SOS liberdade de expressão

Um espectro assombra o país: o espectro da relativização da liberdade de expressão e informação. Não se trata, no entanto, de um espírito novo, mas de uma assombração antiga, quase um membro da família, o nosso fantasma de Canterville particular.
Está presente, por exemplo, na criminalização da “apologia do crime”; aparece nas leis e propostas de lei, supostamente bem-intencionadas, proibindo expressões de “preconceito”, “ofensa” e “discriminação” contra grupos, reais ou imaginados, dentro da sociedade; consubstancia-se na decisão recente do STF que mantém aberta a possibilidade de censura prévia à imprensa; e ganha corpo no novo Plano Nacional de Direitos Humanos, em cujo capítulo sobre liberdade de expressão, numa manobra de novilíngua digna de Orwell, o verbo “coibir” aparece quatro vezes, e onde se pede a adoção de medidas judiciais contra a defesa da pena de morte — como se discutir a legislação penal de repente virasse crime.
Estamos, como sociedade, embarcados num processo trágico onde quem se sente ofendido ou contrariado por uma opinião ou informação não adota mais as saídas clássicas que existem desde tempos imemoriais — ofender de volta, contra-argumentar — mas prefere chamar o advogado e a polícia.
A sociedade brasileira parece ter se esquecido de que, do mesmo modo que pornografia e mau gosto são o preço da liberdade artística, opiniões repugnantes são o preço da livre circulação de ideias, que deveria ser um valor fundamental. Se não pelo fato de que a livre expressão é um direito básico, pelo simples fato de que a luz do dia é, sempre, o melhor desinfetante.
Claro, liberdade de expressão não é o mesmo que liberdade de ação. Até mesmo a lei brasileira reconhece uma distinção entre apologia do crime e o crime em si. Liberdade de expressão também não é liberdade de incitação: uma coisa é (a) escrever um artigo dizendo que os blogueiros de ciência são uma raça inferior e parasitas da sociedade, outra é (b) montar um comício para juntar uma turba e sair à caça deles para linchá-los.
Alguém poderia argumentar que “b” é consequência lógica de “a”, logo se “b” é proibido, “a” também deveria ser. Mas isso não é verdade: se quem acredita em “a” não tiver meios de ventilar suas ideias, a noção de que os blogueiros são uma praga para a sociedade não será contestada publicamente e crescerá às escondidas, o que só torna a ocorrência de “b” ainda mais provável.
Repassando os quatro argumentos de John Stuart Mill em defesa da liberdade de expressão, que continuam tão válidos hoje quanto duzentos anos atrás:

1. Uma opinião proibida pode acabar se mostrando verdadeira; afinal, ninguém é infalível;
2. Mesmo errada, a opinião proibida pode conter uma verdade parcial, e é apenas pela colisão entre a opinião consensual da sociedade — que raramente está de todo correta — e alternativas a ela é que a verdade mais completa tem alguma chance de surgir;
3. Mesmo se a opinião consensual da sociedade for a verdade mais perfeita e completa, a menos que seja duramente atacada e defendida, será sustentada apenas como mais um preconceito, com pouca compreensão de sua base racional;
4. O próprio significado da verdade corre o risco de se perder quando ela, protegida de todo tipo de contestação, se transforma em dogma.

Discussão - 8 comentários

  1. Flávio Furtado de Farias disse:

    .Acontece que o verbo também é ação.

  2. cretinas disse:

    Mas o verbo age, quando age, sobre convicções e emoções, não sobre corpos, e a avaliação desse tipo de efeito é sempre subjetiva. Se formos instituir -- como parece que, de fato, já foi instituído --um direito de não ser ofendido, com o mesmo peso do direito de não ser fisicamente agredido, chegaremos a um ponto onde bastará a palavra de uma suposta vítima da "ofensa" para calar qualquer tipo de dissenso.

  3. João Carlos disse:

    Cada vez mais está virando moda a falácia lógica "eu-não-gosto-portanto-você-não-pode". E sempre vem disfarçada com o argumento da "proteção da sociedade".
    Se vamos radicalizar, radicalizemos... A única forma de nenhum ser humano ficar doente, sofrer injustiças, ser vítima de catástrofes naturais e até dos males da velhice é até bem simples: extinguir a espécie humana. Algum "bem-intencionado" voluntário para "dar o exemplo"?...

  4. Há problemas no raciocínio exposta na postagem.
    1)O princípio do "foi ofendido, ofenda de volta" parte do pressuposto de que ambas as partes possuem canais igualmente eficientes, o que raramente é o caso;
    2)A imagem social do indivíduo é um bem de que a pessoa dispõe - por exemplo, para obter crédito no comércio. Se sua imagem é denegrida com calúnias, há uma perda real envolvida;
    3)Advogado e polícia, a Justiça e afins são instituições sociais que visam, justamente, a resolução de conflitos;
    Nenhum direito é absoluto. O direito de ir e vir é um valor fundamental. Não quer dizer que qualquer pessoa tenha o direito de ir ao seu quarto sem sua permissão. Isso confronta com seu direito à privacidade e segurança.
    Do mesmo modo, a liberdade de expressão é um valor fundamental. Mas não quer dizer que ela seja absoluta e possa ir além do direito da pessoa à sua integridade moral.
    []s,
    Roberto Takata

  5. McFly disse:

    Parabéns pelo post. Mesmo.
    Takata, o que você diz faz bastante sentido. Mas,
    1) em casos de disparidade muito grande, costumava ser possível pedir pelo direito de resposta - que é muito diferente de conseguir uma liminar pra calar alguém (um jornal, por exemplo, como fez o Sarney com o Estadão. Além disso, ...
    2) ... eu acho que o post não se refere ao zé da esquina e ao padeiro. Existe um contexto.
    3) há uma propensão em se eliminar advogado, polícia e justiça e este post é sobre isso: censura prévia. Com mordaça, não há justiça, advogado ou polícia.

  6. De longe eu comemoro ser parcela da praga da sociedade e que absoluto, nunca o seja...

  7. Leonardo Lepesqueur disse:

    Imaginemos, somente imaginemos, se a censura a Galileu Galilei tivesse sido efetiva.

  8. Valdinei Oliveira disse:

    Esta é uma atitude típica da esquerda que sempre detestou a oposição onde quer que tenha chegado ao poder, amordaçando e eliminando os opositores de sua ideologia. O PT está mostrando suas reais intenções.
    O povo está fazendo uma opção partidária que lhe vai custar caro no futuro. Depois que o PT e os corruptos amordaçarem a imprensa, estarão livres para praticar todo tipo de desmandos.
    Mas estes que lutam contra a liberdade de imprensa provarão do próprio veneno. A história mostra que onde não há liberdade de imprensa, o estado "Leviatã" se torna um opressor e todos passarão a ser perseguidos, mais cedo ou mais tarde.
    Os carrascos de hoje serão as vítimas de amanhã. Os esquerdistas são peritos em perseguir os outros e a eles próprios. A história do comunismo está aí para exemplificar.

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