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Sobre Jefferson Picanço

Possui graduação em Geologia Pela Universidade Federal do Paraná (1989), mestrado (1994) e doutorado (2000) em Geociências (Geoquímica e Geotectônica) pela Universidade de São Paulo. Atualmente é professor do Instituto de Geociências, Universidade Estadual de Campinas. Entre os seus atuais interesses de pesquisa estão Gestão de Desastres, Cartografia Geotécnica e História das Ciências Naturais.

Fazer Ciência no Brasil: a que será que se destina?

Fazer Ciência no Brasil nunca foi fácil.

No entanto, sem Ciência o Brasil não existiria. Como pensar o país que temos e queremos sem Ciência?

CIENCIA E DESCOBRIMENTO
Jean (ou Nicole) D`Oresme, provando, no seculo XII,que a Terra era redonda…

Sem os avanços tecnológicos do fim da Idade Média, por exemplo, a expansão europeia não aconteceria. Com a introdução da bússola e da pólvora (invenções chinesas) e sem o avanço técnico da navegação jamais Cabral aportaria aqui.

E não só isso: sem os grandes cartógrafos e matemáticos, como Jean de Oresme e outros, Colombo não saberia que a terra era redonda. Ficaria lá na sua Gênova natal dando milho aos pombos(aliás, nem milho, porque o milho é americano..). O mundo jamais poderia ser cartografado, como o fez Mercator.

CIÊNCIA E COLONIZAÇÃO
Os métodos de pesquisa de minerais seguiam os preceitos da alquimia e da astrologia, alem da procura dos sinais da natureza. ilustração do De Re metellica (1556) de Georgius Agricola (1494 – 1555)

Os avanços da maquinaria durante o Renascimento é que permitiram a instalação dos primeiros engenhos de cana que fizeram a riqueza nos primeiros anos de Brasil. Sem os conhecimentos técnicos de mineração, tanto europeus quanto indígenas, as jazidas de ouro e prata das Américas jamais teriam sido riquezas.  Para isso foram importantes o conhecimento de pessoas como Georgius Agricola, Martine de BertereauBartolomeu de Medina, entre outros.

No século XIX os solos de São Paulo foram exaustivamente pesquisados para melhor acolher as lavouras de café. A Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo, liderada por Orville Derby pesquisou exaustivamente os rios e cachoeiras paulistas para determinar seu potencial para a produção de energia elétrica. Ciência para alavancar a agricultura e a indústria.

CIÊNCIA E DESENVOLVIMENTO

Inúmeras pesquisas foram feitas para achar carvão mineral no Brasil. Nosso carvão era (ainda é) pouco e ruim. É o que temos para hoje. Mas isso não é culpa de Wagoner, Francisco de Paula Guimarães e outros que o pesquisaram. Nosso ferro foi trabalhado com carvão vegetal, com custos ambientais muito maiores e com eficiência menor. Graças aos esforços de homens com Varnhagen, Bloem, e Mursa  no século XIX, temos uma produção siderúrgica respeitável.

No século XX o Brasil se industrializou. Para isso foi necessário construir estradas, ferrovias, melhorar os portos. Nossa engenharia foi convocada e deu conta do recado. Ainda falta muito a se fazer, mas não é por culpa da Ciência ou da Técnica.

SER CIENTISTA NO BRASIL
Orville Derby, ainda moço, quando veio ao Brasil pela primeira vez; depois, comandaria a Comissão Geografia e Geologia que desbravou e fez o reconhecimento cientifico do interior paulista requerido pela pujante cafeicultura.

O cientista brasileiro sempre foi um ser bizarro e raro. Na Colônia e no Império, os poucos que entre nós haviam estavam sempre sobrecarregados. Além de seu trabalho de pesquisar, estudar e ensinar, também tinham que cuidar dos serviços públicos, do governo e até da aplicação das leis.

Além de ser um Filósofo Natural importante na Minas Gerais dos Setecentos, Simão Sardinha foi encarregado também de prender o célebre facínora Cabeça de ferro (dá pra colocar isso no Lattes?). Desviados de sua atividade científica para os necessários labores do país que então se fazia temos nomes ilustres, como José Bonifácio e o Barão de Capanema, entre tantos outros.

UMA CIÊNCIA NACIONAL?

Ao longo do século XX esta Comunidade Cientifica brasileira cresceu e se especializou. Somos um grupo importante da Ciência Mundial. Mas fazer Ciência no Brasil não é fácil. Temos os nossos problemas, as nossas deficiências. Mas estamos aí, trabalhando duro, fazendo muito com pouco, fazendo Ciência e formando gente qualificada.

Uma Ciência Nacional, pensando os interesses do Brasil foi responsável, entre outras coisas, pela erradicação das doenças tropicais no século XX, com Vital Brasil e Oswaldo Cruz, Carlos Chagas . A ciência no Brasil sempre foi, ao contrario do que se pensa,  uma Ciência aplicada, de resultados. Nossa realidade nunca nos permitiu torres de marfim.

Contudo, temos as maiores safras agrícolas do mundo, conquistando solos que seriam impensáveis há poucos anos, por causa de nossa pesquisa agropecuária, com destaque para a Embrapa. No início do século XX, por outro lado,  conseguimos alcançar as jazidas de petróleo em grande profundidade, graças aos esforços dos geólogos da Petrobrás, liderados por Guilherme Estrella.

FAZER CIÊNCIA NO BRASIL

A Ciência Brasileira contribuiu enormemente para que o país crescesse tivesse o destaque que teve. Alguém vai dizer que termos uma ciência pobre, subdesenvolvida. Claro que é. É possível uma ciência desenvolvida num país subdesenvolvido?

Ao contrário, todo país que se desenvolveu e se tornou um país dinâmico e complexo o fez porque tinha a sua ciência. Vejam a Alemanha e os Estados Unidos no século XIX. TAmbem são exemplos notaveis  o Japão e os demais países asiáticos no presente. Basta olhar mais de perto estas sociedades para ver se algum deles prescindiu de uma ciência forte. Vejam a China, a Coréia.  Em cada um haviam cientistas. Foram comunidades que plantaram e protegeram a planta tenra e frágil da ciência, para depois colher os frutos da grande arvore que ela depois se transformaria.

UM SALTO PARA TRÁS

No entanto, em anos recentes a Ciência Brasileira estava para dar um salto para frente. Além de crescer, aumentar seu impacto. Estávamos conseguindo nos impor no cenário mundial. Entretanto, vieram os cortes nas verbas de pesquisa. Estamos retrocedendo. A planta da Ciência Brasileira precisa de água para voltar a crescer.

Contudo, mais preocupante que isso são os discursos que dizem que não precisamos de Ciência no Brasil. Que fazemos ciência inútil. Por certo, alguns desses ignorantes devem ainda achar, contra todos os sábios medievais, que a terra é plana. Só pode ser isso. Ou que as espécies não se transformam e mudam. Ou que os continentes não se movem.

EXISTE?

Pior, alguns ignorantes dizem que não existe Ciência no Brasil. Entretanto, dizem por dizer, como sempre, levianamente a falar de suas pós-verdades. É uma gente que vira as costas para o futuro, ignorando uma pujante comunidade cientifica

que vai, aos trancos e barrancos fazendo seu papel, contra tudo e contra todos.

Nunca foi fácil fazer ciência no Brasil.

Mas pensem no que seria um país sem ciência.

 

PS – Daí porque é necessário Historia da Ciência: entender que construir uma Ciência Nacional leva seculos de esforço e luta contra as trevas e a ignorância ; essa luta não acaba nunca…. 

SHE SELLS SEA SHELLS ON THE SEA SHORE

É de manhã cedo. O mar está calmo, e a maré baixa. Na grande falésia branca da praia de Lyme Regis, em Dorset, na Inglaterra, um grupo de pessoas está trabalhando nos rochedos. Usando martelos e picaretas, eles cortam o paredão em busca de fósseis. Entre eles está uma mulher. Mary Anning, acompanhada de seu cãozinho vira-lata Tray, está protegida do frio e da maresia usando roupas largas. Na cabeça, usa um chapéu de palha amarrado no pescoço para não ser arrancado pelo vento do mar .

Praia de Lyme Regis, Dorset, onde Mary Anning viveu e “caçou” diferentes tipos de fósseis…
FÓSSEIS PARA (SOBRE)VIVER

Mary Anning (1799-1847) é a chefe do grupo de coletores de fósseis. Dona de uma pequena mas bem sortida loja, ela é uma das maiores fornecedoras de fosseis para colecionadores e museus de toda a Europa. Mesmo dos Estados Unidos vem pesquisadores e colecionadores para ver – e comprar! – suas preciosidades.

Mary Anning (1799 – 1847) e seu cãozinho Tray, A pintura é de 1842.

De origem humilde, a família de Mary Anning começou a coletar fosseis para complementar a parca sobrevivência. No entanto, seu pai Richard, sua mãe Molly e seu irmão Joseph também eram exímios coletores de fosseis. Entre os fosseis mais importantes que coletaram estão os famosos esqueletos dos plesiossauros, grandes lagartos marinhos.  Hoje, boa parte dos fosseis coletados por Mary Anning e sua família estão expostos no Museu de História Natural em Londres. Da mesma forma, na França, na Inglaterra e na Alemanha, quase todos os grandes Museus de História Natural têm fósseis  coletados por ela.

Mesmo sem uma educação formal, Mary Anning chegou a participar da construção da Paleontologia moderna. No entanto, ela chegou mesmo a participar de alguns debates,  corrigindo algumas distorções e classificações incorretas. Dona de um saber prático, Mary Anning ajudou muito neste estagio embrionário da paleontologia.

DORSET NO JURÁSSICO

Embora tenha chegado a ter uma loja, vendendo fosseis para toda a Europa, Mary Annning sempre passou por varias necessidades financeiras. Para tanto, várias pessoas ao longo de sua vida, penalizadas com as duras condições de Mary Anning e sua família, fizeram subscrições para ajudar.

 

Duriea Antiquor (Dorset antigo) de Henri de la Beche (National Museum of natura History of Wales). A luta fictícia entre o ictiossauro e o plesiossauro ficou tão famosa que Julio Verne a incluiu em seu “Viagem ao Centro da Terra”.

Entretanto, uma das mais criativas e interessantes subscrições foi feita por um grande amigo de Mary Anning, o geólogo Henri De La Beche. Bom desenhista e caricaturista, De La Beche desenhou uma gravura cujas vendas pudessem ajudar financeiramente Mary Anning, já então bem doente de um câncer de seio. Contudo, a gravura, intitulada Duriea Antiquor (“Dorset antigo” em latim), retrata com precisão e bom homor qual teria sido, há milhões de anos atrás, a vida dos fósseis coletados por Mary Anning.

Bem desenhado e bem elaborado, Duriea Antiquor é um dos primeiros e mais importantes desenhos sobre o mundo anterior aos humanos. Contudo, a sua representação da vida no jurássico até hoje é uma das mais influentes da paleontologia. A gravura até hoje baliza a maneira como representamos até hoje a vida antiga na  Terra.

VENDER CONCHAS DO MAR NA BEIRA DO MAR…

A vida e os perrengues pelos quais passou Mary Annning dariam um poema. Ou um livro. Ou um filme. Ou tudo isso.

No início do século XX o escritor inglês H. A. Forde  publicou “The Heroine of Lyme Regis: The Story of Mary Anning the Celebrated Geologist”. Baseado no relato de Forde, muitas histórias inspiracionais sobre Mary Anning foram escritas. Entretanto, talvez ela seja também a inspiração para o poema – e terrível trava-línguas –  que todos os estudantes de inglês língua estrangeira se confrontam:

She sells seashells on the seashore
The shells she sells are seashells, I’m sure
So if she sells seashells on the seashore
Then I’m sure she sells seashore shells.

