Cartesianos do mundo, uni-vos!

Não sei se é trauma da minha formação acadêmica — em Comunicação Social, no início dos anos 90 — mas hoje me dia toda vez que ouço a palavra “paradigma”, tenho uma reação semelhante à atribuída a Hermann Göring quando o marechal nazista ouvia “cultura”. Com a desvantagem de que não ando armado. 
Aquela foi uma época onde o legal era grokar (com o perdão do nerdismo) coisas como “holismo“, “teoria geral dos sistemas” e o trabalho de Thomas Kuhn sobre revoluções científicas, tudo isso nas versões devidamente infladas e distorcidas de gente como Fritjof Kapra e piores e visto, claro, pela lente estreita do marxismo ingênuo da academia,  onde ter senso crítico era, basicamente, não criticar o professor mas falar mal de todo o resto.
Eu me lembro de ter achado isso tudo muito estranho — certa vez, durante um rant de uma professora marxista-freudiana (devia ser astróloga também, acho) sobre como a ciência é um discurso de reafirmação do patriarcado opressor burguês, perguntei-me qual seria o subtexto opressor, machista e pequeno-burguês da fómula de Bhaskara. Talvez o “sobre 2a” insinue uma menàge onde duas mulheres têm papel subalterno?
Enfim… Naquela época, a pior ofensa que se podia fazer a alguém — pior que “feio”, “bobo” ou “malufista” — era “cartesiano”. 
Juro que demorei a entender direito o que estava dando a Descartes essa má reputação. Digo, ninguém lá estava falando mal dos argumentos sofríveis que ele ofereceu para demonstrar a existência de deus; nem do dualismo radical mente-corpo que ele defendeu e que desencaminhou a psicologia por séculos; nem mesmo de sua teoria dos vórtices, uma tentativa mal-sucedida de explicar a força da gravidade.
Será que o pessoal de Humanas era tão ruim em matemática que detestava a Geometria Analítica?
Não: o problema com Descartes era o Método. O filósofo francês havia proposto um método para resolver problemas complicados que, em resumo, era o seguinte: divida-o em problemas mais simples; resolva cada problema simples separadamente; faça uma revisão para ver se não deixou escapar nada; junte as soluções simples.
A idéia anticartesiana, nesse sentido, era a de que campos como a ecologia, a fisiologia e a administração de empresas (ou países) vinham demonstrando que existem problemas que não podem ser subdivididos dessa forma. Que era preciso haver uma abordagem totalizante — “sistemática” ou “holística”.
Essa crítica até que faz sentido mas, como tudo que desperta entusiasmo, pode ser levada longe demais: porque, mesmo em abordagens holísticas, não há como escapar, de vez, do método cartesiano: a própria definição do que é um problema representa um recorte da realidade. Você está dividindo o universo, que é El Gran Problemón, em problemas menores e resolvendo-os, um de cada vez: uma coisa é a estrutura interna do Sol; outra, os padrões de migração dos pinguins da Antártida. E esses são dois problemas obviamente ligados, já que os pinguins reagem ao clima.
Outro problema do anticartesianismo radical é que ele destrói qualquer chance de inteligibilidade e, até, de ação: se tudo está ligado a tudo e tudo é importante para tudo, o único jeito de fazer algo é entendendo tudo, e como não dá pra entender tudo, o melhor é não fazer nada. O resultado é um vago misticismo e a crença de que qualquer idéia, por mais cretina que seja, deve ser  “válida”.
A solução, claro, não é abandonar o método cartesiano, mas aplicá-lo de forma prudente e consciente. Problemas precisam ser divididos em partes.  Mas quem os divide deve precaver-se para não fazer o corte errado — e para não se esquecer do passo crucial do Método: uma revisão, para ter certeza de que não ficou nada para trás.

Discussão - 14 comentários

  1. Luis Brudna disse:

    Ufa... pensei que era ó eu que tenho asco de ´paradigma´. 🙂
    Em boa parte dos casos que usa a palavra ´paradigma´ logo aparece com uma argumentação à lá ´cartomante de feira´. 🙂

  2. Renan disse:

    Eu já fui chamado de Cartesiano-Newtoniano. Eu juro que parei para pensar onde foi que falei dos vórtices de Descartes ou da gravidade newtoniana para ser acusado daquilo. Aliás, não sabia nem se ficava ofendido ou lisonjeado.

