Assassinato por… homeopatia? oração?

Dois casos recentes de pais condenados pela morte de filhas, um nos EUA e outro na Austrália, levantam questões interessantes sobre a articulação entre crença, ética, verdade, ciência, responsabilidade e lei. O mais recente é o de um casal australiano, que insistiu em tratar a filha de nove meses com homeopatia, levando-a à morte. O anterior, nos EUA, também envolve um casal, que ficou rezando por uma cura milagrosa enquanto a filha, de 11 anos, agonizava de diabete.
Ambas as condenações parecem perfeitamente justas e o comportamento dos pais em questão é evidentemente absurdo para qualquer pessoa de bom-senso, mas a questão é, por quê? O que torna o fracasso da oração e da homeopatia mais culpável que, digamos, o fracasso de uma quimioterapia? Esse é um problema que tem várias camadas. A primeira está na articulação entre ética e crença.
Acho que já enchi bem o saco dos leitores habituais deste blog com minhas recomendações repetidas para que leiam (leiam! leiam!) o ensaio The Ethics of Belief, do matemático britânico William Clifford.
Elaborando a partir da observação voltaireana de que acreditar em asneiras é meio caminho andado para cometer atrocidades, Clifford argumenta que toda pessoa tem o dever moral de só acreditar em coisas verdadeiras, de testar suas crenças sempre que possível e eliminar as que não passam no teste.
O texto de Clifford foi escrito como parte de uma polêmica com o filósofo americano William James, que defendia que as pessoas têm um monte de crenças tolas mas inócuas, que não faz sentido ficar implicando com isso, e que só acreditar no que se pode provar que é verdade é um programa impraticável para orientar a vida cotidiana.
O consenso geral é de que James ganhou a parada, mas suspeito que casos como o australiano e o americano mostram que a conexão entre crença e ética estabelecida por Clifford é válida — que, mesmo que seu programa seja inatingível, trata-se de algo que deve ser buscado.
A segunda articulação é entre verdade e ciência. O processo cliffordiano de testar crenças é uma bela generalização do método científico: crenças que merecem o status, ainda que provisório, de “verdadeiras” são as que sobrevivem a seguidos testes; o processo de testar crenças é o que chamamos de “fazer ciência”. Logo, as crenças “éticas”, no sentido cliffordiano, são também as que se pode chamar de “científicas”.
A terceira articulação envolve ciência e responsabilidade. É verdade que a ciência não dita objetivos — ela é descritiva, não prescritiva — mas, uma vez que o objetivo esteja definido, é da ciência que nascem as opções responsáveis para alcançá-lo. Uma “opção responsável” é uma forma empiricamente viável de se conseguir algo: se quero ir a Paris, posso meditar em busca da teleportação, posso rezar para que o Arcanjo Gabriel me carregue em suas asas ou… posso comprar uma passagem de avião.
A última conexão é entre responsabilidade e lei: pais têm a obrigação legal de zelar pela saúde dos filhos menores de idade. Essa obrigação pressupõe que ajam de forma responsável para preservar essa saúde. Essa responsabilidade implica que busquem meios testados — científicos, portanto — de curá-los.
Não fazê-lo é negligência — e, ao menos nos EUA e na Austrália, dá cadeia.

Discussão - 10 comentários

  1. Joâo Carlos disse:

    Como fui eu quem levantou o assunto – e como eu sou o macumbeiro assumido do grupo – tenho que fazer o contraponto.
    O primeiro ponto a observar é que – pelo menos entre os religiosos sérios – se sabe que os "milagres" são raríssimos. E o velho rifão: "ajuda-te que os céus te ajudarão", sempre deve ser levado em consideração.
    O segundo é que em ambos os casos citados, o que aparece travestido de "fé", é uma mera teimosia arrogante por parte de pessoas que acreditam mais nas próprias convicções (fundamentadas em sabe-se lá o que) do que nos fatos. Do ponto de vista de um religioso, o "pecado" está em ter a pretensão de ensinar à divindade como gerenciar as coisas.
    E, apesar dos efeitos finais terem sido os mesmos, os dois casos diferem quanto à motivação. O dos americanos é bem o de "querer convencer deus a mudar de opinião". O dos australianos é uma teimosia em encampar um princípio "científico" no mínimo duvidoso (muito embora eu não consiga enxergar "ciência" em qualquer parte da medicina; está muito mais para artesanato do que para ciência).
    Eu cá não tenho nada contra as pessoas recorrerem às orações, "trabalhos" ou seja lá qual ato mágico for, contanto que duas condições sejam satisfeitas:
    1 - Os meios lógicos para resolver a questão tenham se esgotado (usar remédios para tratar doenças, por exemplo);
    2 - Se tenha em mente que a Terra é uma pedrinha insignificante no universo e, se há um criador disso tudo, ele não vai ficar quebrando suas leis universais só para satisfazer os anseios de um bichinho efêmero que habita essa pedrinha insignificante (onde eu tenho que voltar a minha definição de "milagre": "um evento ou série de eventos de baixíssima probabilidade").