MERYL STREEP?

Em 1969 outro escritor inglês, John Fowles, escreveu um romance histórico chamado “The French Lieutenant´s Woman” (a mulher do tenente francês). Contudo, na história de Fowles, está patente a denúncia do preconceito de classe e de gênero que  Mary Anning sofreu. Mesmo tendo ajudado tantos cientistas, ela nunca ficou, em vida, com a fama da descoberta. O único que homenageou Mary Anning durante sua vida, entretanto, foi o zoólogo franco-suíço Louis Agassiz, que a conheceu pessoalmente em 1834 e nomeou duas espécies de peixe com seu nome.

O livro de Fowles foi um grande sucesso de público e crítica. Em 1982 foi adaptado para o cinema pelo teatrólogo e roteirista Harold Pinter, e dirigido por Karol Reisz. Como protagonistas, ninguém menos que Meryl Streep e Jeremy Irons. Da mesma forma, o livro também virou peça de teatro de grande sucesso.

Poster do filme “A mulher do tenente francês”, de 1982, com Meryl Streep e Jeremy Irons. A historia é livremente baseada na vida de Mary Anning
UM GRANDE VULTO DA CIENCIA

Entretanto, em 1999, bicentenário de seu nascimento, houve um grande evento em seu nome na praia de Lyme Regis. Da mesma forma, em 2005, o Museu De História Natural de Londres incluiu seu nome ao lado de outros grandes vultos da ciência. Nesta exposição, ela está ao lado de personalidades como Carl Linné  e William Smith.

Mary Anning morreu em 1847, vítima do câncer. Ela viveu toda a vida entre os penhascos de Lyme Regis, escavando a lama do mar jurássico em busca de fosseis para sobreviver. Mas, inadvertidamente, foi uma das maiores paleontólogas de todos os tempos.

Contudo, Mary Anning nos desvendou os abismos do tempo e os fantásticos animais que o habitaram. Desta forma, para ajudá-la foram feitas as primeiras representações sobre o mundo antigo que conhecemos. Foi vítima do preconceito de classe e de gênero. No entanto, Com sua vida, inspirou muitas outras.

Mary Anning é tanta inspiração que ultrapassou a Ciência. Mary Anning é pop. Foi livro, peça, filme. Virou até trava-línguas!

Não é pra qualquer um…

Uma historia de amor, magia e …. mineração!

Para Maria José, minha Martine de Bertereau

Martine de Bertereau e Jean de Chastelet são um dos casais mais interessantes da história da mineração. Jean e Martine, O barão e a baronesa de Beau-Soleil, trabalharam dezenas de anos lado a lado na função de descobrir e explorar jazidas minerais.  Neste caminho, juntando alquimia, magia, acusações de bruxaria e um sólido casamento, construíram uma obra das mais originais da história da mineração moderna.

As mulheres também tinham papeis importantes na ciência alquímica. esta imagem mostra uma alquimista preparando suas experiências da “Grande Arte”

Jean de Chastelet, Barão de Beau-Soleil, nasceu em 1578 em Brabant, nos Países Baixos espanhóis. Hoje, Bélgica. Não se sabe onde estudou. Contudo, seus conhecimentos o levaram para a mineração.  Com 22 anos, Jean de Chastelet foi chamado para trabalhar na França pelo superintendente de Minas, para trabalhar como mineralogista, alquimista e “mineiro”. Mineiro, na linguagem da época, seria algo próximo do atual engenheiro de minas.

MARTINE E JEAN

Em 1610, ele se casa com Martine de Bertereau, moça culta e educada, que vinha de uma antiga família de mineradores. No entanto, não se conhece muitos detalhes de sua familia.  A própria Martine escreveu anos depois que  a ciência das minas era “hereditária na família“. De toda forma, Martine falava diversas línguas, era fluente em latim e sabia os rudimentos de hebraico. Tinham também sólidos conhecimentos de alquimia, química, metalurgia, geometria, hidráulica e outras ciências.

O casal vai trabalhar sob a proteção do rei Henrique IV, rei liberal e patrono das artes e das ciências, inclusive da alquimia. No entanto, com a morte do rei logo a seguir, Jean e Martine perdem seu emprego. Apesar de tudo, isso não os tirou da mineração: nos 16 anos seguintes, eles passam viajando e conhecendo as mais diversas minas da Europa. Há evidências que teriam também trabalhado nas famosas minas de Potosi, na atual Bolívia, então as maiores minas de prata do mundo.

Em 1626, o casal volta à França. Nesta época, o barão e a baronesa de Beau-Soleil foram comissionados para ordenar as áreas de mineração francesas, as quais haviam sido negligenciadas por anos. Eles tinham que localizar minas antigas, prospectar novos depósitos e reavaliar as condições das minas em funcionamento. Era uma tarefa grande. No entanto, o barão e a baronesa tinham certeza de um ganho financeiro muito grande. Nestes anos, segundo suas contas, eles haviam gasto cerca de 300 mil libras no trabalho.

ACUSAÇÕES DE BRUXARIA

No entanto, um episódio muito desagradável ocorreu na vida da família Beau-Soleil na pequena cidade francesa de Morlaix, na Bretanha. Corria o ano de 1627. Um bailio, antigo oficial de Justiça provincial, invadiu os alojamentos do casal, que estava fora em viagem. Nos alojamentos, o bailio encontrou pedras preciosas, amostras de minerais, instrumentos de prospecção e refino de metais, livros sobre fundição e alquimia, cadernos e papeis de todos os tipos. Parecia evidente: o estranho casal praticava as mais estranhas feitiçarias.

Uma acusação de bruxaria nesta época era muito séria. Apesar do magistrado de Rennes, que julgou o caso, ter absolvido o casal, os bens confiscados pelo bailio nunca retornaram a seus antigos donos. Assustados, Jean e Martine fugiram e se refugiaram na Áustria, onde Jean foi nomeado conselheiro das minas da Hungria pelo imperador Ferdinando II.

O PEDIDO AO CARDEAL

Pouco tempo depois, no entanto, procurando reaver o dinheiro investido, Jean e Martine retornaram à França. Em 1632, Martine de Bertereau escreveu “Declaração verdadeira ao rei e aos cavalheiros do conselho sobre os ricos e estimados tesouros recentemente descobertos no reino da França”. Nesta publicação, que era uma mistura de relatório e solicitação de reembolso, Martine descreve as minas descobertas ou trabalhadas pelo casal Beau-Soleil na França até então. A estratégia tem sucesso, e Jean recebe a patente de inspetor geral das minas da França.

No entanto, as condições financeiras não melhoraram. Em 1640, Martine de Bertereau escreveu uma nova carta. Não ao Rei, mas ao todo poderoso Cardeal Richelieu. Nesta carta, publicada com o título de La Restauration de Pluton (A restituição de Plutão), Martine de Bertereau descreve novamente diversos depósitos minerais, suas técnicas de pesquisa e exploração. Também, é, claro, pede o retorno do dinheiro investido pelo casal no trabalho.

O cardeal Richelieu, a grande sombra dos reis franceses; ele mandou Jean e Martine para a prisão em 1642, de onde não mais retornariam

Desta vez, não funcionou. O cardeal Richelieu mandou prender Jean e Martine, sob o pretexto de que o casal praticava astrologia quiromancia e leitura de horóscopos. Jean acabou morrendo na terrível Bastilha em 1645. Martine e sua filha, aprisionadas na prisão de Vincennes, desapareceram sem deixar traços.

A RESTITUIÇÃO DE PLUTÃO

A Restituição de Plutão é um curso de mineração. Nele, Martine de bertereau dá uma longa lista de depósitos metais como prata, chumbo, ouro, ferro, cobre. Dá também uma lista de outras substâncias importantes, como pigmentos minerais, pedras de moinho, carvão, rochas ornamentais e pedras preciosas. Durante muito tempo, as informações contidas nos escritos de Martine foram muito valiosas na descoberta de bens minerais.

Cartas astrologicas para encontrar metais; Martine de Bertereau encontrou diversas minas com esta técnica.

Para Martine de Bertereau, existiam diversas regras que deveriam ser seguidas para se achar um deposito mineral. Cavar, para ela, era a menos importante. Mais do que só cavar a terra, era necessário observar as plantas, o gosto da água, os vapores emitidos pelas montanhas. E, também, o uso de instrumentos.

Entre estes instrumentos estavam as varas divinatórias para encontrar metais. Estas varas, sete no total, uma para cada tipo de planeta. Para a astrologia, cada planeta estava relacionado com um metal. Assim, o ouro estava relacionado ao sol, a prata a lua, marte ao mercúrio, e assim por diante.

AS CIÊNCIAS DA MINERAÇÃO

Entre as ciências relacionadas com os trabalhos mineiros, Martine relaciona a astrologia, a arquitetura, a geometria e a aritmética, a hidráulica, o direito, a medicina, a lapidaria (a atual petrografia), a botânica e a química. Contudo, para desespero dos que hoje bradam contra as Humanidades, Martine recomenda as Letras, o Direito e a Teologia entre os conhecimentos uteis para a boa prática da mineração.

Que ciência era essa que Martine e Jean praticavam? Certamente, a arte das minas. Neste tempo, conhecimentos que hoje desprezamos como inúteis, bobagens ou pseudociência eram os conhecimentos necessários. Causa mais espanto, talvez, a presença da alquimia e da astrologia.

Os métodos de pesquisa de minerais seguiam os preceitos da alquimia e da astrologia, alem da procura dos sinais da natureza. ilustração do De Re metellica (1556) de Georgius Agricola (1494 – 1555)

No entanto, para os mineiros da época, os espantos eram maiores. Martine trata também da presença de duendes nas minas, “pequenos seres vestidos como os trabalhadores” que podiam ser vistos nos subterrâneos. Entretanto, Padre Kircher, de quem já falamos aqui, confirmava a presença destes seres em seus livros. Essa era uma ciência ainda cheia de sobrenatural e de magia, tão típica do platonismo da Renascença.

Entretanto, essa estranha reunião de saberes nos faz pensar em como serão os trabalhos mineiros (se é que haverão minas) daqui a cem anos. Quais serão as ciências utilizadas? Quais serão as ciências descartadas? E quais as desprezadas? Fica aqui a dica para uma interessante conversa de bar…

UM CASAL AFINADO

Por outro lado, tudo nos leva a crer que Martine e Jean trabalhavam juntos, lado a lado. Esse é um espanto num mundo mineiro moderno que ainda acha que as mulheres “dão azar” nas galerias subterrâneas. E um bom exemplo a ser seguido.

A parceria era tal que cada um tinha seu papel. Martine, certamente, era a erudita do casal, a que escrevia e estudava. E que escrevia os livros. Jean era provavelmente o executivo, o que estava em campo. Entretanto, isso era admirável. Por um lado, o trabalho conjunto e igual de Jean e Martine, num mundo em que as acusações de bruxaria e feitiçaria eram comuns e naturais, causa-nos um espanto ainda maior. Acusações que lhes foram feitas e que lhes custaram a morte nas masmorras do ancien regime.

A VIDA PÓSTUMA DE MARTINE DE BERTEREAU

Segundo a historiadora Martina Kolb Ebert, a vida póstuma de Martine de Bertereau foi ainda mais agitada que sua atribulada existência terrena. Durante o Iluminismo, ela foi considerada meramente uma charlatã e aventureira. Por outro lado, durante a industrialização francesa no seculo XIX ela foi considerada uma heroína, uma economista visionaria. Da mesma forma, para os nacionalistas românticos, Martine de Bertereau era uma legítima heroína nacional.

Hoje, os trabalhos que se ocupam dela e de sua vida põe em relevo seu papel de heroína feminista, mulher cientista, “a primeira geóloga da França”. É o que vem a nossa mente quando lemos sobre ela. Impossível, para nossa moderna mentalidade, não pensar nisso. no entanto, precisamos saber mais sobre Martine de Bertereau, alem dos estereótipos e das lendas.

