Desejo de Matar (1,2,3,4,5…)

Como já confessei aqui, tempos atrás, minha queda pela música do Van Halen, acho que minha reputação não poderá sofrer muito mais se eu afirmar minha apreciação particular pela série de filmes  Desejo de Matar (Death Wish) estrelada pelo falecido Charles Bronson.
O primeiro filme da série é certamente um bom filme — aprofunda-se na psicologia do protagonista, Paul Kersey,  um homem que vê a família devastada pela violência urbana e que enlouquece em razão disso. O segundo é ridiculamente manipulativo (citando estatísticas de crime fora de contexto e apresentando opositores da pena de morte como um bando de boçais), e do episódio 3 em diante a série torna-se “divertida” do mesmo jeito que, digamos, as séries Sexta-feira 13 ou Jogos Mortais são divertidas: ficamos imaginando como a próxima morte vai correr, qual será a nova coreografia macabra.
Mas um traço em comum a todos os Desejo de Matar — e a todos os outros filmes no estilo “homem comum toma a justiça em suas próprias mãos” — é o fato de que, da forma que os roteiros são escritos, nunca um inocente acaba ferido em razão direta das ações vingativas do protagonista (em Desejo de Matar 2 um policial morre ao seguir Kersey mas, em sua súltimas palavras, ele legitima as ações do vingador). Em outras palavras, o justiceiro nunca mata a pessoa errada
Isso me traz à seguinte questão ética (tema que, afinal, está sendo o rei da semana no blog): suponha que existe um meio, absolutamente certo, uma tecnologia “X”, de deteminar se uma pessoa é culpada ou inocente do que a acusam — e não estou falando de adultério ou roubo de galinhas, mas homicídio, seqüestro, estupro.  
Dada a tecnologia X, eliminada a possibilidade de erro judiciário, a penade morte seria justificável?

As Leis da Robótica

Sempre que surge uma discussão sobre ética (como a suscitada pela minha postagem anterior) eu me lembro das Três Leis da robótica de Isaac Asimov. Quase todo mundo já ouviu falar nelas, provavelmente:
1. Um robô não pode ferir um ser humano ou permitir, por omissão, que um ser humano seja ferido.
2. Um robô deve obedecer a todas as ordens que receber de um ser humano, exceto no caso de a obediência acarretar numa violação da primeira lei.
3. Um robô deve preservar a própria existência, exceto no caso de essa preservação acarretar uma violação da primeira ou da segunda leis.
Boa parte da série de histórias de robôs desenvolvida por Asimov dos anos 30 aos 80 gira em torno de desafios, violações ou inconsistências dessas leis; nesse aspecto, o filme Eu, Robô é bastante fiel ao espírito da obra asimoviana.
Em termos humanos, as leis da robótica representam um paralelo interessante com nossos ideais éticos. Mas o mais interessante, ao menos para mim, é a forma como as leis são implementadas nas histórias asimovianas. Elas não são parte de um programa instalado nos robôs, como o Windows do meu computador, que poderia muito bem ser um MAC OS ou um Linux; elas são estruturais.  Um robô asimoviano é tão incapaz de contemplar violá-las quanto um ser humano é incapaz de visualizar as duas interpretações de um cubo de Necker simultaneamente.
O que me faz imaginar: haverá algum tipo de ética estrutural, construída no cérebro humano, como as leis da robótica são construídas no cérebro dos robôs ficcionais?
Certamente essas regras, se regras houver, estão impressas com menos força do que as leis robóticas — provavelmente não há uma definição de decência que não tenha sido violada por alguém em algum momento da história, e aqui eu uso “decência” num sentido bem mais amplo que o de moral sexual ou boas maneiras — mas sempre que me surge a idéia de que a ética é uma construção puramente cultural eu me lembro do paradoxo de Platão: os deuses amam as boas ações porque são boas ou as ações são boas porque os deuses as amam? 
No primeiro caso, existe algum tipo de intuição universal sobre o que é uma “boa ação”, partilhada por homens e deuses; no segundo, fazer o bem é apenas uma forma arbitrária de puxassaquismo místico.
 Felizmente, a evidência científica parece apontar para o primeiro caso: por exemplo, no curioso experimento que revelou um senso de justiça entre macacos.

Razão: modo de usar

Frase que volta e meia aparece em conversas com amigos religiosos: ‘Se você tivesse um plano perfeito, o que o impediria de matar seu vizinho?’ O argumento não é novo e está muito bem consagrado, por exemplo, no filme Festim Diabólico, de Alfred Hitchcock. A idéia geral é a de que, sem algum tipo de cabide metafísico — um mandamento divino ou coisa a sim — não há onde “pendurar” uma moralidade pessoal.
Ou, o único motivo racional para não cometer um crime é o medo de punição. Se esse medo for removido…
Questões assim mostram uma certa incompreensão do que é, afinal, a racionalidade, motivo racional ou a razão. Para entender do que estou falando, é bom lembrara a distinção entre um argumento válido ou um argumento verdadeiro. Por exemplo, “Toda árvore cresce com as raízes para cima/meu carro é uma árvore/meu carro cresce com as raízes para cima” é válido, mas evidentemente falso.
A razão é uma ferramenta. Digamos, como um serrote: pode cortar tanto mogno quanto um compensado vagabundo.
A melhor definição sobre comportamento racional que já encontrei é dos sociólogos Rodney Stark e William Bainbridge: uma criatura dotada de objetivos e de crenças sobre como alcançá-los age racionalmente quando se comporta de forma consistente com essas crenças em busca daqueles objetivos.
Assim, um sacerdote pagão age racionalmente quando, em busca de chuva, sacrifica um touro para Zeus: afinal, ele acredita que Zeus é o manda-chuva (literalmente) e que pode ser subornado com a ajuda de uma carcaça de touro. Logo… 
Resumindo: a razão é um instrumento que usamos para manipular nossas crenças em busca de nossos objetivos. Se (a) nossas crenças forem verdadeiras e (b) nossa aplicação da razão for correta, o objetivo tem uma bela chance de ser alcançado.
Assim, a razão não diz o que você quer, ela só sugere a melhor forma de como conseguir, com base no que você sabe ou acredita que sabe. Se o seu objetivo for só ter crenças verdadeiras, a razão leva ao método científico, mas esse é apenas um objetivo possível. A escolha de objetivos é muita vezes inconsciente, emocional, intuitiva. O homem é um animal, moldado pela seleção natural e pelas pressões da sociedade em que vive. Suas metas nascem desses condicionamentos. Sem eles, não seria possível ter metas. Um ser de razão pura, incapaz de sentir fome, sede, amor, ambição, etc., é como o deus de Espinoza ou o asno de Buridan: uma massa inerte.
Assim, a idéia de que o único ‘motivo racional’ para não matar alguém é o medo de punição representa um erro conceitual: o único ‘motivo racional’ para se ter um ou outro objetivo é se esse objetivo for um passo intermediário na busca de um objetivo maior, cuja justificativa não será racional, mas emocional, biológica, estética ou, até religiosa — a inquisição, por exemplo, teve motivos perfeitamente racionais para matar muita gente.
Assim, por que o racionalista não mata o vizinho? Porque não quer. Essa resposta, profundamente verdadeira, dificilmente satisfaz o argumentador religioso. ‘E se quisesse?’, é a réplica.
Aí é a hora de devolver a pergunta: por que o religioso não mata o vizinho? A resposta pode ser uma longa peroração sobre o valor intrínseco da vida humana como dom divino e etc e tal, mas no fim sempre cabe a tréplica: ‘E se seu deus mandasse?’

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