofados, número de pernas, formatos, etc., partilham da mesma essência, digamos, cadeiral, mas divergem em aparência.
No caso da hóstia, o dogma católico diz que, embora mantenha todos os acidentes e aparências de um, para citar o professor americano, “maldito biscoito”, uma vez consagrada ela passa a ter a substância e a essência do corpo de Jesus Cristo.
Agora, pense um pouco no que isso significa: que todas as características do biscoito — cor, cheiro, sabor, massa, descendo até a estrutura molecular — não passam de meros detalhes, acidentes, aparências. Se levarmos a transubstanciação a sério, teremos de concluir que o conjunto total das propriedades mensuráveis de um objeto, ou de um ato, não nos permite dizer o que ele de fato é.
Assim, eu poderia olhar para um cachorro e dizer que ele é, em essência, um transatlântico. Ou cometer um homicio e dizer que, em essência, fiz um arranjo floral. Ou corromper o Congresso Nacional e dizer que a substância do que fiz foi impor a ética na política.

E o Bento XVI reclama do relativismo dos tempos modernos. O que ele não quer, acho, é concorrência…

Discussão - 1 comentário

  1. xisxis disse:

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