Numa época em que ciência e magia eram uma coisa só, Martine de Bertereau foi uma sábia notável . Também foi mãe de pelo menos três filhos. E, como companheira e colega de trabalho de Jean de Chastelet, foi incansável na busca pelo sucesso material do casal. A junção de amor, magia e mineração foi um traço inseparável dos dois.

Que estranho. E que notável.

PARA SABER MAIS:

Kölbl-Ebert, Martina. “How to find water: the state of the art in the early seventeenth century, deduced from writings of Martine de Bertereau (1632 and 1640).” Earth Sciences History 28, no. 2 (2009): 204-218.

Findlen, Paula. “Histoire des femmes de science en France. Du Moyen Age à la Révolution.” (2005): 518-520.

As glossopetras dão com a língua nos dentes

Olá! Nós somos as glossopetras!

um selfie de glossopetras, mostrando como algumas de nós são bem grandinhas…

Somos fósseis pequenos, de milímetros a decímetros de tamanho. Somos encontrados em abundância nas melhores camadas sedimentares próximas de você. No entanto, somos mais comuns em alguns lugares específicos do mar Mediterrâneo, de onde somos extraídas

em grande quantidade. Um dos lugares mais famosos de ocorrência de glossopetras é a Ilha de Malta.

O nome glossopetra é um nome greco-romano. Reparem: glossós, ou língua, é uma palavra grega. Língua em latim é língua mesmo. E petra é pedra em latim, como até as pedras sabem. Glossopetra, portanto, é um nome greco-romano, que significa Língua de Pedra. Porque parecíamos com pequenas línguas.

Nós somos conhecidas em praticamente todas as línguas e culturas do Velho Mundo.

AMULETOS PARA “SOLTAR” A LÍNGUA…

Para os romanos, nós, as línguas de pedra, éramos amuletos importantes. Segundo se acreditava, nós poderíamos fazer “desatar” a língua das pessoas. Poderíamos também fazer com que as pessoas confessassem os crimes os mais secretos. Da mesma forma, nos usavam também para tornar as pessoas mais subornáveis e colaborativas. Por outro lado, era tamanho nosso poder que alguns romanos mais desabusados usavam nós glossopetras para seduzir pessoas castas para os atos mais inconfessáveis!

No entanto, sábios com Plínio, o Velho, eram mais céticos. Segundo Plínio, os mágicos diziam que as glossopetras caiam dos céus durante os eclipses da Lua. Já imaginaram, uma chuva noturna de pequenas linguinhas de pedra? No entanto, segundo Plínio, isso parecia não ser verdade.  Assim como ele também não compartilhava a crença antiga que as glossopetras acalmavam os ventos.

Monddrache, o Dragão da Lua. Gravura antiga atribuídas pelo astrólogo, nigromante e alquimista Agripa de Netesheim

Além disso, algumas glossopetras maiores  (ver figura acima) eram também chamadas de línguas de dragão. Tinham cerca de dez centímetros de comprimento ou mais. Existia uma lenda, que vinha do cultura nórdica, que atribuía a diminuição da Lua em alguns momentos de seu ciclo à ação de um dragão, o Monddrache, o Dragão da Lua. Essas glossopetras maiores, quase da palma de uma mão humana,  eram chamados de Dentes do Dragão da Lua (Zähne der Monddrache).

SÃO PAULO E AS GLOSSOPETRAS
Selo comemorativo do naufrágio de São Paulo na ilha de Malta. Depois desse naufrágio, nós glossopetras passamos a símbolos do cristianismo…

Na ilha de Malta, onde somos abundantes, há a lenda de que São Paulo, ao naufragar na ilha, teria sido picado por uma víbora. O Santo não se fez de rogado, e atirou a serpente ao fogo. Como resultado, todos os dentes e olhos das cobras de Malta foram petrificados. Por isso, em alguns lugares, somos também chamadas de línguas de serpente. As serpentes que hoje existem na ilha de Malta não são venenosas, confirmando assim, empiricamente, a ação milagrosa do apostolo. Essa lenda também aparece na Irlanda, com São Patrício. Aqui nós já comentamos sobre Santa Hilda de Whithby e os amonites.

Há uma outra lenda, muito posterior, dizendo que São Paulo transformou a sua própria língua em pedra, com numerosas propriedades medicinais. Por outro lado, os cavaleiros Normandos, que conquistaram Malta em 1090 AD, logo se aproveitaram dessa lenda e logo vendiam para toda a Europa as famosas (e milagrosas!) línguas de São Paulo. Com muito lucro, diga-se.

UM PODEROSO ANTÍDOTO CONTRA QUASE TUDO
Natterbaum, ou “arvore das serpentes”, peça em prata sobredourada representando a genealogia de Cristo. Esta peça era usada como proteção para venenos. No centro em cima há uma enorme Língua de Dragão.

Existiram, também, diversas as aplicações medicinais das glossopetras. Durante a Idade Média, acreditava-se que nós, glossopetras, éramos poderosos antivenenos. Poderíamos detectar a presença de veneno mudando de cor ao sermos mergulhadas numa taça de vinho. Desta forma, éramos usadas como contraveneno de cobra, para acelerar o parto e como poderoso talismã na proteção contra bruxarias.

Durante a Renascença, o geografo holandês De Laet (1581-1649) enviou algumas glossopetras para serem usadas para males bucais. Entre os usos registrados estão a dor de dentes e para aliviar as dores da dentição em crianças.

Os usos das glossopetras como medicamento foi muito difundido. A “Terra de São Paulo” , como era conhecido o material contendo as glossopetras maltesas, era comercializada como remédio até fins do século XIX. Um vasto mercado, como diríamos hoje. No entanto, a ocorrência de falsificações levou muitos governos desde o século XVII a realizar verificações e autuações em materiais tidos como Terra de São Paulo.

Nós, glossopetras, poderíamos contar muitas mais histórias e lendas, meninxs.

DENTES DE TUBARÃO?

No entanto, temos que confessar uma coisa: somos, na realidade, dentes de tubarão. Sim, dentes de tubarão. Boa parte de nós glossopetras somos simplesmente dentes de tubarões lamniformes. Contudo, as maiores glossopetras são provenientes do gigantesco Charcharodon megalodon, uma espécie extinta de um tubarão gigante que viveu entre o Mioceno até o fim do Plioceno (para vocês humanos que não tem noção de tempo, significa um período entre 23,3 até 3,3 milhões de anos atrás).

Uma estimativa do tamanho provável do Charcharodon megalodon (cinza e vermelho) com o tubarão Baleia, o tubarão Branco e um ser humano;

Como foi que mudou a ideia de que nós éramos pedras singulares com poderes mágicos e medicinais e nos tornamos meramente dentes de grandes bestas pré-históricas? Esta discussão, por mais simples que pareça, está na base da moderna Geologia.

BRINCADEIRAS DA NATUREZA

vocês podem não acreditar, mas nem sempre os fósseis foram aceitos como hoje: restos de organismos preservados por algum processo. Durante o Renascimento, a utilização de alguns conceitos aristotélicos, como a petrificação, levou alguns  sábios a aceitar que os fosseis poderiam ser objetos gerados espontaneamente nas rochas. Seriam as “virtudes plasticas” defendidas, entre outros, pelo sabio veneziano Girolamo Fracastoro (1476-1553). Seriam meras “brincadeiras da natureza”.

Outros sábios, entretanto, achavam que os animais e plantas petrificados eram realmente restos de organismos. Entre estes estavam, por exemplo, o famoso medico modenesi Gabrielle Falllopio (1523-1562).  Mas quais organismos seriam esses? existiriam realmente ou eram seres já extintos? Isso levava a uma outra questão: se os seres eram extintos, era sinal que eram seres imperfeitos? Deus, por acaso, fazia coisas imperfeitas? Essa era a grande discussão das ciências naturais nestes período.

FABIO COLLONA E AS GLOSSOPETRAS
o sabio neapolitano Fabio Collona (1567-1640), autor de importante estudo sobre nós, glossopetras!

Nós, as glossopetras, estivemos ativas neste debate. Um dos trabalhos mais imortantes sobre nós foi realizado pelo naturalista napolitano Fabio Collona (1567 – 1640), da Academia dei Lincei (dos linces, animal que enxerga mais longe) e amigo de Galileu. Collona estabeleceu que eramos restos de organismos. Para isso, ele calcinou algumas de nós (ui!) e viu que éramos formadas por matéria orgânica. Por outro lado, a terra que nos envolvia não tinha a mesma origem. Logo, segundo Collona, as glossopetras eram restos orgânicos.

a semelhança com os dentes de tubarão também chamou a atenção de Collona. Assm, ele sugeriu que pudessemos representar restos de antigos tubarões, e não pedras magicas ou antivenenos. Mas era necessário mais algum debate para poder afirmar isso com segurança.

NICOLAU STENO E OS DENTES DE TUBARÃO

Foi Nicolau Steno quem estabeleceu a relação dos tubarões com as glossópetras. Para

tubarão glossopetras
Cabeça de tubarão estudada por Steno e as glossopetras

tanto, ele estudou a carcaça de um tubarão capturado ao longo da costa de Livorno em 1666 e confirmou a semelhança entre as glossopetras e os dentes dos tubarões. Para isso, Steno usou de suas habilidades como anatomista e fez uma comparação usando o método da anatomia forense. Assim, tim-tim por tim-tim, ele explicou as semelhanças entre as duas.  Desta forma, ficou bem claro, para bons e maus entendedores, que as glossopetras eram dentes de tubarão.

Contudo, a polêmica ainda durou mais alguns anos. Somente em meados do seculo XVIII é que os fósseis foram aceitos como restos de organismos e tomaram o sentido que tem hoje. Para tanto, nós, glossopetras, tivemos um papel fundamental.

COM A LÍNGUA NOS DENTES

Assim sendo, hoje nós não somos mais fósseis, e sim uma parte deles. Desta forma, não somos mais tão importantes e procuradas como no passado, empobrecendo talvez alguns mineradores. Contudo,  nós somo muito orgulhosas de nossa participação. De fato, nossa presença nestes debates serviu para que os fósseis fossem reconhecidos como hoje são. Mais que isso, houve uma mudança na maneira como as pessoas enxergavam as camadas de rocha.

Assim, o que era só brincadeira da natureza passou a significar também testemunhos da história terrestre. O grande livro da natureza podia afinal ser lido. A história da natureza, com o tempo, passou a ser maior que a história humana. Por um lado, a história natural pode ser lida em milhões e mesmo bilhões de anos. Por outro lado, outras preocupações vinculadas com esta historia natural passaram a ocupar o centro da vida das pessoas.

Entretanto, questões como evolução das espécies, mudanças climáticas, grandes extinções, etc só fazem sentido num tempo longo. E estão nas agendas das pessoas e dos governos de hoje. Contudo, nada disso seria possível sem entender que pequenas linguinhas encontradas nas rochas possam ser dentes de tubarões.

Nada mal, não?

PARA SABER MAIS:

Hsu, K.T., 2009. The path to Steno’s synthesis on the animal origin of glossopetraeThe Revolution in Geology from the Renaissance to the Enlightenment. Geological Society of America, Boulder, CO, Memoirs203, pp.93-106.

Rosenberg, G.D. ed., 2009. The Revolution in Geology from the Renaissance to the Enlightenment (Vol. 203). Geological Society of America.

O sólido dentro do sólido: Nicolau Steno, o cientista que virou santo

Nicolau Steno
Retrato de Nicolau Steno, pintado em Florença

Nicolau Steno foi um dos homenageados no Congresso Internacional de Geologia de 2004, realizado em Firenze. Lá, os cientistas inauguraram uma placa, onde faziam menção às suas imorredouras contribuições para a Mineralogia, a Paleontologia e a Estratigrafia. Boa parte delas havia sido realizada no tempo que que Nicolau Steno morou ali, na Toscana.