  3. Ulisses Adirt disse:

    Um monte de colegas meus da faculdade vai receber este texto por e-mail.

  4. John disse:

    Como você disse, os dois pontos de vista são importantes, tanto o cartesiano quanto o holístico. Mas como bem disse aristóteles, moderação é tudo!
    O cartesianismo puro pode se tornar reducionista demais, e o holismo, como bem dito, pode levar a frustrações epistemológicas.
    *Tem outra idéia de Descartes que eu não gosto, a de que a obra de um único homem é sempre melhor que uma construção de vários. Afinal a própria ciência é resultado da atuação de milhares de cabeças pela história.

  5. Vamos lá...
    Pêndulo. Este é o princípio. O mundo das idéias foi revolucionado com a publicação de Métodos... em seguida o desenvolvimento da teroria do caso, da quântica, da matemática da complexidade e da ecologia guiaram o mundo para uma guinada ao sentido contrário, ao do "relativismo" (nada relacionado à Einstein). Bem, acredito que hoje todo intelectual de renome tenha em sua mente que existem problemas (e lamento informar, pois sou muito bem relacionado com este tipo de raciocínio, gosto muito) mas nem precisam e nem podem ser analisados fora de seu contexto. Exemplos? Sistema de saúde pública, segurança pública, ecologia, meteorologia, gestão do conhecimento em empresas, bolça de valores etc. apenas para citar algumas áreas diferentes.
    Bem, a questão é que as críticas, ao menos as que deve ser consideradas, ao cartesianismo não se tratam da negação deste que é possivelmente uma entre as 10 maiores contribuições intelectuais da cultura ocidental. Tratam-se sim de questionar a opressão metodoloógica, o monocordismo intelectual, o nazismo mental que a radicalização do cartesianismo causou no final do século passado.
    Estimular uma linha de estudos de sistemas é muito útil e bem vindo no meio acadêmico e mostra-se demasiadamente promissor. Se esta linha irá se chamar de cartesianissmo sistêmico ou estudo dos sistemas com pitadas de cartesianismo, isso não importa.
    Contudo, apesar de considerar o texto com um fundo de verdade que vale ser debatido, ele, o texto, intencionalmente ou não, comete exageros e propaga inverdade. Primeiro é relativo a Capra que não é, nunca foi e nem é considerado um cientista e sim um divulgador científico. Considerar Capra um pai intelectual do pensamento sistêmico seria como creditar a Carl Sagan as teorias do Big Bang e da criação das estrelas.
    Outra curiosidade é que não vi relação clara entre o estudo dos sistemas e o "marxismo ingênuo da academia". Estamos falando de ciência ou de sistemas políticos? Talvez a "professora astrólaga" que disse "a ciência é um discurso de reafirmação do patriarcado opressor burguês" seja menos passional que seu aluno e estivesse se referindo à filosofia científica (o pensamento que determina nossas premissas lógicas, como a tecno-ciência, cartesianismo, darwinismo, sistemismo quando estes são utilizados como modelos mentais e não como métodos científicos) e não à Ciência (o fruto das pesquisas e todo o arcabouço teórico dele advindo). Aí está a diferença que o autor do texto não percebeu (ou fingiu não perceber) ao confrontar as palavras da "professora astróloga" à fórmula (linda e poética) de Bhaskara.
    Quanto à conclusão, a mesma é um estapafúrdio exemplo de como a relação causa-efeito pode indicar conclusões ilógicas. É possível escrever crônicas e crônicas sobre o blasfêmico e risível período: "se tudo está ligado a tudo e tudo é importante para tudo, o único jeito de fazer algo é entendendo tudo, e como não dá pra entender tudo, o melhor é não fazer nada." Ora, demonstra claramente o prólogo do site, seu pocisionamento de que mais importante que a fidelidade à verdade é a "esculhambação" das idéias. A premissa básica do pensamento sistêmico é que mais importante do que "tudo" é a ligação de "tudo" com "tudo" (ficou confuso? é que usei a mesma lógica do texto). Vou explicar. O mecanismo que relaciona os componentes de um sistema é a variável determinante da dinâmica do "todo", logo, não basta entender o funcionameto de cada uma das partes, é necessário saber como cada parte contribui para "perturbar" o sistema. É óbvio que qualquer pensador sabe que um bom conhecimento das partes irá ajudar e que isso não é nada insignificante. Contudo, aceitar isso presupõem lisura intelectual para compreender teorias e pensamentos e não acreditar que ciência seja fla-flu, com trocedores fanáticos, o que o texto, por diversão ou incompetência, não fez.

