Todos os posts de Jefferson Picanço

Sobre Jefferson Picanço

Possui graduação em Geologia Pela Universidade Federal do Paraná (1989), mestrado (1994) e doutorado (2000) em Geociências (Geoquímica e Geotectônica) pela Universidade de São Paulo. Atualmente é professor do Instituto de Geociências, Universidade Estadual de Campinas. Entre os seus atuais interesses de pesquisa estão Gestão de Desastres, Cartografia Geotécnica e História das Ciências Naturais.

Carlotta Joaquina Maury, Princesa dos fósseis do Brazil

Carlotta Joaquina Maury (1874-1938), paleontóloga americana;

Seguir uma carreira cientifica sempre foi um desafio  para as mulheres. Ter uma carreira cientifica é só o primeiro passo. Nossas colegas sofrem problemas de aceitação pelos colegas homens, via de regra são preterida para cargos mais importantes, e em geral possuem remuneração menor.

Ser pioneira numa carreira cientifica, portanto,  sempre foi um grande desafio.  É necessário muitas vezes mais trabalho e mais atitude que o normal para conseguir a mesma coisa que um colega homem. As pioneiras não tem vida fácil.

A paleontóloga americana Carlotta Joaquina Maury (1874 – 1938) foi uma destas pioneiras. Durante sua carreira, Carlotta fez contribuições fundamentais na paleontologia e na estratigrafia do Período Terciário, trabalhando com moluscos fósseis. Também trabalhou com fósseis do Brasil, tendo realizado estudos importantes em diversas bacias sedimentares.

Carlotta era a quarta filha do reverendo Mytton Maury e de Virginia Draper. Carlotta Joaquina recebeu seu nome de sua avó materna, Carlota Joaquina de Paiva Ferreira. Carlota Joaquina Ferreira era  uma dama da corte portuguesa, que casou no Rio de Janeiro com o médico britânico Daniel Gardner (Saiba mais aqui).

A família Maury era uma família de cientistas. Um primo de Carlotta,  Matthew Fontaine Maury (1806-1873) foi um importante geógrafo americano. Seu avô materno John William Draper (1811-1882) foi um físico notável, tendo inclusive contribuído com os primórdios da fotografia. A irmã mais velha de Carlotta, Antônia Caetana Maury (1866-1952), foi astrônoma, tendo trabalhado com Henry Pickering no grupo de mulheres que identificou cerca de 10.000 estrelas.

O reverendo Maury era também um geógrafo amador, tendo publicado a revista “Maury´s Geographical Series” entre 1875 e 1895. Sua mãe, Virginia Draper, tinha talentos artísticos, e influenciou fortemente os filhos para a carreira científica. Carlotta cresceu neste meio, tendo sido natural a sua atração pela paleontologia.

Carlotta estudou no Radcliffe College, na Universidade de Columbia, tendo sido uma das primeiras mulheres a estudar na instituição. Obteve seu PhD em 1902 na Universidade Cornell, em Ithaca, Nova Iorque. Esteve também entre as primeiras mulheres a se tornarem doutoras em Cornell

Logo após seu doutorado, Carlotta foi professora em diversas universidades. Entre elas, trabalhou como assistente em Colúmbia nos Estados Unidos. Mas sua maior experiencia como professora foi no Huguenotte College e na University of the Cape of Good Hope, na África do Sul. Nunca conseguiu trabalhar como professora em Cornell, onde fez seu PhD.

Neste período estavam surgindo as primeiras  pesquisas com microfósseis. O estudo destes pequenos organismos, obtidos através de sondagens profundas para petróleo, provocou uma verdadeira revolução na paleontologia. Logo que Carlotta começou a trabalhar com microfósseis,  foi convidada para trabalhar como consultora pela indústria do petróleo. Pelo resto de sua vida, seu trabalho esteve ligado à pesquisa aplicada para as companhias petrolíferas.

Carlotta Maury no Laboratório de Paleontologia em Cornell (NY), data desconhecida (Arnold, 2014)

Em 1911 Carlotta fez parte de uma expedição à Venezuela, patrocinada pela General Asphalt Company. Em 1916 ela mesmo liderou a sua própria expedição para a República Dominicana. Essa foi uma das primeiras expedições cientificas lideradas por mulheres, o que quebrou inúmeros paradigmas.