No entanto, alguns anos antes, em 1988, o Papa João Paulo II o proclamou como “bem-aventurado Nicolau Steno”. Sabemos que, quando morreu, Nicolau Steno era um bispo católico, que trabalhava no norte da Alemanha. Seus últimos anos lhe deram aura de Santo. E quase santo ele é. Hoje ele é um Beato e a festa litúrgica em seu nome ocorre no dia de sua morte, em 5 de dezembro.

Quem era, afinal, Nicolau Steno? O cientista ou o beato?

NIELS STENSEN, O SOBREVIVENTE

Nicolau Steno é uma latinização de seu nome dinamarquês, Niels Stensen. O pequeno Niels nasceu e foi batizado em Copenhagen em 1638. Era o filho do ourives que prestava serviços para o rei Cristiano IV da Dinamarca. O pequeno Niels, que era muito doente a ponto de não poder brincar com as outras crianças, cresceu numa família fervorosamente luterana. Na falta dos brinquedos, brincava com os objetos de ourives de seu pai.

O pequeno Niels, no entanto, era mais forte do que se supunha. Na escola que frequentou, mais de duzentas crianças morreram entre 1654-1655 por causa de uma peste. Contudo, Niels Stensen sobreviveu. E tomou interesse por estudar os corpos humanos. Seu interesse era a Anatomia.

A Anatomia era uma febre (!) na época. Aulas de Anatomia eram disputadas ferozmente pelos acadêmicos. Tudo fervilhava de curiosidade de conhecer melhor o corpo humano.  Aos 19 anos, Niels Stensen entrou para a universidade de Copenhagen, para estudar medicina. Em seus estudos acadêmicos, revelou-se um promissor anatomista. E Copenhagen começou a ficar pequena para seu talento.

NICOLAU STENO, ANATOMISTA

A partir daí, Niels Stensen passou a viajar. E nunca mais parou. Inicialmente, esteve em várias cidades da Europa, estudando anatomia. Em Amsterdam estudou com Gerard Blasius, que estava estudando o sistema linfático. Da mesma forma, em Amsterdam, Stensen também conheceu o filosofo e polidor de lentes Baruch de Spinoza. O que será que eles devem ter conversado?

O jovem estudante Niels Stensen era apaixonado pela filosofia de René Descartes. No entanto, mais tarde, ele renegou a teoria cartesiana. Muito cedo, Steno percebeu algumas contradições na obra do mestre. Descartes, por exemplo, afirmou que a glândula pineal era a sede da alma humana. Steno, com base em suas observações, mostrou que Descartes estava errado.

Steno descobriu, entre outras coisas, que existe um duto que leva saliva até a boca, os dutos parotídeos ou dutos de steno. Por outro lado, Steno descobriu também que o coração era um músculo. E que os cálculos eram pedras que se formam por acúmulo nos órgãos. Descobertas notáveis, por certo.

O CARTESIANO ANTI-DESCARTES

Um a um, Steno acabou por desmentir diversos postulados anatômicos de Descartes. Com o tempo, tornou-se violentamente anti-cartesiano, negando qualquer relação de suas descobertas com o pensamento do filosofo francês. Não obstante, com o perdão do trocadilho, pode-se dizer que Steno não descartou Descartes.

Efetivamente, ao apreciar a obra de Steno, percebe-se o quão cartesiano ele era.  Quando se vê o mundo de idéias construído por Steno, o que se vê é um universo mecanicista, tipicamente cartesiano. Por outro lado, neste universo stenoniano,  a matéria sólida e particulada se movimentava segundo leis físicas determinadas, como um grande mecanismo.  Logo, tudo se movia no universo de Steno de acordo com a filosofia de Descartes.

A “REPÚBLICA DAS LETRAS”

Em suas viagens Steno acabou por conhecer o seu conterrâneo Ole Borch, importante anatomista da época e um sábio relacionado com as Academias de Ciência que então surgiam. Esse movimento de acadêmicos de vários países em constante comunicação formaram o que se chamou de “República das Letras“.  Era o embrião do moderno sistema de academias e periódicos científicos que se formava. Não por acaso, muitos periódicos modernos ainda ostentam em seu nome a palavra “Letter“. Pois não eram mais que isso: cartas enviadas para as diferentes associações cientificas, que eram lidas nas sessões ordinárias destas academias e discutidas por seus membros.

Todavia, uma vez que Ole Borch, como membro destacado da Republica das Letras,  tinha muitas ligações com a Royal Society de Londres. Foi através de Borch que Steno teve contato com a teoria atomística de Robert Boyle. Esta foi outra das grandes inspirações de Steno. Por meio da leitura de Boyle e sua obra, Steno começa a se interessar por uma Ciência que ainda não existia, a Geologia. Foi neste ponto de sua carreira que ele foi convidado por Ferdinando II, Grão-Duque da Toscana, a ser o anatomista da corte. Em Firenze, sua vida iria mudar. De novo.

Lá, Nicolau Steno vai desfrutar do ambiente da Corte e, principalmente, dos sábios reunidos na “Academia Del Cimento“. Essa academia, fundada pelos Médici, reunia alguns dos mais importantes pensadores italianos da época. Steno torna-se amigo de Marcello Malpigui, Vicenzo Viviani, Francesco Redi, entre outros.

 PEDRAS EM FORMA DE LÍNGUA

Em 1666, um tubarão foi pescado na costa de Livorno. A cabeça deste tubarão foi enviada à Firenze para que Steno pudesse disseca-lo. Steno notou que os dentes do tubarão eram muito parecidos com as glossopetras. Estas glossopetras, as “Línguas de pedra”, eram fósseis muito comuns no mediterrâneo. Eram conhecidas desde os tempos romanos. Havia muito tempo que Outros sábios haviam reivindicado que as glossopetras eram dentes de tubarão. Entre eles, destaca-se Fábio Colonna. no entanto, a pericia anatômica de steno foi muito importante para que estes objetos fossem reconhecidos como restos de animais, ou no sentido moderno, fósseis.

tubarão glossopetras
Cabeça de tubarão estudada por Steno e as glossopetras

Em seguida, Nicolau Steno, de anatomista, passou a naturalista. Fez diversas viagens pela Toscana, onde juntou material para escrever sua grande obra. Aparentemente,  essa obra seria muito grande. Tão grande que Steno começou a escrever o principio, ou o “pródromo”. E assim surgiu uma das grandes obras da Ciência moderna.

PRÓDROMO DE UM SOLIDO CONTIDO EM OUTRO SOLIDO

No Pródromo, Steno procura explicar que haviam varias formas distintas de sólidos contidos nas rochas. Alguns destes sólidos eram fragmentos que eram depositados junto com as rochas, como os fósseis. Um sólido dentro de um solido. Assim ele justificava a existência de diversos materiais parecidos com organismos vivos encontrados nas rochas. como , por exemplo, as glossópetras.

Por outro lado , haviam substancias que cresciam no interior das rochas, os cristais. Steno propôs que os cristais de uma mesma especie teriam o mesmo ângulo entre as faces. E que os cristais poderiam crescer dentro das rochas. Um sólido, um outro sólido, dentro de outro solido. Com esta proposição, a moderna mineralogia começa a existir.

Além disso, Steno também propôs uma evolução geológica para as rochas da região da Toscana. Segundo se pode ler no pródromo, as rochas sofriam erosões internas, com intensos abatimentos de blocos. estes blocos abatidos eram ocupados por outras rochas, mais novas e assim por diante. Com isso, ele explicou diversas sucessões estratigráficas, alem de enunciar o principio de superposição de camadas que hoje leva o seu nome.

Steno
Assim Steno explicou os ciclos sedimentares que ele observou nos arredores de Firenze
PADRE STENO ? BISPO STENO?

No entanto, uma outra mudança se operava com Nicolau Steno. Influenciado por seus amigos da academia Del Cimento, Steno acabou por se converter ao catolicismo em 1671. Mais do que isso: praticamente abandonou seus estudos de Anatomia e Geologia e passou a dedicar-se aos estudos teológicos. Assim, em 1675 ordenou-se padre católico e em 1677, bispo.

Nicolau Steno, vestido como Bispo Católico

Movido pela religiosidade, no entanto, Steno devotou cada vez mais tempo para sua fé. Sua energia e seu entusiasmo o levaram a ser evangelizador católico no norte da Alemanha, uma terra ferrenhamente protestante. E foi isso que Steno foi em seus últimos anos de vida. Desta forma, andando de cidade em cidade, tentando converter as pessoas ao catolicismo romano, Steno empregou todas as suas forças. Adquiriu fama de santo.

UM MÁRTIR CATÓLICO

Steno trabalhou inicialmente em Hanover, onde conheceu Leibniz, de quem se tornou amigo. Depois, foi para a cidade de Schwerin. Lá, em meio hostil, Steno trabalhou incansavelmente. Contudo, sua saúde começou a fraquejar. Muito doente, acamado, Steno morreu em 5 de dezembro de 1686 cercado por seus paroquianos.

Sua fama de evangelizador foi intensa. Desta forma, o caráter de sua conversão do luteranismo para o catolicismo de um sábio destes porte o transformou num herói católico. por conta de um processo de beatificação que durou mais de 50 anos recolhendo provas, Steno foi beatificado pelo para João Paulo II em 1988.

BEATO  OU CIENTISTA?

A vida de Nicolau Steno, entretanto, nos deu mostras do intenso ambiente intelectual do

seculo XVII. Como filosofo natural (a palavra cientista ainda não existia), Steno fez algumas afirmações interessantes e duradouras. Contudo, haviam ainda um grande caminho pela frente. Nada do que disse ou escreveu mudou instantaneamente a historia da Ciência ou da humanidade. Por um lado, muitos filósofos naturais continuaram a obra de Steno, e foram elaborando as bases da nova Ciência que só foi surgir, afinal, no seculo XIX, a Geologia.

Por outro lado, Steno e sua conversão, sua vida de Beato, foram exemplos para muitas pessoas que tinham preocupações religiosas. Não foi à toa que seu processo de beatificação foi levado a efeito no século XX, um século tão esmagadoramente dominado pela Ciência. Como que para provar para nós todos que mesmo um grande cientista pode ter preocupações de natureza religiosa.

Sem dúvida, o método cartesiano do experimento e da dúvida foi o grande marco na vida de Steno. A dúvida fez com que ele fosse cada vez mais rigoroso em suas observações e seus experimentos, do lado cientifico. Entretanto, do lado religioso, a dúvida fez com ele ele perdesse sua fé e se iniciasse numa outra, numa fé nova. E isso não é trivial.

Santo ou cientista, contraditório e paradoxal, Nicolau Steno foi um baita ser humano.

para saber mais:

Yamada, T., 2009. Hooke–Steno relations reconsidered: Reassessing the roles of  Ole Borch and Robert Boyle. The revolution in geology from the renaissance to the enlightenment203, p.107.

Vai, G.B., 2009. The Scientific Revolution and Nicholas Steno’s twofold conversion. The Revolution in Geology from the Renaissance to the Enlightenment203, p.187.

Coleções de Fósseis de A a Z (de Aldrovandi à Zabini)

Quem nunca trouxe para casa uma pedra bonita no bolso que atire a primeira pedra.

Museu do Palazzo Poggi, Bolonha, mostrando a coleção de História Natural montada por Ulisse Aldrovandi

O hábito de “catar pedrinhas” é tão antigo quanto a humanidade. Nossos ancestrais adoravam carregar pedras bonitas que encontravam pelos motivos os mais diversos: por que era bonita, por que tinha uma forma familiar, por que tinha uma forma estranha…o fato é que as pedras nos atraem.