  2. Sibele disse:

    Moc, o Cretinas, está de volta!!!
    E errou na sua previsão de retorno ("meados de outubro")... Bom para nós! 😉
    E sobre este post de retorno:
    Só comentando o João Carlos, quando ele classifica os casos como "teimosia arrogante": e como podemos chamar a atitude médica de manter a todo custo, por meios artificiais, a vida de doentes em estado vegetativo?
    Nesse caso, e reelaborando a questão de Moc, "O que torna o fracasso da oração e da homeopatia mais culpável que, digamos, o fracasso de uma quimioterapia?", nesses termos: "O que torna o triunfo do aparato tecnológico médico sobre a morte mais virtuoso do que o triunfo do fluxo normal da vida sobre a morte?"
    Teimosia em manter a vida a qualquer custo, seja por oração, homeopatia ou por tubos e aparelhos... parece-me a mesma teimosia... arrogante!

  3. cretinas disse:

    Oi, Sibele! É bom estar de volta... E a previsão inicial tinha sido meio pessimista mesmo. Nesse meio tempo, juntei um monte de referências legais para postagens; espero conseguir usar todas logo, logo.

  4. Sebastian disse:

    O problema está muito bem delineado, mas não definido. A ciência refuta a oração, a reza, os aconselhamentos tradicionais, a auto-medicação doméstica calcada na tradição e muito mais coisas, principalmente a religiosidade.
    A homeopatia é um estigma e os casos de ignorância que vêm ao noticiário ganham realces extraordinários no ceticismo dos acadêmicos.
    Mas o problema é relativamente simples de equacionar e achar o denominador comum, que está na sensibilidade. A sensibilidade não existe na mente cética. O que existe em dose altíssima é a intolerância mais profunda sobre o que subjetivamente se demonstra pelos bons resultados e ao que não pode ser testado instrumentalmente. Como se todo o passado e as boas coisas da religiosidade dos povos e suas tradições pudessem ser simplesmente apagadas porque os homens céticos assim o desejam.
    A ciência assume o status da superioridade por ter criado o método científico, que está cansado de se mostrar ineficaz em inúmeras questões importantes, errar feio e cair de quatro, e o método científico decretou que Deus não existe, e as religiões são um monte de besteiras.
    Os casos horrorosos, cruéis e monstruosos da ciência médica não são levados à sério pelos críticos, sequer citados pela grande maioria de colunistas céticos. Os erros de avaliação e da ação médica desastrada, são transformados em estímulos que justifiquem os infantís axiomas como: "é preciso errar para acertar", ou que "pelos erros se chegam às verdades". Hipocrisia pura. Incrível, não? Mas tenho lido coisas do gênero de muita gente julgada inteligente.
    Afinal, é a ciência que é cética, atéia e agnóstica, ou são os seus manipuladores? Urge acordar e separar muito bem o ovo do cú da galinha.