Num período de intensa violência política na ilha caribenha, a expedição cientifica liderada por Carlotta fez um importante trabalho de levantamento e catalogação de fósseis. Este trabalho, publicado em diversos periódicos, tornou-se referência na área de moluscos terciários. Alguns destes trabalhos ainda estão à venda na Amazon (Deixe Jeff Bezos mais rico aqui).

Por volta de 1920,   Carlotta Joaquina Maury começou a sua colaboração com o Serviço Geológico Geológico e Mineralógico do Brasil (SGMB). Sua primeira ligação com o SGMB veio através de seu primeiro diretor, o geólogo americano Orville Derby (1851-1915).  Como Carlotta, Derby também estudou em Cornell, o que também deve ter facilitado o contato entre ambos.

Carlotta Joaquina Maury era uma paleontóloga já bastante reconhecida por seu trabalho com moluscos terciários quando começou a trabalhar com o SGMB. Para o Serviço Geologico, no entanto, a especialização de Carlotta nunca foi considerada.  Seu contato do SGMB, o geólogo Luciano Jacques de Moraes, lhe enviava fósseis de quaisquer tipos e procedências.

Carlotta nunca recusou as encomendas, e obrigou-se a trabalhar com espécimes e idades que lhe eram desconhecidas. Para isso, nunca deixava de recorrer a seus colegas especialistas. Com resultado, ela realizou diferentes trabalho com estratigrafia desde o siluriano até o pleistoceno, trabalhando com faunas as mais diversas possíveis.

A principal contribuição de Carlotta Joaquina Maury à geologia brasileira foi a publicação “Fosseis Terciarios do Brazil com Descripção de Novas Formas Cretaceas “(Maury, C. J. 1924–1925). Neste trabalho, Carlotta relaciona inúmeras espécies de moluscos do litoral nordestino, realizando a correlação estratigráfica destas faunas com faunas similares do Caribe e do Golfo do México. Para Carlotta, os fosseis terciários brasileiros eram o centro original a partir dos quais deriva a fauna caribenha.

Para explicar a dispersão de fósseis em diversos continentes, Carlotta usava a teoria das “Pontes Continentais“. As tais  “Pontes Continentais” eram elevações do fundo do oceano, altas o suficiente para permitir a passagem de animais e plantas  de um continente para outro.  Antes da aceitação da teoria da deriva continental proposta por Alfred Wegener, as “pontes continentais” eram a principal explicação para o fenômeno.

As pontes continentais eram a explicação para a dispersão geográfica de especies por oceanos profundos; na figura estão representadas as pontes continentais mais aceitas no tempo de Wegener ( e de CJ Maury…)

Carlotta Joaquina Maury foi uma extraordinária paleontóloga e estratígrafa, tendo obtido  reconhecimento e respeito por seus pares. Tinha a reputação de ser extremamente eficiente e enérgica. Em geral, cumpria os prazos que lhe eram dados com presteza e dedicação. Com tudo isso, não é de estranhar que tenha sido uma das primeiras consultoras independentes trabalhando com as empresas petrolíferas.

Capa de uma publicação de CJ Maury sobre os fósseis do Nordeste brasileiro (1934)

Da mesma forma, tinha uma condição econômica privilegiada, o que facilitou as decisões que tomou ao longo de sua vida.

No entanto, como diversas mulheres cientistas de seu tempo, Carlotta Joaquina Maury precisou abdicar de sua vida pessoal para ter uma carreira cientifica. Para a paleobotânica americana  Winifred Goldring (1888-1971), as cientistas mulheres podiam combinar vida pessoal e carreira “somente em casos excepcionais“. A irmã de Carlotta, Antônia Caetana Maury, influente astrônoma, também teve uma vida celibatária.

Carlotta também não foi bem sucedida em sua carreira como professora, sempre assumindo papeis subordinados. Nos Estados Unidos, conseguia ser somente assistente. O magistério superior só lhe foi permitido em locais distantes, como a Africa do Sul.

No entanto, sua energia e sua força, aliada a seu grande conhecimento cientifico, lhe trouxe reconhecimento ainda em vida.  O fato de ter se mantido durante tanto tempo sempre com encomendas das companhias petrolíferas e dos Serviços Geológicos mostra isso.