Entretanto, se as “pedrinhas” tiverem um formato conhecido, parecendo um animal ou planta, melhor ainda. Desta forma, ficamos ainda mas fascinados por elas. Ficamos olhando, sentindo na mão suas texturas, seus formatos, vendo seus brilhos conforme as olhamos contra a luz. Por vezes, levamos a rocha ou o mineral ou o fóssil para o quarto, colocamos na prateleira. Ao acordar, olhamos novamente fascinados. No entanto, isso não vai ficar por aí.

Uma nova coleção tem início.

As coleções de fósseis

Com o tempo, o hábito de colecionar estes objetos fascinantes foi se tornando cada vez mais sofisticado. Por outro lado, as coleções foram ficando cada vez maiores e mais volumosas. Não cabiam mais em simples gavetas e prateleiras. Ao final do século XVI o sábio italiano Ulisse Aldrovandi (1522-1605) foi o curador de uma destas grandes coleções, que então envolviam espécies animais, vegetais e minerais.

o Filosofo Natural Ulisse Aldrovandi (1522-1605), o criador da palavra Geologia e um dos maiores Sábios de seu tempo.

Em síntese, Aldrovandi tinha uma grande coleção de Historia Natural. Tinha animais, vegetais e “o reino mineral”, envolvendo o que hoje chamamos de rochas, minerais e fósseis. As gavetas nas quais guardava os espécimes não eram como hoje, separados por tipos de rochas, por minerais e por fósseis. Era tudo misturado, mesmo porque não se tinham claros os processos pelos quais uma rocha se formava.

Naquele tempo, tais coleções eram chamadas de “coleções de fósseis”. O conceito de fóssil durante o Renascimento era muito diferente do conceito moderno, conforme já tratamos aqui. A palavra fóssil vem do latim “fodere”, que significa escavar. Fóssil era tudo que pudéssemos escavar, retirar da terra. Tudo que era retirado da terra era fóssil. Solo, pedra, mineral, rocha, fóssil (no sentido moderno).

O Museum Mettalicum

Assim, Aldrovandi publicou um catálogo de sua exposição de fósseis. O catalogo era tão imenso, o “Museum Metallicum” (folheie suas páginas aqui), que só foi terminado muitos anos depois da morte de Aldrovandi, em 1648, por seu discípulo Batholomeu Ambrosinus. Nele, Aldrovandi e Ambrosinus mandaram fazer xilogravuras detalhadas, mostrando as espécies de sua coleção.

Frontispício do grande catalogo Museum Metalicum, elaborado por Ulisse Aldrovandi e seu discípulo Ambrosinus.

Em primeiro lugar, através de seu estudo, podemos ter uma ideia da concepção de mundo de Aldrovandi. Por outro lado, os critérios utilizados na sua coleção baseavam-se, como os de hoje, na visão de mundo do colecionador. Para nós, alguns destes critérios podem parecer estranhos ou mesmo não-científicos. No entanto, sabemos que Aldrovandi, se não era um moderno cientista – essa palavra só foi inventada dois séculos depois, no século XIX – era um sábio, um Filósofo Natural dos mais importantes.

Aldrovandi e a Geologia

Foi Aldrovandi, inclusive, quem inventou a palavra “geologia”, num livro que publicou em 1603. Em sua definição, geologia seria o estudo de objetos aflorantes e enterrados– os fósseis. O uso mais recente da palavra geologia, próximo do que utilizamos hoje, foi utilizada a partir do final do seculo XVIII.

Em síntese, o conceito de rochas e minerais mudou. Minerais são substâncias orgânicas ou inorgânicas naturais, com composição química definida e propriedades físicas que refletem a sua estrutura interna. Desta forma, um cristal de halita (sal gema ou sal de cozinha) tem as mesmas propriedades que as moléculas de NaCl. Por outro lado, rochas são definidas como agregados de minerais.

Cristais de Halita, ou sal gema, ou sal de cozinha. Os cristais refletem a estruturação das moléculas de NaCl presentes em sua composição.

Fósseis, no sentido moderno, são restos ou marcas  de organismos preservados por inúmeros processos de litificação. Alguns processos foram discutidos aqui no blog, tanto pela professora Frésia quanto pela professora Carolina. para uma discussão mais abrangente veja aqui.

Dinossauros no IG?

Nesta semana abriu uma exposição sobre dinossauros no Instituto de Geociências da Unicamp. Chama-se “Dinossauros (?) no IG” e vai até setembro no saguão principal de nosso novo prédio, na rua Carlos Gomes, 250, no campus de Barão Geraldo em Campinas.

A exposição tem a Curadoria da professora Carolina Zabini, nossa companheira de blog. Carolina, que é bióloga de formação e paleontóloga de carreira e coração e blogueira nas horas vagas(!), montou uma exposição muito interessante, que discute vários aspectos destes ainda estranhos monstros.

Detalhe da Exposição Dinossauros no IG, montada por Carolina Zabini

Desta forma, com uma linguagem ágil e muitas caricaturas engraçadas, feitas de maneira competente pelo Claudinei Fernandes de Oliveira, ela aborda diversos aspectos dos dinossauros: seus hábitos, seus diferentes tipos, as suas linhagens evolutivas. Tudo isso é contado pelas caricaturas e por miniaturas muito realistas e bem-feitas, construídas pelo prof. Luiz Anelli, do IG-USP.

Os Dinossauros no espelho humano

Por fim, uma das partes mais interessantes, ao menos para mim, é a parte em que são apresentadas miniaturas de dinossauros mais antigas (!), feitas nos anos 60. Elas mostram seres reptilianos grotescos e bizarros, como quando eu era menino aprendi que eram os grandes dinossauros . Contudo, de lá para cá, aprendemos também que eles podiam ser coloridos, e que muitos deles usavam penas!

Sim, nossa concepção de dinossauros muda conforme nossa visão deles, que muda com os avanços da ciência. Da mesma forma,  muda também com nossa visão de nós mesmos. Nos inícios da paleontologia, no século XIX, os dinossauros eram representados como grandes e ferozes bestas. De lá até o “Baby” de Família Dinossauro, muita coisa mudou. Mudaram os dinossauros e mudamos nós.

Um monstruoso Pteranodon em réplica dos anos 60; a foto, também monstruosa, é deste blogueiro…

Desta forma, vimos que as coleções de fosseis mudaram muito, de A à Z. De Aldrovandi a Zabini. No início, eram meros catálogos, separando os espécimes segundo critérios os mais diversos. Hoje, as exposições tem conceito, linguagem e são cuidadosamente construídas para públicos específicos.

No entanto, uma coisa não mudou: nosso estranho e esquisito hábito de colecionar objetos do mundo natural.

PARA SABER MAIS:

Duroselle-Melish, C., & Lines, D. A. (2015). The library of Ulisse Aldrovandi († 1605): acquiring and organizing books in sixteenth-century Bologna. The Library16(2), 133-161.

Ogilvie, B. W. (2008). The science of describing: Natural history in Renaissance Europe. University of Chicago Press.

Padre Kircher e as Brincadeiras da Natureza

Padre Athanasius Kircher (1602-1680)

Fazia um pouco de frio em Roma no dia em que padre Kircher morreu, aos 78 anos de idade, em 27 de novembro de 1680. O sol praticamente não apareceu, e um vento frio fazia a sensação térmica piorar. No entanto, a vida seguia normal. A missa foi cantada em todas as igrejas da Cidade Eterna no horário habitual. O comércio abriu normalmente. Enquanto isso, as pessoas circularam pela rua para seus negócios, compras e amores.

Fazia já alguns anos que padre Athanasius Kircher andava doente. Surdo, sem enxergar direito e com lapsos grandes de memória, ele raramente saia de sua cela. No entanto, ainda produzia: em carta daquele mesmo mês de novembro, provavelmente ditada por ele, padre Kircher se desculpava com seu interlocutor por causa de suas “mãos trêmulas”.

Com sua morte, desapareceu de cena uma das personalidades da cultura mais interessantes do século XVII. Isso não é pouco, num século que começa com Giordano Bruno, Galileu Galilei, René Descartes, Baruch Spinoza e vai até Isaac Newton, entre tantos outros.

SABIA TUDO E NÃO ENTENDEU NADA?

Padre Kircher comandou, a partir da Biblioteca do Vaticano, que ele dirigiu por mais de cinquenta anos, um dos maiores projetos culturais de que se tem notícia. Seus mais de quarenta livros e seus inventos abrangem praticamente todas as esferas do conhecimento, desde a Linguística até a Geologia, a Física e a Química. Ele foi, segundo a historiadora Paula Findlein, sua biógrafa, “o último homem que sabia de tudo” (deixe Jeff Bezos mais rico aqui).

Padre Kircher recebendo visitantes na Biblioteca Vaticana

Claro que tal ambição tem seu preço. Conhecer tudo significa conhecer um pouco de tudo. Apesar de ser um erudito no mais amplo sentido da palavra, Kircher cometia gafes e frequentemente fazia falsas interpretações. Quando leu o livro que padre Kircher escreveu tentando decifrar os hieróglifos egípcios, o também polímata Gotfried Leibniz (1646-1716) escreveu: “ele [Kircher] não entendeu nada!”.

Da mesma forma, o erudito inglês Johann Burkhardt Mencke (1674-1732) escreveu “De Charlataneria eruditorum” [A charlatanice dos eruditos], no qual faz uma imagem devastadora de Kircher. Sua caricatura de um charlatão escrevendo coisas estúpidas e sem sentido foi a imagem que ficou do Jesuíta para a posteridade.

No entanto, passado tanto tempo, cabe perguntar: quem foi padre Kircher? Qual o seu alcance e seu significado? Quais seus pressupostos e qual sua visão de mundo? Em anos recentes, apareceram uma série de livros e artigos revisitando e colocando sua vida e sua obra em perspectiva histórica. Um novo Kircher surgiu.

CONHECIMENTO SEM LIMITES

Athanasius Kircher nasceu em Geisa, na Alemanha, em 1602. Era o ultimo de nove filhos de uma família burguesa escolarizada. Segundo sua autobiografia, o jovem Athanasius era um “estúpido propenso a acidentes”. Fez seus estudos no Colégio jesuíta de Paderborn, de onde quase foi expulso por sua saúde fraca.  Quando finalmente se formou, em 1627, foi admitido na pretigiosa Companhia de Jesus. alem disso, foi ser professor de grego e siríaco em Heilingenstadt, onde seu pai também havia lecionado.

Fascinado pelo Oriente, Kircher pediu para ser enviado como missionário para a China, mas foi recusado pela sua Ordem. Logo a seguir, era ele teria que se mudar: a Alemanha estava sofrendo com a Guerra dos Trinta Anos, entre protestantes e católicos. O católico e jesuíta Kircher se refugiou em Avignon na França em 1632, fugindo das tropas protestantes do Rei Gustavo Adolfo da Suécia.

De lá, Kircher foi para Roma, onde ficou até o fim de sua vida. Na Cidade Eterna, construiu uma reputação de homem com muitos segredos e possuidor de textos secretos. Muitos não acreditavam nele, mas o padre Kircher parecia não se importar com isso. Passou a estudar, escrever e fabricar instrumentos os mais diversos.

Trabalhando na Biblioteca do Vaticano, padre Kircher foi logo conquistando seu espaço. Seus livros começaram a ficar famosos, e sua reputação ia aumentando. Padre Kircher escreveu sobre os hieróglifos egípcios, sobre o magnetismo, sobre ótica, sobre os subterrâneos terrestres, sobre a história de Roma. Sobre quase tudo.

