Astrobiologia e o Vaticano

O Vaticano concluiu esta semana um ciclo de cinco dias de debates sobre vida extraterrestre. Se eu fosse um cínico, diria que, dada a progressiva queda no número de espectadores pagantes neste planeta, o show a mais tempo em cartaz no Ocidente prepara-se para procurar público em outras salas de espetáculo do Universo.
Mas, não sendo esse o caso, o seminário merece elogios por representar um reconhecimento, ainda que por vias tortuosas, de que os fatos serão o que os fatos revelarem, e mais vale a pena preparar-se para eles do que negá-los.
Trata-se de lição duramente aprendida após o desastroso caso Galileu, ainda que de modo extrememente lento: livros defendendo o heliocentrismo só puderam passar a ser publicados legalmente em Roma a partir de 1822; a teoria heliocêntrica havia sido relegada ao Índice de Livros Proibidos pelo papa Alexandre VII, ainda no século XVII.
(Existe um debate pequeno, porém muito interessante, sobre se o decreto de Alexandre condenando todos os livros que tratavam do assunto, mais uma manifestação anterior do papa Paulo V afirmando que ao heliocentrismo é “falso e em absoluta contradição com a Sagrada Escritura” não estariam cobertos pelo dogma da infalibilidade papal; oficialmente, a única coisa inequivocamente coberta pela infalibilidade é a Ascensão de Maria, o que sugere que os papas pereferem só se declarar infalíveis em questões claramente não-popperianas; a honestidade intelectual da manobra eu deixo ao julgamento do leitor.)
No caso específico da vida extraterrestre inteligente – uma questão que remete ao caso de Giordano Bruno – o problema do impacto teológico de uma eventual descoberta já foi tratado pela ficção científica diversas vezes. Talvez o mais rigoroso tenha sido o romance Um Caso de Consciência, de James Blish, no qual um padre se vê forçado a aceitar uma heresia para acomodar a descoberta de um planeta habitado por seres racionais que parecem não ter sido expulsos do paraíso.
A paroquialidade (sem trocadilho) das religiões humanas em geral, e da chamada “história da salvação” católica em particular é, claro, o principal empecilho. Se houve uma queda, ela ocorreu só aqui, ou em todos os mundos? E o sacrifício de Cristo, redimiu a apenas a humanidade ou toda a vida inteligente do cosmo? Se toda a vida inteligente, por que teria acontecido exatamente aqui, e não em outro planeta? Etc, etc.
(Mais um parêntese: minhas histórias de ficção científica favoritas sobre o assunto são Nas Ruas de Áscalon, de Harry Harrison, na qual um padre tenta converter uma população de ETs perfeitamente lógicos, e Somos um Povo Ciumento, de Lester Del Rey, na qual o YHWH do Velho Testamento dá o planeta Terra, como “terra prometida”, a uma raça alienígena — reduzindo a humanidade à condição de filisteus cósmicos)
Não que essas questões realmente venham a se mostrar de fato embaraçosas no futuro: assim como o discurso político, o teológico é extremamente elástico, com as sentenças convertendo-se de afirmações de fato em meras metáfora e vice-versa (e com a interpretação de cada metáfora sempre cambiante) de acordo com o gosto da época e do freguês.

Discussão - 6 comentários

  1. sombriks disse:

    isso, religião dura e inflexível tende a sumir;
    esses debates são importantes pra ver se consegue por essas coisas teológicas em dias com a sociedade à qual permeiam.

  2. Sibele disse:

    Só comentando a bizarrice que foi a publicação do Index Librorum Prohibitorum pela igreja católica, lembro que essa lista só foi oficialmente abolida há relativamente pouco tempo, em 1966.
    Mas, dadas as reações da igreja ao mais recente livro de José Saramago, "Caim", imagino que cogitam uma reedição...

  3. Tene Cheba. disse:

    Os ETs lógicos, racionais, entrariam no conceito de seres vivos? Seriam considerado Seres vivos, seres sem quociente emocional? Qual seria a definição para o Universo, se apenas a Terra, possui a vida? Geocentrismo? O ponto mais complexo de todo o Universo, matéria organizada, estranha, completamente bizarra a notória esterilidade do Universo.
    A questão, sempre será, não a quantização de fé, mas, no que você optou em acreditar.
    A estranha entropia que organizou sistemas, qual a razão, entre o infinito e este ponto? Indeterminações, creio, ops!!!