Carlotta também era uma profissional que não tinha medo de campo. Sempre que possível, estava coletando fosseis e fazendo trabalhos de pesquisa longe dos laboratórios. A expedição para São Domingos, que liderou, foi também um exemplo. Ela tinha energia e auto-estima para realizar expedições sem esperar por autorização de chefes e colegas.

Moluscos Mesozoicos no livro de Maury (1934)

Quanto ao Brasil, embora nunca tenha estado aqui, Carlotta também deixou sua marca. Seus trabalhos sobre a paleontologia e estratigrafia de diversas bacias sedimentares brasileiras são ainda de grande valor cientifico. Seu trabalho para o SGMB foi sem duvida muito importante.

Sua morte veio em 1938, após uma longa doença que só a abateu nos momentos finais. No ano seguinte, o geólogo C.A. Reeds  publicava o Memorial de Carlotta Joaquina Maury  nos anais da Sociedade Geologica Americana, louvando seu papel como grande conhecedora das faunas terciárias do golfo do México, Venezuela e Brasil.

Apesar de ter nome de rainha, Carlotta foi uma cientista. E das boas. Da mesma forma, embora não tenha nunca ocupado tal papel, seu nome e sua energia nos fazem pensar em Carlotta não como rainha, mas como uma princesa.

Carlotta Joaquina, Princeza dos fósseis do Brazil .

PARA SABER MAIS:

Arnold, Lois. “The Education and Career of Carlotta J. Maury: Part 1.” Earth Sciences History 28.2 (2009): 219-244.

Arnold, Lois. “The Education and Career of Carlotta J. Maury: Part 2.” Earth Sciences History 29.1 (2010): 52-68.

Aldrich, Michele. “Women in paleontology in the United States 1840-1960.” Earth Sciences History 1.1 (1982): 14-22.

O Monstro do Pleistoceno e o filho de Chica da Silva

Uma coisa estranha aconteceu na lavra de ouro do Padre Lopes. Durante as escavações para retirada do cascalho, começaram a aparecer uns ossos muito grandes. Contudo, tão grandes eram os ossos, que os escravos a princípio acreditaram tratar-se de um grande tronco enterrado. Desta forma, os ossos estavam difíceis de ser retirados intactos, e foram quebrados com pás, picaretas e enxadas. Da mesma forma, começaram a aparecer cabelos e foram achados também dois dentes de um animal muito estranho. Seria um monstro? Assustados, os escravos pararam a escavação e chamaram o capataz, que também ficou assustado com o que viu.

Dentes de mastodonte encontrados em Nova York no século XVIII. Seriam similares aos do Monstro de Prados?

Corria o mês de maio do ano de Nosso Senhor de 1785. Este fato aconteceu na região de Prados, na Comarca do Rio das Mortes. Todavia, os moradores informaram o Governador da Capitania, D. Luís da Cunha Menezes, sobre o achado. Assim, o governador Dom Luiz, tomado de grande curiosidade, enviou ao local um dos seus mais competentes naturalistas, Simão Pires Sardinha. Sardinha esteve na lavra do Padre Lopes e investigou a ossada ainda naquele ano. Depois de analisar a lavra e coletar ossos, dentes e cabelos,  elaborou um relatório (naquela época dizia-se memória) sobre aquele estranho material.

“UNS OSSOS MUITO ESTRANHOS”

Esta memória intitulou-se “Descripção de huns Ossos não conhecidos, que apparecerao em Mayo de 1785 na Cappitania de Minas Geraes do Estado do Brazil”.  Foi enviado a Portugal possivelmente junto com os materiais coletados. São conhecidas duas cópias da Memória de Simão Pires Sardinha. A primeira está no Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa. A segunda, no Arquivo Histórico do Museu Bocage/Museu Nacional de História Natural da Universidade de Lisboa. Já os materiais coletados foram extraviados, e não se tem ideia onde estejam atualmente. Mais informações pode ser encontradas no interessante artigo de Antônio Carlos Fernandes e colaboradores (aqui).