  6. cretinas disse:

    Oi, Washington! Logo no início da postagem, eu digo:
    (...)coisas como “holismo“, “teoria geral dos sistemas” e o trabalho de Thomas Kuhn sobre revoluções científicas, tudo isso nas versões devidamente infladas e distorcidas de gente como Fritjof Kapra (...)
    Da onde destaco:
    (...)"Versões devidamente infladas e distorcidas" (...)
    Eu realmente não estava tratando da TGS ou do holismo em suas formas mais responsáveis e sofisticadas, mas do tipo de vício intelectual que surgiu quando essas abordagens foram reduzidas a slogans por professores de graduação em cursos de Humanidades.
    Se vc prestar atenção, a postagem traz um alerta contra a má aplicação do Método -- ao mesmo tempo em que afirma que é impossível pô-lo de lado. A própria delimitação do que é um "sistema" é, afinal, um processo muito próximo da "quebra em partes" cartesiana.

  7. O debate sobre o método cartesiano não é novo, definitivamente. Sugiro uma leitura atenta de Giambattista Vico. Para o problema do método nas ciências humanas, Gadamer - mais consistente e melhor do que Foucault. Sobre o método científico, vamos pensar em \tinkering\ e não naquilo que se critica em Newton, sua metafísica da natureza. Tá lá no Principia Mathematica.

  8. Patola disse:

    Até onde eu li sobre isso, o que pude perceber é que a melhor idéia é aplicar o reducionismo pra entender e então reintegrar as partes pra ver como funcionam juntas, explorando obviamente os tipos de interações que mudam cada parte. Como na biologia de sistemas, que procura justamente aplicar o "holismo" depois do reducionismo.

  9. Rafael [RNAm] disse:

    Pô Washington, relaxa.
    Acho q a postagem trás mais uma provocação ao mostrar q cartesianismo não poderia ser usado pejorativamente por fazer parte do "arcabouço teorico" básico da ciência. E ponto.
    COncordo em muito com vc, mas não sei se a crítica deveria ser tão ferrenha.
    E não há como negar q a descrição de professora astrologa nos faz lebrar de ao menos um de nossos "mestres" da faculdade. E a piada"Talvez o “sobre 2a” insinue uma menàge onde duas mulheres têm papel subalterno?" tem seu charme vai, heheh.

  10. Silvio disse:

    Genial esse texto. Faltou citar outro termo que era moda: mecanicismo. Era preferível ter um filho malufista do que ter um filho mecanicista. E coitado do Descartes, tão maltratado, tão mal lido. Deve querer morrer de novo toda vez que alguém fala em cartesianismo. Aposto que ele não seria cartesiano. É que nem o Raul: o problema não é ele, são seus seguidores. E o trabalho do Kuhn, apesar de toda merda que se fez encima dele, é bom pra cacete, a idéia de paradigmas é muito boa. Genial o exemplo da fórmula de Báscara.

  11. Sandro disse:

    Muito bom ler isto... Não me sinto mais tão estranho quando digo que sou "darwinista de carteirinha, cartesiano, newtoniano, mecanicista... cínico..."

  12. Paranthropus disse:

    Há! Eu já sei quem é você! É o cara que me ensinou a usar o Word for Windows no começo da década de 1990.

  13. cretinas disse:

    Sim! Sim! E qunado a gente perguntava, "mas como isso funciona?", vinha o sorrisinho de superioridade e a frase: "Você não devia reaciocinar de forma tão mecanicista..."

  14. cretinas disse:

    Hmmm... Puz, acho que nessa época eu estava fazendo um curso de Word for DOS (sempre fui um retardado informático: fiz meu TCC em um MSX, imagine...)

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