É claro que muitos perceberam seus limites. Nicolas-Claude Fabri de Peiresc (1580-1637), filosofo e botânico francês e um dos eruditos mais influentes da época, logo entendeu que os talentos de Kircher eram limitados. No entanto, percebeu seu entusiasmo e energia e apoiou várias das iniciativas do jovem Jesuíta.

KIRCHER DESCE AO INTERIOR DA TERRA

Um dos livros mais famosos de Kircher foi o Mundus Subterraneus, de 1665. Nele, padre Kircher expõe sua visão de mundo, fortemente marcada pelo Neoplatonismo e pelo Hermetismo. Para ele,  Terra era uma só, um imenso organismo vivo, governada pelos elementos fogo e água.

todos os vulcões do mundo interconectados na visão de Padre Kircher no Mundus subterraneus (1665)

O fogo é representando pelo sol, pelo enxofre e por Hermes Trismegisto (o três vezes grande). É o fogo que vemos nos vulcões que Kircher representou como sendo um todo interconectado.  Para entender os vulcões, Kircher desceu á cratera do Vesúvio logo após uma erupção em 1638. Também realizou viagens de estudo para Creta, Malta e Sicília,

 

AS MONTANHAS DA LUA

A água, por sua vez, é representada pelos oceanos, rios e fontes, e também pela Lua. Estudando a origem dos grandes rios do planeta, Kircher conclui que estes estavam interconectados com as grandes cadeias de montanhas. O Nilo, o Danúbio, o Ganges e o Amazonas seriam formados por grandes lagos subterrâneos, localizados justamente nas grandes cadeias de montanhas. O Nilo nasceria no coração da Africa nas “Montanhas da Lua“. As tais montanhas não existiam, mas é uma prova de que Kircher sabia se aproveitar de relatos de viajantes e construir o seu próprio.  no seculo XIX não poucos viajantes europeus percorreram as nascentes do Nilo atras destas míticas montanhas. Para kircher, as fontes eram a conexão do interior com o exterior da Terra pela agua. Para ele, a união do sol masculino com a lua feminina realizada na terra dá ao planeta seu caráter “neutro”.

As nascentes do Amazonas em uma caverna subterrânea sob os Andes

Esta visão “holística” do planeta é uma das características da visão neoplatônica de Kircher. O resultado é esta aparente confusão barroca, que une o microcosmo e o macrocosmo, como se um fosse a extensão do outro. Para tanto, Kircher usa da metáfora, da alegoria e do simbolismo para mostrar os sinais da glória de Deus na natureza.

AS BRINCADEIRAS DA NATUREZA

A paleontologia de Kircher é uma das mais interessantes facetas de sua obra. Em seus luvros, contudo, Kircher distingue claramente os fósseis que “são produtos de petrificação de animais e conchas” de outros que são símbolos e alegorias. No primeiro time, estão as coquinas representadas no Mundus Subterraneus (figura abaixo). No outro, as pedras que reproduzem a face de uma garça, uma coruja, ou Nossa Senhora com o menino Jesus. Para Kircher, tais representação não tinham nenhuma causalidade. Eram somente “lusus naturae”, ou seja, brincadeiras da natureza.

As coquinas de Padre Kircher: prova de origem inorgânica dos fosseis

Entretanto, uma leitura apressada da obra de Kircher sugere para muitos somente um lunático (e ainda por cima Jesuíta!) que enxerga figuras absurdas impressas nas rochas. Da mesma forma outros pensavam no padre Jesuíta como um fanático reacionário que é contra a “visão correta” dos fósseis como restos de animais tal como conhecemos hoje. Entretanto, nenhuma destas visões enxerga Kircher como ele deve ter sido.

Kircher sabia que haviam fósseis formados por restos de animais. Durante suas viagens à Sicília, ele encontrou e representou no Mundus Subterraneus animais com aparência moderna achados nas rochas.

As outras indicações de “pedras figuradas” representam, para Kircher, uma interconexão entre micro e macrocosmo. Desta forma, dentro de sua visão de mundo, estas pedras eram as  provas da sabedoria de Deus. Para ele, a discussão sobre a origem organica ou inorgânica dos fosseis e das rochas que as continham não estava posta. A sua “pira” era outra.

as pedras “figuradas”, com significados simbólicos: garças, pombas, corujas e outras figuras
FUJA DA INQUISIÇÃO, PADRE KIRCHER!

Entretanto, a visão de mundo de Padre Kircher era posta constantemente em cheque pelos censores da Companhia de Jesus. Não era pra menos. Por causa de suas ideias neoplatônicas (e por sua defesa do Sistema Copernicano) Giordano Bruno havia morrido na fogueira em 1600, dois anos antes de Kircher nascer. Quando o jovem Kircher chegou à Itália, em 1632, o processo contra Galileu ainda corria, tendo grande publicidade.

Um padre que em seus livros citava Hermes Trismegisto, fazia experimentos alquímicos e construía instrumentos estranhos deve ter chamado atenção dos censores, como realmente chamou. Contudo,  Kircher soube contornar e aparar as arestas entre suas ideias do mundo natural com as demandas da inquisição. Não deve ter sido fácil.

A VIDA QUE SEGUE

Quando padre Kircher morreu, o dia estava frio e cinzento em Roma, mas não por causa dele. Enquanto isso, durante os mais de cinquenta anos que ele permaneceu ali na frente da Biblioteca do Vaticano, o mundo havia mudado muito. Agora, graças a uma notável rede de sábios e eruditos, a ciência moderna estava em franca expansão.

Neste período, o surgimento de novas sociedades cientificas, os primeiros journals, as correspondências de filósofos naturais por toda a Europa (e mesmo na América) haviam mudado o ponto da discussão.

Antes de tudo, o mundo quando Padre Kircher morreu era mais racionalista e mecanicista, baseado mais nas ideias de Descartes e Newton, entre tantos outros. Para isso, a nova ciência que surgia prescindiria de ideia de um Deus ou de qualquer explicação metafisica para fazer a natureza funcionar.  com isso, não havia mais espaço para o sobrenatural, para o maravilhoso e para o espanto. Sobretudo, não havia mais espaço para o padre Kircher.

Fazia frio e ventava no dia em que padre Kircher morreu, mas não por causa de alguma vontade divina. Fazia frio e chovia por causa das correntes de ar atmosférico sobre o Mediterrâneo. Enquanto isso, os pássaros no outono migravam para o sul. As placas  tectônicas seguiam se movimentando, podendo provocar terremotos ou erupções vulcânicas. As fontes seguiriam jorrando água.

No dia seguinte, uma missa foi rezada pela alma de um padre velhinho que morrera naquela noite fria.

SUGESTOES DE LEITURA

Findlen, P. (Ed.). (2004). Athanasius Kircher: the last man who knew everything. Routledge.

Gould, S. J. (2004). Father Athanasius on the isthmus of a middle state. Athanasius Kircher: The last man who knew everything, 201-237.

A Morte no Gelo

Estação polar moderna, similar às estações onde Alfred Wegener viveu e onde finalmente morreu

A brancura do ambiente era total. Alguns pontos escuros na paisagem eram a exceção. Trenós mecanizados e também os puxados com cachorros cortando o gelo eram pontos atravessando a meseta central da Groenlândia.

Dois riscos pretos bem pequenos apareceram ao fundo no horizonte. Ao chegar mais perto, os homens dos trenós viram que eram dois esquis num montículo de neve. Ao escavar o montículo, surgiu o cadáver que eles tanto procuravam e não queriam encontrar. As buscas acabaram. Alfred Wegener, o chefe daquela expedição e um dos maiores cientistas do século, estava oficialmente morto.

Alfred Lothar Wegener nascera em 1° de novembro de 1880, em Berlim. Era filho mais novo de Ana Schwarz e do pastor Richard Wegener, teólogo e professor de línguas clássicas. Pouco se sabe da infância e juventude de Wegener.  O que se sabe é que, longe da vida pacata e prestigiosa de espiritualidade e leitura de seu pai, o jovem Alfred optou pela aventura e pelas atividades ao ar livre.

Estudou Física, tendo se graduado em 1905. Após sua graduação, ele começou a trabalhar com Meteorologia, principalmente com a utilização de balões atmosféricos. Neste tempo interessou-se pela pesquisa no Ártico.

Alfred Wegener casou-se em 1913 com Else Koppen (1892-1992), filha do grande climatologista russo-alemão Wladimir Koppen (1846 – 1940). Após seu casamento, Wegener tornou-se professor na Universidade de Marburg e dedicou-se às aulas, à pesquisa e à aventura polar. Não necessariamente nesta ordem.

NO MEIO DO GELO

Em 1° de novembro de 1930, dia de seu aniversário de 50 anos, Alfred Wegener havia partido em um trenó puxado por cães, juntamente com seu companheiro Rasmus Villumsen. Seu destino era a base de Eismitte (Meio-do-gelo, em alemão) para levar ajuda

Wegener e seu companheiro Villumsen, posando para a viagem da qual não retornariam

para os dois homens que estavam lá fazendo pesquisas. As condições do tempo estavam muito ruins e não havia comunicação entre as bases por rádio.

Somente na primavera do ano seguinte uma equipe conseguiu achar o corpo de Wegener no meio do gelo. Era 8 de maio de 1931. Provavelmente Wegener morreu no caminho e Villumsen enterrou o companheiro e prosseguiu a viagem. Villumsen, como era de hábito nestas circunstancias, estava levando os diários de viagem de Alfred Wegener, para salvá-los. No entanto, Villumsen jamais chegou a Einsmitte, e seu corpo jamais foi encontrado.

O EMPINADOR DE PIPAS

Aquela era a quarta expedição de Wegener à Groenlândia. A primeira havia sido em 1906-1908, sob a chefia do Dinamarquês Ludvig Mylius-Erichsen (1872–1907). Neste tempo Wegener fez diversas pesquisas meteorológicas. Boa parte delas era feita soltando balões atmosféricos e pipas. Com isso, varias informações eram obtidas das partes mais altas da atmosfera.

A segunda expedição que Wegener participou foi a liderada por Johann Peter Koch (1870–1928). O objetivo desta expedição eram pesquisas glaciológicas e meteorológicas. Koch e Wegener cruzaram a calota da Groenlândia de Leste a Oeste, num treno puxado por cavalos e pôneis islandeses. Extremamente fatigados, percorrendo um total de 1.200 quilômetros de gelo, eles chegaram finalmente ao destino.

Com a guerra em 1914, Wegener foi convocado para o front, tendo sido ferido duas vezes. Durante sua convalescencia, aproveitou para publicar alguns de seus trabalhos mais importantes sobre Meteorologia.

A EXPEDIÇÃO WEGENER

Alfred Wegener só conseguiu retornar a Groenlândia em 1929, depois que Koch já tinha morrido. Veio para uma expedição de reconhecimento e organização da expedição seguinte, que ele mesmo lideraria. A expedição de 1930-31 foi uma das maiores expedições enviadas para o Ártico até então. Contava com forte apoio do governo alemão e, mesmo num

A expedição no Ártico: os trenós, os pôneis islandeses e os cães. E, claro, também os homens.

ambiente de forte crise econômica e política, teve um bom financiamento.

Desta vez, além dos trens com cachorros e dos pôneis islandeses, Wegener contaria ainda com trenos mecanizados. Uma grande infraestrutura foi armada em diversos locais. Uma das grandes descobertas da expedição de Wegener foi a espessura da calota de gelo da Groenlândia. Através de experimentos de sísmica terrestre, foi possível calcular uma espessura de até 1800 m de gelo em alguns locais.

Existe um filme, editado em 1936, que mostra momentos importantes da expedição Wegener. Ali estão representando a chegada, a montagem dos equipamentos, como os balões meteorológicos. Também estão filmadas as explosões de dinamite nas pesquisas de sísmica terrestre. Mas impressionante é que o filme mostra até mesmo a partida de Wegener e Villumsen para a última viagem de suas vidas.