Pelo tamanho dos ossos encontrados, Sardinha estima que o animal deveria ter algo entre 46 e 56 palmos de comprimento (cerca de 10 a 12 m). Assim, Descreve também dois dentes encontrados no sítio de Prados: “Estes dentes não são de animal conhecido no Brasil, pode ser que sejam de algum animal, que pelas revoluções do tempo se tenha perdido a sua espécie”. Os cabelos, segundo sua descrição, pareciam de seres humanos. Como estes materiais foram encontrados juntamente com resíduos de espécies recentes, como jacarandá e pinheiro do Brasil, levam Sardinha a concluir que se tratava de um ser humano de extraordinária dimensão, um “gigante de quarenta palmos em razão dos dentes pela boa osteologia”.

Supõe-se que o “gigante” de Simão Pires Sardinha, também conhecido como “O Monstro de Prados”, era provavelmente um mastodonte (para uma discussão contemporânea: aqui). Para Sardinha, naquela época e naquelas circunstâncias, qualquer solução diferente era muito difícil (para saber como é hoje: ver aqui).

O REI MASTODONTE

Uma ossada de mastodonte encontrada no século XVII  num depósito de cascalho na França foi durante muitos anos descrita como a ossada do “Rei gigante” Theotobhucus, antigo rei dos povos germânicos. Outra ossada, descoberta em 1705 nos aluviões do rio Hudson, no estado de Nova Iorque foi durante descrita na época como o “Gigante de Claverack”, nome da localidade onde foi achado ( ver aqui ).

Os Gigantes descritos por Athanasius Kircher no “Mundus Subterraneus” (1678)
Os Gigantes descritos por Atanasius Kircher no “Mundus Subterraneus” (1678)

Havia, na época, uma crença de que a Terra era uma ruína, lugar decaído e sem forças. Na sua infância, antes do Diluvio universal, a terra chegara a ser habitada por gigantes, como havia mostrado Athanasius Kircher (1601-1680), Jesuíta e um das maiores estudiosos de História Natural de seu tempo. Os grandes esqueletos achados sob os aluviões supostamente pertenciam a estes gigantes antediluvianos. Outra explicação para esqueletos de elefantes era que pertenciam a animais que vieram da África com Aníbal e outros conquistadores.

A solução para o problema de Sardinha veio dez anos depois que ele escreveu sua Memória. Em 1º Pluviose do 4ºAno da Revolução Francesa (26 de janeiro de 1796) Georges Cuvier leu na sessão do Instituto Nacional de Ciências e artes de Paris uma memória que dava uma outra solução para o problema.

A memória de Cuvier intitulava-se “Mémoire sur les espéces d’Élephants tant vivents que fossiles” [Memória sobre espécies de elefantes tanto vivas quanto extintas]. Nele, Cuvier explica que o mamute era uma espécie distinta do moderno elefante. Distinta e extinta. E começa a surgir a Paleontologia de vertebrados como conhecemos hoje.

Geroges Cuvier, Paleontólogo Francês (1769-1832) e seus desenhos de mandíbulas de mamute (acima) e de elefante moderno (abaixo)
O INICIO DA PALEONTOLOGIA NO BRASIL

Boa parte dos escritos sobre a história da Paleontologia de vertebrados no Brasil está ainda focada somente em escritos de Naturalistas estrangeiros, após a chegada da família real em 1808. No entanto, estes relatos ignoram uma realidade muito rica e interessante, que é o desenvolvimento das ciências no Império Português sob o impulso das reformas de Pombal.

A segunda metade do século XVIII foi marcado por um grande esforço cientifico por parte dos naturalistas do império português (para saber mais: aqui) . Muitos destes naturalistas eram nascidos no Brasil. O mais famoso deles, é, sem dúvida, José Bonifácio. No entanto, existem outros, muitos outros, que merecem ser lembrados. Um deles, por sua singularidade e por sua história de vida, merece particularmente ser lembrado: Simão Pires Sardinha.

O FILHO ALFORRIADO

Simão Pires Sardinha nasceu escravo, em 1751. Seu pai, o comerciante português Manoel Pires Sardinha somente libertou o menino que teve com a escrava Francisca Parda na pia batismal, como era o costume na época. Entretanto, pouco tempo depois, sua mãe foi vendida para outro comerciante português, João Fernandes de Oliveira.

João Fernandes logo alforriou Francisca e passou a viver maritalmente com ela. A escrava Francisca Parda passou então a se chamar Francisca da Silva e Oliveira, nome com que se assinava. Para a história, ela hoje é conhecida como Chica da Silva, a “Chica que manda”, uma das grandes senhoras do Distrito Diamantino no século XVIII. O casal teve 13 filhos, sem contar o pequeno Simão.