  4. Cret,
    Seu comentário de que a Infabilidade Papal é aplicada apenas em questões não-Popperianas (ou seja, não decidíveis ou testáveis cientificamente) é muito interessante. Dada uma questão que ainda não foi solucionada pela ciência atual (exemplo: "Existem ou não seres com livre-arbítrio?"), de modo que não podemos apelar para a autoridade científica, o que devemos fazer?
    Declarar-se agnóstico em relaçao à essa questão? Tomar posição, enfatizando que é uma posição filosófica e não científica? Tomar posição, mesmo uma sugerida pela religião, declarando que é uma posição filosófico-religiosa e não científica?
    oOo
    O caso Galileu é historicamente e filosoficamente bastante complicado: afinal, o Cardeal Belarmino defendeu uma postura positivista e verificacionista (ao contrário do realismo filosófico de Galileu), postura positivista ("verificacionista") que muitos filósofos da ciência modernos admitem (inclusive o blog "Idéias Cretinas"!)...
    Uma primeira referência talvez fosse a propria Wikipedia:
    http://en.wikipedia.org/wiki/Galileo_affair#Bellarmine.27s_view
    "Bellarmine found no problem with heliocentrism so long as it was treated as a purely hypothetical calculating device and not as a physically real phenomenon, but he did not regard it as permissible to advocate the latter unless it could be conclusively proved. This put Galileo in a difficult position, because he believed that the available evidence strongly favoured heliocentrism, and he wished to be able to publish his arguments, but he did not have the necessary conclusive proof.[15]
    Galileo met again with Bellarmine, apparently on friendly terms; and on March 11 he met with the Pope, who assured him that he was safe from persecution so long as he, the Pope, should live. Nonetheless, Galileo's friends Sagredo and Castelli reported that there were rumors that Galileo had been forced to recant and do penance [tais rumores eram falsos]. To protect his good name, Galileo requested a letter from Bellarmine stating the truth of the matter.
    This letter assumed great importance in 1633, as did the question whether Galileo had been ordered not to "hold or defend" Copernican ideas (which would have allowed their hypothetical treatment) or not to teach them in any way. If the Inquisition had issued the order not to teach heliocentrism at all, it would have been ignoring Bellarmine's position.
    In the end, the mission was a failure. Galileo did not persuade the Church to stay out of the controversy, but instead saw heliocentrism formally declared an idea that could not be held as truth, for lack of evidence [Fica claro a posição positivista ou verificacionista dos inquisidores aqui!]. It was consequently termed heretical by the Qualifiers, since it contradicted the literal meaning of the Scriptures, though this position was not binding on the Church.
    Foscarini's book was banned; while Copernicus' De Revolutionibus, though not formally banned, was removed from circulation pending revisions, and in fact was not fully cleared until the 19th century. Though Galileo was personally safe, and his works had not been banned, there was now much doubt (felt by other astronomers as far away as Germany) whether it was possible to do serious work in Copernican astronomy."
    oOo
    Giordano Bruno é um martir do movimento Nova Era (mais especificamente, do Hermetismo Renascentista), não é um martir da ciência ou da filosofia...
    Encontrei isso na Wikipedia:
    Alexander VII wrote one of the most authoritative documents related to the heliocentrism issue. He published his Index Librorum Prohibitorum Alexandri VII Pontificis Maximi jussu editus which he prefaced with the bull Speculatores Dominus Israel in which he explicitly attached all the previous heliocentric decrees ("...which we will should be considered as though it were inserted in these presents, together with all, and singular, the things contained therein...") and using his Apostolic authority bound the faithful to its contents ("...and approve with Apostolic authority by the tenor of these presents, and: command and enjoin all persons everywhere to yield this Index a constant and complete obedience...")[2]([1]). There is debate as to whether this decree exists, as there seem to be very few or no credible scholarly references to it.
    Quanto à ultima frase, o que ela significa? Afinal, o decreto existiu ou é mito?
    Minhas estórias preferidas de FC teológica são: o conto "O Homem", de Ray Bradbury (em "O Homem Ilustrado"), Um Cântico para Leibowitz, de Wlater Miller, e os livros de P. K. Dick em geral.

  5. Será que o meu comentário foi pro SPAM do SBB?

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