Apelo à biografia
A primeira vez que encontrei esta falácia, eu ainda cobria política numa cidade do interior paulista. Alguém em apontou uma assessora de um vereador que, sabidamente, não era uma flor de moralidade com o dinheiro público e disse: “Ela tem uma história muito bonita de resistência à ditadura”. Tipo, como se a tal “história muito bonita” a absolvesse da cumplicidade presente com a canalhice.
Hoje em dia, essa é uma das falácias mais sacadas no discurso político brasileiro: “Fulano tem tais e tais pontos altos em sua biografia, logo…”
O que vem depois do logo é, inevitavelmente, uma de duas coisas:
(1) “logo, essas acusações não merecem crédito” — isto é, argumenta-se que não é plausível que alguém que tenha feito coisas legais no passado esteja cometendo absurdos no presente. Essa linha de defesa até faz algum sentido, mas obviamente não vale mais — aliás, vale muito menos — que a evidência do presente. Pode ser implausível que um ganhador do Nobel da Paz venha a ordenar execuções em massa, mas se aparecer a ordem de massacre assinada com a letra dele e com suas digitais no papel, diante de testemunhas, a coisa muda de figura.
(2) “logo, ele merece tratamento especial” — isto é, o cara acumulou créditos sendo ético/corajoso/talentoso no passado, portanto não há nada de errado em ele queimar alguns fazendo estripulias agora.
Essa segunda linha é a que mais aparece (ainda que quase sempre sob a forma de insinuação, praticamente nunca explicitamente) e não é difícil mostrar que não vale um tostão furado. Digo, não importa quantas vidas um médico ou um bombeiro tenha salvo, basta um homicídio para que torne um assassino. E, bolas, por definição, todo ladrão era um homem honesto… antes de cometer seu primeiro roubo.
No fim, a falácia do apelo à biografia é uma variante da do dado irrelevante. Se quem lança mão dela realmente não tem nada mais forte a oferecer, o melhor é calar a boca e chamar um bom advogado.
Discussão - 2 comentários
Se quem lança mão dela realmente não tem nada mais forte a oferecer, o melhor é calar a boca e chamar um bom advogado... que vai repetir o mesmo argumento, ad nauseam...
Prima-irmã do apelo à imperfeição humana. Frequentemente verbalizada com um "atire a primeira pedra quem nunca...".