A casa de Francisca da Silva, a Chica da Silva, em Diamantina (MG). Nesta casa Simão Pires Sardinha viveu sua infância.

Tendo recebido a herança paterna, Simão foi com o padrasto João Fernandes para a Europa. Graduou-se em artes em Coimbra. Foi cavaleiro da ordem de Cristo, a mais alta distinção concedida pelo reino para não-nobres. Para isso, teve que forjar o inquérito ao omitir o fato de sua mãe ter sido escrava. Na sociedade aristocrática da época, origens “nobres” eram o requisito para ser aceito. O dinheiro, que Simão possuía, era a outra.

SIMÃO PIRES SARDINHA E A POLITICA NO BRASIL

Voltou ao Brasil com o governador Luís da Cunha Menezes, por quem tinha grande admiração. No entanto, viver num pais de analfabetos fazia com que os escassos letrados que aqui viviam tivessem que ocupar muitas funções diferentes. Desta forma, além da ocorrência de Prados, Simão Sardinha foi também responsável pela captura do ex-Intendente dos Diamantes, José Antônio Meireles, o Cabeça de Ferro. Contudo, o Cabeça de Ferro fugia para Portugal com ouro supostamente roubado da administração, e foi preso por Sardinha antes de chegar ao Rio. Assim, com tantas e disparatadas atividades, muitas carreiras cientificas podiam ser facilmente desviadas para as necessidades da burocracia estatal. Esta foi nossa realidade durante muito tempo ainda.

Sardinha teve ainda participação na Inconfidência Mineira. Ao que tudo indica, Simão Pires Sardinha compartilhava dos ideais iluministas, embora soubesse jogar o jogo do Portugal aristocrático e absolutista. Desta forma, de volta a Portugal, contou no inquérito a que foi submetido ter sido procurado pelo alferes Joaquim José da Silva Xavier. O Tiradentes procurou Sardinha para que este traduzisse para o alferes um texto da Constituição Americana. Texto subversivo, por certo. No entanto, Simão não sofreu nenhuma condenação e continuou vivendo em Portugal. Assim,  graças a sua amizade com D. João VI, conseguiu ajudar seus meios-irmãos que ficaram no Brasil.

CIÊNCIA NA AMERICA PORTUGUESA?

Simão Pires Sardinha morreu em Portugal em 1808. Ironicamente, segundo muitos historiadores da ciência, foi a partir deste ano que começou a Ciência no Brasil. Contudo, a Memória de Sardinha demostra que não. O fato é que a Memória do Monstro de Prados é o mais antigo documento que trata do tema Paleontologia em território brasileiro. É nossa certidão de nascimento.

Entretanto, a descrição de Simão Pires Sardinha está de acordo com o conhecimento da época. Sua trajetória de vida indicam as dificuldades para se ter uma carreira em ciências no Brasil. Contudo, se era difícil no império Luso-americano dos setecentos, continua difícil ainda hoje, no Brasil do século XXI ( veja e chore aqui) ). Um tema moderno no pais de Temer.

A trajetória pessoal de Sardinha liga a Paleontologia dos Vertebrados à Chica da Silva. Não é para qualquer um.

Para saber mais:

Furtado, Júnia Ferreira. Chica da Silva e o contratador dos diamantes: o outro lado do mito. Editora Companhia das Letras, 2003.

Semonin, Paul. American monster: How the nation’s first prehistoric creature became a symbol of national identity. NYU Press, 2000.

Rudwick, Martin JS. The meaning of fossils: episodes in the history of palaeontology. University of Chicago Press, 2008.

HISTÓRIA DO PETRÓLEO NO BRASIL

Capa do Livro “o petróleo no Brasil: Exploração, Capacitação Técnica e Ensino de Geociências (1864-1968)”

A história do petróleo no Brasil ganha mais um capitulo. Já não era sem tempo, uma vez que a importância e a atualidade do tema assim o exigia. Assim, para se entender a Historia do Petróleo no Brasil, é interessante entender alguns aspectos essenciais. Uma característica marcante da busca por petróleo foi a insistência num caminho nacional.