ALFRED WEGENER E A DERIVA CONTINENTAL

Apesar de ser um bom meteorologista, o nome de Alfred Wegener é mais conhecido, hoje em dia, pelas suas contribuições para a teoria da Deriva continental. Wegener começou a se interessar pelo assunto em 1908, quando começou a ler sobre os trabalhos que correlacionavam a geologia e a paleontologia de diversas partes do globo. Em meio as suas viagens a Groenlândia, ele ainda apresentou um breve resumo de sua teoria em 1912.

A ideia de Wegener foi também sugerida praticamente na mesma época pelo geólogo

Capa da edição inglesa de “origem dos continentes e Oceanos”, a partir da ultima edição alemã de 1929

norte-americano Frank Taylor (1860 – 1938).  Durante alguns anos, a teoria foi chamada de Teoria de Taylor-Wegener.  No entanto, as duas eram bastante diferentes. E a de Wegener foi a que teve mais poder explicativo e permaneceu.

O  livro de Alfred Wegener,  “Die Entstehung der Kontinente und Ozeane“, publicado em 1915 e reeditado em 1922,  foi muito bem recebido. Publicado em inglês em 1922, com o título “The Origin of Continents and Oceans”,  teve sua última edição em alemão revista por Wegener em 1929.

PAPO RETO

A estrutura do livro de Alfred Wegener é bastante simples, com uma linguagem também simples e direta. A discussão sucinta era o produto de muito trabalho de leitura e reflexão. Quando foi preciso, fez um bom uso de metáforas, como quando comparou os continentes a icebergs flutuando no gelo. Em sua pesquisa, Wegener conseguiu enfeixar no livro os mais importantes trabalhos de geofísica, geologia, paleontologia de seu tempo.

Como já disse aqui a professora Frésia aqui no blog, as correlações paleontológicas foram algumas evidências decisivas para a aceitação da teoria. A flora de glossopteris existente no grande continente de Gondwana, já identificado pelo geólogo austríaco Eduard Suess (1831 – 1914), foram argumentos importantes nesta correlação.

Da mesma forma, Wegener empresta de Suess o conceito de sal (silício mais alumínio), que representaria a composição da crosta continental granítica. Essa seria a porção que estaria a deriva num oceano de basalto, o sima (camada de silício mais magnésio). Advertido pela confusão que o termo sal provoca nas linguás latinas, Wegener modifica o conceito para sial, como hoje o conhecemos.

AS PONTES CONTINENTAIS

Através de argumentos que aliavam conhecimentos de geofísica, paleontologia e geologia, assim como dos paleoclimas, a teoria de Alfred Wegener colocou em xeque a teoria das pontes continentais. Essa teoria, já discutida aqui, postulava a existência de terrenos entre os continentes que poderiam ter existido no passado. Através das pontes continentais,segundo a teoria,  é que as faunas dos diversos continentes poderiam ter atravessado de um continente a outro.

Entre os defensores da teoria das pontes continentais  citado por Wegener estava Herman Von Ihering (1850 – 1930), biólogo alemão que veio para o Brasil, onde dirigiu o Museu Paulista de 1894 a 1916. Um estudo de sua vida e sua obra, pelas professoras Maria Margareth Lopes e Irina Podgony, pode ser encontrada aqui.

A AJUDA DO SOGRO

Vale a pena citar a importância de seu sogro Wladimir Koppen para a teoria da Deriva Continental. Koppen, nesta altura aposentado, deu uma importante contribuição para a teoria de seu genro.  O livro que publicaram em 1924 “Die Klimate der Geologischen

A capa de uma edição bilíngue moderna do clássico “Climas do Passado Geologico, de Koppen & Wegener; Veja-se aí o maduro climatólogo e o jovem meteorologista.

Vorzeit (Os climas do passado geológico)” foi decisivo para a discussão dos paleoclimas. Um resumo do livro de Koppen e Wegener está resumido no capitulo 7° da edição inglesa do “Origins of Continents and Oceans”.

Foi também Koppen quem incentivou o iugoslavo Milutin Milankovitch (1879-1958) a publicar a sua hoje famosa teoria dos ciclos solares, conhecidos como ciclos de Milankovitch. Com isso, pela primeira vez havia uma teoria simples e unificada que poderia explicar as glaciações do passado. Provavelmente, sem o apoio de Koppen, um cientista de fama mundial, Alfred Wegener não tivesse tido a atenção que teve.

Depois da morte de Wegener foi Koppen, já octogenário, quem cuidou da reedição dos livros e da revisão cientifica de sua obra. Ao morrer, aos 93 anos, Koppen havia recentemente concluído a que foi  a ultima revisão de “Climas do Passado Geológico“.

UMA TEORIA  REVOLUCIONÁRIA?

Alfred Wegener foi um destes cientistas que não cabem num rótulo. Sua contribuição para a teoria da Deriva Continental foi seminal. Sua contribuição à meteorologia e à exploração do Ártico também foram importantes. Sua capacidade de articular a experiência de campo e a pesquisa também foram notáveis.

A Deriva continental, refutada por tantos e em tantas ocasiões, retornou nos anos 1960 com a Tectônica de Placas. Apesar de ter muito pontos falhos, a teoria de Wegener teve

As Placas Tectônicas, como as conhecemos hoje

uma grande aceitação. Sua simplicidade e originalidade contam muito. A explicação unificadora, que juntava tantas disciplinas numa explicação única também foi muito importante. Mas o espirito analítico de Wegener, seu amplo conhecimento de temas de geofísica e climatologia (daí a paleoclimatologia) foram decisivos.

Alfred Wegener, com a tecnologia da sua época, jamais poderia ter provado a sua teoria. Os avanços da sismologia, da magnetometria e o desenvolvimento da geocronologia depois de sua morte foram decisivos para a comprovação de sua teoria. No entanto, as grandes perguntas de Alfred Wegener pautaram a pesquisa cientifica nestas áreas durante boa parte do século XX. As discussões contidas no “Origem dos Continentes e Oceanos” seriam as perguntas mais

Alfred Wegener fazendo graça

importantes para a comunidade geocientífica no seculo XX.

A morte de Wegener no gelo da Groenlândia foi o fim provável de um grande explorador e aventureiro.

Quase um século depois, seu exemplo de cientista de campo e notável teórico em campos tão diversos como a meteorologia e a geologia nos fazem lembrar de quanto o conhecimento só avança pelas bordas.

Pelas in(ter)disciplinas.

Para saber mais:

Alfred Wegener institut  https://www.awi.de/en.html

McCoy, Roger M. Ending in ice: the revolutionary idea and tragic expedition of Alfred Wegener. Oxford University Press, 2006.

Greene, Mott T. Alfred Wegener: Science, Exploration, and the Theory of Continental Drift. JHU Press, 2015.

O Dinamarquês das Cavernas

Um fim de tarde no interior
A praça central de Lagoa Santa (MG) no inicio do seculo XX

Estávamos em 1878, 56º ano da independência do Brasil. Fazia já 38 anos do Reinado de sua alteza Imperial, D Pedro II.

Era um fim de tarde quente na pequena vila de Lagoa Santa, no interior de Minas Gerais. As nuvens se acumulavam atrás da Serra da Piedade. Era um prenuncio de chuva para amenizar o calor abafado. Uma banda de música se fazia ouvir, lá para os lados da praça central.

O som da música ia aumentando, a medida em que nos aproximamos. A cidade era uma rua, com as casas dispostas em amplos quintais cheios de arvores de todos os tipos: pequizeiros, umbuzeiros, mangueiras. Os buritizeiros eram muito comuns, assim como outros tipos de coqueiro. O contraste das outras arvores e os coqueiros davam um recorte especial às casas da pequena cidade.

As casas eram simples, com cercas de madeira na frente. a grande maioria era de telhado simples, mas as maiores tinham até quatro águas. Eram caiadas de branco, com portas e janelas de madeira. Algumas janelas, nas casas maiores, eram de vidro, com duas guilhotinas. A madeira das janelas era pintada de azul ou vermelho. Muitas possuíam amplas varandas, onde se viam redes, cadeiras de descanso e vasos de plantas.

Quando cessa a música, os músicos começam a se dispersar. Um velhinho, que parecia ser o maestro da banda, começa a descer a rua acompanhado de um menino. Quando entram na grande casa da esquina, pode se ver as luzes sendo acesas.

O velhinho que cuidava da banda de Lagoa Santa era ninguém menos que Peter Wilhelm Lund. O famoso paleontólogo dinamarquês, que havia chegado ali na pequena vila havia uns trinta e cinco anos. Agora, já com quase oitenta anos, era uma figura pública do lugar. Da varando de sua casa dava conselhos, emprestava dinheiro e cuidava da pequena banda da cidade.

A Banda Santa Cecilia
O Paleontologo Dinamarques Peter Wilhelm Lund (1801-1880), em foto de 1868

A banda Santa Cecília era um dos xodós de Peter Lund. Ele havia dado o dinheiro para comprar os instrumentos e também participava dos ensaios. Lund era conhecido na cidade como um bom músico e havia sido, na juventude, um bom pé-de-valsa.

Naqueles dias, entretanto, sentindo-se cansado, Lund deixava-se ficar em casa. Reclamava muito de reumatismo, e deixava-se ficar na rede, descansando. Só raramente ia aos ensaios, acompanhado de seu afilhado Nereo. O garoto era filho de Luís Cecílio, seu colaborador no trabalho de escavação das grutas calcárias da região.

A exploração das cavernas de Lagoa Santa

Durante cerca de dez anos, entre 1835 e 1845, desde que ali chegara, Lund havia escavado quase todas as cavernas da região na procura de fósseis. Era um trabalho duro. Lund contratou dezenas de pessoas, comprou muitas mulas e construiu equipamentos para retirada do material das cavernas e para a obtenção dos fósseis e esqueletos.

Quase todas as grutas da região foram escavadas. Durante o período de intensa exploração, dezenas de toneladas de material eram escavados, numa operação que muito similar a uma exploração mineira convencional. O trabalho era tão gigantesco que Lund gastou nele praticamente um quinto de sua fortuna.

Lund era um homem rico, herdeiro de um prospero comerciante dinamarquês.  Ao morrer, o velho Henrik Lund deixou para cada um de seus filhos o suficiente para que não se preocupassem com dinheiro ou trabalho. Seus irmãos dedicaram-se as finanças. Lund estudou e virou um renomado naturalista. Mas a família era cheia de talentos. Um primo famoso de Peter Lund foi o filósofo dinamarquês Soren Kierkegaard.

O “priminho Soren”

O famoso filósofo precursor do existencialismo moderno era treze anos mais moço que Lund. Nas cartas e correspondências com a família via-se que Peter Lund o tratava como “o priminho Soren”. Aludia a ele como um adolescente imaturo e autocentrado. Para Kierkegaard, por outro lado, ele era o primo Peter, naturalista. Certa vez, numa polêmica com Hans Christian Andersen, citou os formigueiros brasileiros, na certa derivados de observações de Lund.

Soren Kierkegaard (1813 – 1855), o “priminho Soren” de Lund e uma dos maiores filósofos da Modernidade

Numa carta que nunca enviou a Lund, Kieerkegaard mostra-se entusiasmado com as ciências naturais. No entanto, imagina que a “monstruosa dedicação” do naturalista a pequenos detalhes impede a compreensão de coisas maiores. Enquanto isso, no outro lado do mundo, Lund embrenhava-se

com dedicação monstruosa para resolver os problemas paleontológicos das cavernas de Lagoa Santa.