  5. cretinas disse:

    Oi, Sebastian! O problema não está exatamente em errar, e sim no que se faz com o erro. Sangria não cura peste? Para-se de receitar sangria para pacientes de peste. Rezar não cura peste? Continua-se a rezar, por via das dúvidas..,

  6. Joâo Carlos disse:

    @ Sebastian:
    Não entendi muito bem sua argumentação... Se você puder fundamentar onde foi que “o método científico, que está cansado de se mostrar ineficaz em inúmeras questões importantes, errar[ou] feio e cair[iu] de quatro”, eu agradeço. Igualmente quando foi que “o método científico decretou que Deus não existe, e as religiões são um monte de besteiras”.
    O caso não é exatamente se Deus existe ou não: o que se discute é se orações (ou "remédios" baseados em premissas falsas) curam ou não. Quem ora são pessoas, não é Deus. É muita pretensão de menino mimado achar que, se encher o saco de Deus bastante, ele vai operar um milagre.
    Isso não faz sentido sequer na lógica daqueles que creem em um Deus do tamanho necessário para criar o universo.

  7. Silvia disse:

    Bem, me parece que, aqui, os pais também foram condenados. 😉 Sinceramente, eu gostei ali do início, onde você pergunta por que a morte por quimioterapia não é condenável, e a por homeopatia (ou oração) é.
    Porque eu vejo muita gente intoxicada por remédios (não necessariamente morrendo), mas ninguém condena as pessoas por receitarem ou usarem os remédios da Big Pharma.
    Não sei exatamente o que aconteceu nos dois casos (aliás, nem conhecia o segundo), mas eu acho que pode haver um certo preconceito, e usa-se a manchete (Menina morre porque pais insistiram em tratar com homeopatia) para apoiar interesses ocultos. A quem interessa uma manchete dessas? O que aconteceu de verdade?
    Eu, particularmente, acho que quimioterapia faz mais mal do que bem. Mas não sou médica. 🙂

  8. cretinas disse:

    Oi, Silvia! Acho que a resposta fica clara ao longo da postagem -- a quimioterapia tem base em testes que mostraram que se trata de um processo válido, a homeopatia e a oração, não. Quanto à questão de a quem interessa isso ou aquilo, cuidado com a aplicação generalizada desse tipo de argumento: o fato de uma verdade poder beneficiar alguém de quem não gostamos ( a grande indústria farmacêutica, talvez) não a torna menos verdadeira.

  9. Narjara disse:

    Bom, gostaria de questionar um detalhe da reportagem:
    Os pais levaram a criança a um hospital, onde aplicaram morfina, certo?
    E os assassinos são os pais?
    Bom, Segundo Lowen, psicanalista bioenergético, aluno de Reich, em seu livro "Pleasure" (1970), um médico (esqueci o nome), quando inquirido sobre aplicar ou não morfina em feridos de guerra em agonia, respondeu que o uso de morfina nesses casos havia sido suspenso, pois a verificação era a de que a dor é o que deixa o corpo lutar contra a doença, deixando-o vivo. Por experiência ou estudo, sei lá, observou-se que se quando a morfina era aplicada, o corpo parava de reagir, pois esgotava todas as suas forças. O que se modifica aqui é a compreensão da dor. Em um lugar - na medicina moderna - a dor é anestesiada, o problema é tratado em sua consequência e não na causa, como na homeopatia, que trata de maneira a ajudar um ser da forma mais natural possível a enfrentar uma crise, que é natural, podendo ter causas emocionais e espirituais, não somente físicas.
    Pois imaginem um mundo em que as pessoas entendessem que as crises são naturais e oportunidades para desenvolver suas personalidades? Ninguém iria mais querer suprir suas angústias em artificialidades compradas, mas em coisas naturais como plantar e fazer amor com as pessoas...
    Bom, a alopatia, com suas doses muito concentradas, não trata de pessoas, mas de doenças, ignora a biografia, isola as partes do corpo por especialistas como se não fosse um organismo algo integral.
    Enfim, indico a leitura de "Os Remédios Florais de Bach" do Dr. Edward Bach. Que foi algo em que consegui aprender bastante.
    Difícil é despir-se dos preconceitos em uma sociedade onde a certeza é sempre tão requerida.
    É mais fácil continuar míope, por preguiça que admitir que precisamos olhar perceber o outro, do nosso lado e ver, por nós próprios no que nos compete acreditar ou não.
    Abraço.

  10. cretinas disse:

    Narjara, desculpe, mas por que vc acha que aprendeu alguma coisa lendo o livro sobre florais de Bach? Por que o que esse livro específico lhe diz parece valer mais que cento e poucos anos de ciência médica?

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