No entanto, a maioria dos textos sobre o assunto abordam a história do petróleo a partir de pontos de vista políticos ou econômicos. Explorar o petróleo no Brasil sempre foi, é claro, achar óleo. Mas, também, significou formar recursos humanos. E foi a busca pelo Petróleo que forjou a comunidade Geocientífica brasileira.

UMA OBRA BEM VINDA

Por todos estes motivos, é de extrema importância para a história do petróleo no Brasil o recente livro da pesquisadora Drielli Peyerl. Intitula-se “O Petróleo no Brasil: exploração, capacitação técnica e ensino de Geociências (1864 – 1968) (mais informações aqui). Trata-se de uma produção acadêmica com um tema interessante e uma linguagem acessível, o que não é pouco.

Este livro foi um doutorado defendido no programa de Ensino e História de Ciências da Terra (UNICAMP). Orientada pela Prof.ª Dr.ª Sílvia Figueiroa, Drielli fez sua busca em arquivos do Brasil, do México e dos Estados Unidos. Um dos arquivos mais interessantes, entretanto, estava perto.

Foi o arquivo da Coleção Frederico Waldemar Lange, depositada na Universidade Estadual de Ponta Grossa. Neste arquivo  Drielli fez seu mestrado, intitulado “A trajetória do paleontólogo Frederico Waldemar Lange (1911-1988) e a História das Geociências” (2010), orientada pelo paleontólogo Elvio Bosetti (para ver mais, clique aqui). Além de Lange, surge nesta pesquisa um personagem também muito interessante, o geólogo Americano Walter Link (1902-1982). Falaremos dele mais adiante.

Uma História do Petroleo

O primeiro capítulo do livro de Drielli, intitulado “Surge o Petróleo”, trata do início da pesquisa de petróleo no Brasil. Com o uso de diversas fontes históricas, Drielli consegue chegar até 1864, quando é publicado o decreto que cita pela primeira vez a palavra petróleo na legislação brasileira.

A partir de então, a autora mostra como o petróleo vai se tornando cada vez mais importante na discussão nacional. A partir deste início um tanto tímido, o tema petróleo retorna à legislação na transição do Império para a República. Contudo, no início, as iniciativas de busca pelo petróleo são de particulares. Entretanto, a partir dos anos 1920, o governo brasileiro começa a participar mais ativamente da pesquisa de petróleo em todo o território nacional.

O primeiro poço de Petróleo perfurado no Brasil (Bofete, SP)
O Conselho Nacional do Petróleo

No entanto, somente no final dos anos 1930, já no Estado Novo, é que o tema passa a um novo patamar, coma criação do Conselho nacional do Petróleo (CNP). É este conselho que passa a dirigir a pesquisa, até a primeira ocorrência na Bahia em 1939. Descoberto o petróleo, havia uma grande dúvida: como explora-lo?

No segundo capítulo, denominado “A Formação do Know-How (1938-1961)” Drielli trata da questão da contratação de técnicos estrangeiros para este serviço, o que não era visto com bons olhos no Brasil da época. A exploração deveria ser feita  pelo estado, como defendiam os nacionalistas? Ou pelas empresas estrangeiras com controle a partir do estado, como defendiam os liberais?

Foi um debate importante, tendo como pano de fundo a campanha “O Petróleo É Nosso”, que culminou, em 1953, com a criação da Petrobras. Desta forma, no final deste segundo capitulo, são utilizadas diversas fontes dos arquivos de Lange, mostrando contudo alguns aspectos interessante sobre como estava se dando a exploração de petróleo nos anos 50 e 60.

Walter Link e a Petrobrás

Aqui surge a figura de Walter Link, geólogo norte americano, chefe de Exploração da Petrobras de 1955 a 1961. Trata-se de um dos personagens-chave da História do petróleo no Brasil.  Mr Link redigiu, em 1961, um relatório bastante detalhado, onde fala das dificuldades de encontrar o petróleo brasileiro em terra.

Link sugere, com base nos conhecimentos da época, que se deveria tentar buscar petróleo no mar. Contudo, as críticas ao Relatório Link foram muito grandes. Sobretudo as esquerdas eram as maiores adversárias do geólogo norte-americano. Sem compreender a dimensão do problema, acusavam Mr Link de derrotista, ou de atender interesses estrangeiros (mais informações aqui).

Como se sabe, foi seguindo as pistas deixadas por Link que a Petrobras foi ao mar e descobriu sua verdadeira vocação. Contudo,  isso é outra história.

