Curvas perigosas

Meu pai, que é engenheiro, costumava contar a história de um amigo que, depois de fazer um gráfico de tamanho/peso versus tempo dos três primeiros meses de vida da filha, concluiu que, aos 18 anos, a menina teria três metros de altura e pesaria meia tonelada.
No início dos anos 90, antes que a internet viabilizasse o spam (sim, meninos, eu vi) panfletos foram distribuídos em São Paulo pedindo a internação dos portadores de HIV em campos de concentração porque, do contrário, em breve 100% da população teria pegado aids.
Um gerente de vendas com algum treino em cálculo concluiu que um de seus vendedores era um gênio dos negócios, porque a derivada da curva de vendas do rapaz era positiva.
O que essas três situações têm em comum? Além da óbvia diferença de que a primeira foi feita com espírito de piada e a segunda, tristemente, a sério, todas cometem o erro de achar que um trecho da curva basta para deduzir a curva inteira. Esse erro geralmente se fundamenta em pelo menos uma de três falhas de percepção:
1. Confundir variáveis com constantes: no caso do vendedor, para que a curva de vendas realmente tivesse algum valor preditivo, seria necessário que uma série de fatores fora do controle do “gênio” — condições de mercado, humor dos clientes, sua saúde, pura sorte — se mantivesse constante por um bom tempo; isso até pode acontecer, mas não é garantido.
2. Ignorar a existência de paredes: todo fenômeno do mundo físico que apresenta grande crescimento inicial cedo ou tarde bate numa “parede” — seja porque a energia que o impulsiona se esgota, ou o recurso que ele consome acaba, ou as coisas simplesmente ficam complicadas demais e as variáveis passam a se comportar de modo imprevisto. Como dizem os teóricos da complexidade, “mais é diferente”.
3. Extrapolar a partir de situações execpcionais: as primeiras semanas de vida de uma criança ou os primeiros momentos de uma epidemia classificam-se como momentos excepcionais. O primeiro, da fisiologia humana e o segundo, do estado da sociedade. Simplesmente não dá para juntar os pontos aí e ver onde a reta vai parar dali a alguns meses ou anos.
Esse erro tem uma certa relação com a solução do último paradoxo de sexta, que se baseia na confusão entre enunciados e fatos. Aqui, os enunciados são as equações deduzidas a partir da observação de fenômenos reais (“fatos”). O que se conclui a partir da equação pode ser verdade para a equação, mas nada garante que ela realmente se aplica de forma irrestrita aos fatos.

Da medicina tradicional à bruxaria

O título desta postagem é o mesmo de um artigo publicado em meados do mês passado pelo periódico online PLoS ONE, e que é o destaque da página de Ciência da Folha de São Paulo desta segunda-feira.
O artigo oferece um modelo matemático para tentar explicar por que terapias inócuas sobrevivem — digo, se não funciona, deveria parar de ser usado, certo?
O estudo desse aparente paradoxo não é exatamente uma novidade (mas, até aí, o estudo das estrelas também não é, e sempre revela coisas novas). O modelo matemático descrito na PLoS reforça a suspeita de que doenças crônicas e/ou doenças que matam devagar, como vários tipos de câncer, são terreno fértil para a crendice e o charlatanismo.
O porquê disso está exemplificado no “Plano Experimental de Freireich”. Seguindo esse plano, nenhum tratamento nunca faz mal, porque, uma vez aplicado, pode acontecer de (a) o paciente melhorar, o que prova que o tratamento é eficaz; (b) estabilizar, o que prova que o tratamento evitou o pior; (c) piorar, o que prova que o tratamento começou muito tarde (ou que o paciente não tem fé, força de vontade, vibrações positivas, etc); (d) morrer, o que segue a mesma explicação de “c”.
Todo o sistema de testes duplo-cego — do que muitas terapias alternativas escarnecem — foi criado para evitar, entre outras coisas, as “conclusões Freireich” (o nome vem de um oncologista americano que recebe o crédito por ter descrito esse processo pelo qual curandeiros tendem a reivindicar todos os sucessos e a culpar o paciente por todos os fracassos).
Bom, voltando ao artigo da PLoS: o modelo sugere que terapias “alternativas” ou “tradicionais” sobrevivem basicamente porque ficam muito tempo em circulação: uma pessoa que toma, digamos, florais de Bach para artrite — minha mãe fazia isso — continua a tomá-los indefindamente, e comenta o fato com as amigas, que então…
Práticas de baixa eficiência às vezes disseminam-se porque sua própria falta de efeito resulta em demonstrações mais prolongadas e salientes e num grande número de convertidos, que mais do que compensam a grande taxa de abandono, diz o texto.
Ou, persistência é uma coisa boa, desde que se saiba a hora de parar.

Paradoxo de sexta (25)

O da semana pasada (“por que todo corvo é negro” funciona como sentença para um teste por indução e “todo não negro é um não corvo” não, se as sentenças são logicamente equivalentes?) atraiu poucos comentários, mas de alta qualidade! Até Nelson Goodman e seu paradoxo de “grue” e “bleen” foi citado.
(“Grue” e “Bleen” é uma situação pradoxal que requer algumas várias páginas para ser descrita… É improvável que um dia você venha a vê-la tratada em detalhes neste blog. Mas dá para começar por aqui).
A questão de por que frases logicamente equivalentes podem não ser indutivamente equivalentes tem várias propostas de solução. A minha favorita é a que duistingue entre fatos e enunciados. A indução lida com fatos, a lógica, com enunciados. Na prática essas duas coisas muitas vezes são intercambiáveis, mas nem sempre. Assim, é sempre preciso desconfiar quando alguém tenta provar um fato simplesmente manipulando enunciados (como a famigerada prova ontológica da existência de deus) ou quando alguém tenta provar enunciados manipulando fatos.
para ficar no clima, o desta semana será exatamente a supracitada prova ontológica. Ela tem várias formulações, mas a clássica é esta:
Imagine um ser dotado de todas as perfeições em seu grau máximo. Chame esse ser de deus.
Esse ser existe na sua imaginação.
Mas existir na realidade é um grau de perfeição superior a existir apenas na imaginação.
Logo, se o ser que você imaginou tem todas as perfeições num grau máximo, então Deus existe na realidade.
O argumento ontológico é curioso porque quanto mais se pensa nele, mais tolo ele parece — e mais difícil fica determinar exatamente onde a tolice está. Este é o paradoxo deste feriado.
E, por falar no feriado:
De pé, ó vítimas da fome!
De pé, famélicos da terra!
Da ideia a chama já consome
A crosta bruta que a soterra.

(Não. não sou comunista, mas gosto da Internacional. Um dia ainda vou fazer uma postagem sobre a crítica de Popper ao marxismo, que deveria ter posto toda a ideia de “socialismo científico” a nocaute há muito, muito tempo…)

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