O geólogo norte americano -Walter Link (1902-1982), Diretor de Exploração da Petrobras (1955-1961)
Surge a Petrobrás

O terceiro capítulo, intitulado “Aperfeiçoamento, Profissionalização e o Ensino de Geociências (1955-1968) ” trata das primeiras tentativas de formação de técnicos brasileiros. Inicialmente, foi a partir dos diversos cursos de formação de técnicos do petróleo, como o Setor de Supervisão do Aperfeiçoamento Técnico (SSAT), da criação do Centro de Aperfeiçoamento de Pesquisas do Petróleo (CENAP, atual CENPES), assim como os diversos cursos de formação de engenheiros e técnicos de petróleo. Em 1957, surge a Campanha de formação de Geólogos (CAGE). Assim, a partir da CAGE, é que surgem os primeiros cursos de geologia no Brasil.

O livro busca entender as principais políticas do país em relação a um bem tão decisivo e importante como o petróleo. Inicialmente, a pesquisa e exploração surge nas mãos de particulares. Depois, é o estado que promove a busca pelo petróleo, contra toda esperança. Entretanto, os indícios geológicos de ocorrência de petróleo no Brasil nesta época eram os mais escassos possíveis.

O Petróleo é nosso?

No entanto, também é importante ver como é o petróleo que tem a capacidade de mobilizar a sociedade. É no surgimento de novas instituições cientificas e tecnológicas que foi gestada a atual comunidade geológica brasileira. A geologia brasileira surge deste estado de permanente atração e repulsão entre a comunidade geológica e a Petrobras. Todos nós surgimos deste processo, a partir da segunda metade do século XX.

Entender a história do petróleo no Brasil através do texto de Drielli Peyerl é uma fascinante jornada para compreendermos os percursos e os percalços das Geociências em nosso país.

Leitura obrigatória.

Mais leituras a partir desta:

PEYERL, DrielliFIGUEIRÔA, Silvia F. de M. . ‘Black Gold’: Discussions on the origin, exploratory techniques, and uses of petroleum in Brazil. Oil-Industry History, v. 17, p. 98-109, 2016.

PEYERL, DrielliFIGUEIRÔA, Silvia F. de M. . ‘A Petrobras prepara seu pessoal técnico’ – 1950 – 1970. Brazilian Geographical Journal, v. 3, p. 363-374-374, 2012.

 

O QUE É UM FÓSSIL?

Você sabe o que é um fóssil?

Se nos perguntassem hoje o que significa a palavra fóssil, a resposta seria mais do que óbvia. Contudo, uma rápida olhadinha no Google e logo saberemos, por meio de diversos sites, que fósseis são restos ou vestígios de organismos vivos, que foram preservados no interior dos sedimentos e das rochas. Entretanto, os cinemas, filmes de aventura como “Jurassic Park” ou animações como “A Era do Gelo” sempre nos colocam em contato direto com essas fantásticas criaturas que viveram tempos atrás. Lojas de brinquedo nos oferecem fósseis para colorir, para montar, para pregar na parede. Existe inclusive uma rede de lojas com este nome, que vende “relógios e estilo de vida”. Assim, os fósseis estão em nossas mentes, em nossas casas e em nossas vidas tão naturalmente que nos fazem pensar que foi sempre assim.

Na verdade, se fosse perguntado aos sábios do passado, eles sequer iriam entender nossa pergunta. Contudo, não faria nenhum sentido para eles essa história de fóssil, de organismo extinto, nada disso. Por outro lado, nem mesmo o nome “fóssil” faria sentido. O que hoje chamamos de fóssil era chamado de “rochas com forma de animais”, “madeiras petrificadas”, ou qualquer outra coisa. Mesmo a palavra fóssil teria outro significado, significando coisa escavada, desenterrada. É essa a acepção do latim “fossile”. No século XVI, por exemplo, qualquer coisa desencavada da terra, como rochas e minerais, seriam “fósseis”.

O médico Georg Bauer (1494-1555), também conhecido pelo nome latinizado de Georgius Agrícola, era de fato um dos maiores especialistas de seu tempo em assuntos do reino mineral.  Agrícola viveu na rica província mineira da Saxônia, e escreveu vários livros sobre rochas minerais. Aliás, um estes livros, publicado em 1546, chamava-se justamente “De Nature Fossilium”, que poderíamos traduzir como “Da Natureza das Rochas e Minerais”. As coleções de materiais que ele denomina fósseis contém “pedras, terras, gemas, betume, âmbar”. As “rochas com forma de animais e de plantas”, como se dizia nesta época, eram somente mais um item destes materiais. Eram, entretanto, objeto de mera curiosidade.

Antes ainda, na Idade Média, vamos encontrar usos diversos para os fósseis. Algumas igrejas, como a Igreja de São Pedro em Linkeliholt, na Inglaterra, por exemplo, foi decorada com fósseis de equinoides (veja a figura abaixo).  Por outro lado, os fósseis tinham também uma função decorativa, devido ao seu formato regular e simétrico. Desta forma, desde o neolítico até tempos históricos, foram encontrados jazigos humanos de diversas idades, onde os fósseis estão junto com os cadáveres ali enterrados. Isto pode sugerir que foram usados como objetos rituais e mágicos ou talismãs.

Pórtico da igreja de São Pedro em Linkeliholt, Inglaterra, decorada com 25 fósseis de equinodermos; (ver aqui)

Tumba de mulher e criança da idade do Bronze em Dunstable Towns, Inglaterra, circundada por fósseis de equinoides. Desenho de Reginald Smith, 1894. ( Ver aqui)

 

 

 

Falando em usos religiosos dos fósseis, vale a pena comentar, entretanto, alguns exemplos. Primeiramente, podemos citar os amonitas, moluscos que viveram desde o Devoniano até o Cretáceo. Para começar, estes moluscos devem seu nome a seu formato elegantemente espiralado, assemelhando-se a chifres das cabras. Por causa desta semelhança, segundo Plínio o velho, o nome amonitas se deve à sua denominação como “os cornos de Amon”, o deus egípcio que tinha chifre de cabra. Na Índia, alguns fósseis de amonitas, como o Meekoceras varaha, encontrado no Triássico do Himalaia Central, é tido como um dos Chakras de Vishnu. Aliás, varaha, o nome da espécie, é um dos avatars de Vishnu na Mitologia do Hinduismo. Alias, Carolina Zabini também discutiu muito bem em outro post deste blog a origem dos dragões e a paleontologia (ver aqui).

O Chakra de Vishnu e o amonite como objeto religioso na Índia; ( ver aqui )

Como isso tudo mudou? Como chegamos até aqui? A moderna concepção de “fóssil” como restos de organismos é bastante recente, de meados do século XVIII. Por outro lado, esta mudança no conceito de fóssil e a compreensão dos fosseis como organismos e não como curiosidades ou talismãs está no discurso de fundação das ciências naturais modernas. Isso não é pouco.

Figurinhas carimbadas da História da Ciência tiveram um papel decisivo nesse debate, como Steno, Palissy, Cuvier e outros. Mas não só. Mesmo anônimos colecionadores e vendedores de fósseis tiveram um papel importante. Por exemplo,  a britânica Mary Anning (1799-1847), foi uma das mais respeitadas colecionadoras de fósseis do século XIX. Por outro lado, um humilde topógrafo inglês, William Smith (1769-1839), reconheceu a distribuição dos fosseis nas camadas ao longo dos canais construídos na Inglaterra no século XVIII para o transporte de carvão. Como resultado, criou as bases da estratigrafia moderna.

Em conclusão, Essas são algumas peças do debate sobre os fósseis que veremos por aqui. Os fósseis dizem muito também sobre nós, e não só os fósseis de hominídeos. De onde viemos? Para onde vamos? Esses pálidos restos escondidos nas pedras têm muito a nos contar, enquanto esperamos pelo próximo meteoro.

 

Para saber mais:

Chandrasekharam, D. (2007). Geo-mythology of India. Geological Society, London, Special Publications273(1), 29-37.

McNamara, K. J. (2007). Shepherds’ crowns, fairy loaves and thunderstones: the mythology of fossil echinoids in England. Geological Society, London, Special Publications273(1), 279-294.

Georg Agricola. (1955). De Natura Fossilium (Textbook of Mineralogy): Translated from the First Latin Ed. of 1546 by Mark Chance Bandy and Jean A. Bandy for the Mineralogical Society of America (No. 63). Geological Society of America, pc1955.