Lund, o Catastrofista

As pesquisas de Peter Lund em Lagoa Santa foram um marco para a paleontologia. Nós já falamos sobre os inícios do conhecimento sobre a fauna pleistocênica de Minas, com o trabalho de Simão Sardinha, no seculo XVIII. No século XIX Lund preencheu importantes lacunas do conhecimento sobre a fauna do Pleistoceno. Preguiças Gigantes, Megatérios, Gliptodontes e outros mamíferos extintos foram encontrados em suas escavações. Com base nestes fósseis, Lund escreveu diversos trabalhos, publicados nos mais importantes periódicos científicos da época.

Lund e o Tigre de dentes de sabre, num documentário dinamarquês sobre o cientista e seu trabalho nas cavernas de Minas Gerais (https://www.dr.dk/nyheder/viden/naturvidenskab/fem-ting-du-boer-vide-om-danskeren-der-fandt-sabeltigeren

Neles, Lund explicava sobre as faunas extintas devido as “grandes Revoluções do Globo”, como havia aprendido com seu professor em Paris, Georges Cuvier. Cuvier, de quem nós já falamos aqui, era um dos maiores expoentes da teoria chamada “catastrofismo”. O catastrofismo propunha que as diferenciações entre as faunas eram devidas a diversos tipos de cataclismos. O grande problema do catastrofismo era que ele não propunha uma boa alternativa para a mudança das diferentes espécies animais e vegetais que eram encontradas.

Diferentemente, ao correr do século, as teorias sobre a mudança dos seres vivos eram explicadas pela mudança gradual das espécies pelos diferentes mecanismos de evolução. Lund, em seu refúgio de Lagoa Santa, não participou destes embates. No entanto, dada a qualidade de seu trabalho, sua pesquisa chegou a ser citada elogiosamente por Charles Darwin A Origem das Espécies, de 1859.

Um naturalista “aposentado”
A casa de Lund em Lagoa Santa;

Quando isso aconteceu, Peter Lund já se encontrava “aposentado”. Depois de publicar seus artigos mais importantes, ele tratou de despachar sua coleção para a Dinamarca. Hoje, sua coleção está no museu de história natural de Copenhague. Muitos hoje veem como uma atitude imperialista. No entanto, parte das atividades de Lund fora parcialmente financiada pela Coroa dinamarquesa. O desenhista de Lund, Peter Andreas Brandt, era pago com uma bolsa fornecida pela academia dinamarquesa de ciências.

Desenho de P.A. Brandt mostrando o trahalho nas cavernas. os homens almoçando dentro da caverna e os jumentos usados para carregar a terra retirada fazem contraste com a bela cortina calcária ao fundo.

Brandt, assim como Lund, nunca voltou para a Dinamarca. Seus desenhos das escavações e as ilustrações dos esqueletos encontrados foram muito importantes para o trabalho de Lund. O traço de Brandt ligou-se ao texto de Lund. Mesmo passando com sua família passando por diversos percalços na Escandinávia, Brandt ficou em lagoa Santa até morrer em 1862.

Viver e morrer em Lagoa Santa

Lund estivera pela primeira vez no Brasil entre 1825 e 1829. Nesta primeira viagem, ele ficou principalmente no interior da província do Rio. Tratou de voltar em 1834, quando fez uma viagem que atravessou o Rio, São Paulo e Goiás, terminando em Minas. Em São Paulo, visitou a fábrica de ferro de São João de Ipanema, grande centro industrial da época. Esteve também na Vila de São Carlos, a atual Campinas, antes de partir para o cerrado dos Goiás.

Quando chegou a Minas, entretanto, Lund deixou-se ficar. Escolheu a pequena Lagoa Santa como seu ponto de apoio. Quando terminou suas escavações, deixou-se ficar na pequena vila. Dizia a família que estava doente, e que temia retornar ao frio do inverno dinamarquês. Arrumou mil desculpas. Foi ficando, ficando e ficou. Incorporou-se e foi incorporado à pequena Lagoa Santa. Era, como vimos, um pacato e benquisto cidadão. No tempo em que ali viveu, Lund colocou a pequena vila no mapa da ciência.

Lund faleceu em 1880, aos 79 anos. Toda a população da pequena cidade seguiu o enterro. Em seu funeral a banda Santa Cecília tocou desde sua casa até o cemitério. O velho Lund havia deixado ordens em seu testamento que em seu enterro ninguém deveria chorar.

Peter Lund, o cientista

Peter Lund foi muito importante para a Paleontologia. Seus achados de animais consolidaram a questão das faunas de mamíferos pleistocênicos. Suas descobertas foram importantes para os debates sobre a teoria da evolução das espécies, embora Lund tenha permanecido sem criticar o catastrofismo de seu mestre Cuvier.

Os esqueletos humanos encontrados em lagoa Santa são os mais antigos até hoje descobertos no continente americano. Lund, ao comparar os esqueletos humanos e a fauna pleistocênico concluiu afirmativamente pela sua grande antiguidade. Era o famoso “homem de Lagoa Santa”. No entanto, hoje mais famosa é uma mulher. Foi nestas cavernas que foi encontrado, no inicio deste século, o esqueleto de Luzia. Trata-se do mais antigo esqueleto humano das Américas, descrito pela equipe do arqueólogo Walter Neves.

A reconstrução do cranio chamado de Luzia: a mais antiga americana até hoje conhecida.

Lund também se correspondeu com os cientistas brasileiros do Instituto Histórico e Geográfico brasileiro. Embora nunca tivesse saído de Lagoa Santa, ele acabava por atrair diversos pesquisadores para a pequena vila. Seu mais assíduo visitante foi JT Reinhardt, botânico dinamarquês, que fez importantes observações e descrições das plantas do cerrado. Outro visitante ilustre foi outro botânico, Eugene Warming.

O “Pai” da Paleontologia Brasileira?

Quando se pensou numa história das ciências geológicas no Brasil, o nome de Lund não pôde deixar de ser citado. Entretanto, os historiadores mais envolvidos com teorias positivistas resolveram simplificar:  Lund foi proclamado o “pai” da paleontologia brasileira.

A ciência não tem pais. Nem mães. A ciência é uma atividade da cultura humana com outra qualquer. Apesar de sua imensa contribuição, Peter Lund não é nosso “pai”, na medida em que não nos deixou “filhos”. Não há uma tradição, uma maneira de pensar, uma sequência de paleontólogos criados a partir de Peter Lund.

O homem de Lagoa Santa era tudo isso. Complexo e contraditorio. Um grande cientista que queria viver só e pacatamente no interior da Brasil. Em Minas Gerais, quem não quer?

Para saber mais:

Holten, Birgitte, and Michael SterllPeter Lund e as grutas com ossos em Lagoa Santa. Editora UFMG, 2011.

Eu, Amonite

Meu nome é Hildoceras crassum, e sou um amonite.

Este sou eu, Hildoceras crassum

Na Desciclopédia dizem que sou simplesmente um molusco, o que realmente sou. Mas sou mais que isso: na classificação zoológica pertenço à classe dos amonitas, e a família Hildoceratidae.

A esta altura da vida (ou da morte), não tenho mais problemas em ser um Hildoceras crassum. Segundo vários cientistas, nós apresentávamos dimorfismo sexual, ou seja, os machos eram diferentes das fêmeas. Mas isso foi há muito tempo atrás. Como eu não lembro mais se sou um ou uma amonite, segundo o moderno costume,  podem me chamar de Hildx.

Nasci e morri no Andar toarciano, no Jurássico inferior. Isso em linguagem de gente significa que nasci e morri num período de tempo entre 184 a 175 milhões de anos atrás. Alguns de vocês podem perguntar: “Como era isso, Hildx?“. Eu não me lembro muito bem, minhas crianças. Faz tempo. Só sei que nadávamos livres por mares pouco profundos, caçando pequenos crustáceos e outros animais. Um período feliz, sabe?

Meu Primo Endemoceras, dando um rolê pelas águas quentes do Jurássico

Nós conseguíamos nadar muito bem e podíamos controlar a profundidade em que estávamos, simplesmente enchendo de gás ou fluido a nossa cavidade externa. Morávamos na ultima parte da concha, que era a mais larga. Como os nossos  modernos primos polvos e lulas, éramos terríveis predadores. O terror dos mares do Jurássico inferior!

 No entanto, estamos extintos!

Mesmo o mais terrível dos predadores morre. Quando morri, fui depositado em meio a uma vasa argilosa, no fundo do mar. Fui lentamente recoberto por essa fina argila. Meu corpo e meus tentáculos (tão graciosos! ) desapareceram. Restou só a minha fina casca espiralada. E mesmo esta fina casca foi mudando: lentamente, molécula a molécula, ela foi sendo substituída por outras substâncias, até eu virar isso que sou hoje. Acho que vocês chamam isso de biomineralização.

Estas são as condições que fazem de mim um fóssil. Os cientistas dizem que todo fóssil tem uma história para contar. No entanto, quem conta a história dos fósseis são eles, os cientistas. Por isso, quero mudar um pouco e contar a minha história. Eu sou um amonite fóssil e conto a história de depois de mim. E não me confundam, por favor: não sou um autor fóssil, desses que se biomineralizam em vida. Eu não. Eu, o amonite Hildx, sou um fóssil autor. Original, não?

Nós amonitas, estamos há muito tempo por aqui. Vivemos e fomos muito abundantes  na era que vocês chamam de Mesozóico, quando finalmente fomos extintos. Por termos sido tão abundantes e por sermos característicos de um determinado período de tempo, somos muito usados para datação relativa do tempo geológico. Somos o que se chama  fósseis índices ou fósseis guia.

Eu e você, você e eu…

Mas nosso período geológico mais interessante é o período que vocês humanos chegaram por aqui. Interessante e engraçado. Vocês não entenderam nada!! Quando vocês achavam um de nós no chão ou os tiravam do meio das pedras, vocês ficavam feito bobos nos olhando seguidamente. Não é para menos.

Nosso formato elegantemente espiralado, que lembra uma sequência de Fibonacci, chama mesmo a atenção. Alguns, embalados em leituras rápidas, vão dizer que somos os primeiros illuminati! Ou que somos produtos de algum designer inteligente. Hã, sei. Só espécies antigas e extintas como nós sabem o trabalho que dá evoluir…

O Chakra de Vishnu e o amonite como objeto religioso na India; Estes objetos são chamados de Saligramas

Já fomos confundidos com várias coisas. Na Índia, nós amonitas somos chamados de Saligramas. Somos representados como um dos chacras do deus Vishnu. Bacana, não?

No tempo dos gregos e dos romanos clássicos, confundiam nosso formato com os chifres de uma cabra. Não demorou para que nos associassem a deuses e formas caprinas. Amon, divindade egípcia também conhecida como Amon-Ra, e que era portador de belos chifres caprinos, foi logo associado conosco.

Plínio, o velho, o grande naturalista romano, anotou na sua História Natural que nós éramos conhecidos na antiguidade como “cornos de Amon”.  E assim efetivamente fomos conhecidos em quase todo o mundo romano.

um tipico snakestone: um amonita com a cabeça de uma serpente esculpida

Todo o mundo romano, menos naquela ilhazinha, que os romanos chamavam de Bretanha. Lá, fomos durante algum tempo associados – vejam vocês – a serpentes enroladas. As snakestones eram muito comuns nas camadas jurássicas da velha ilha. Nossa ocorrência era tão comum que em algumas vilas éramos usados como enfeites e mesmo como pesos nos mercados. Imagine alguém chegando na feira da vila: “quero um corno de Amon de Batatas e dois de chuchu!“.

 Santa Hilda e os amonites
Memorial de Santa Hilda em Whitby; notar os amonitas, como serpentes enroladas, aos pés da Santa

Surgiram mesmo associações estranhas. Mais do que vocês possam imaginar. Uma importante abadessa bretã, Santa Hilda (614-670 AD), foi associada, muito tempo após sua morte, com lendas que lhe atribuíam o poder de transformar serpentes em pedras. As serpentes petrificadas, claro, éramos nós, amonites.

Existem inclusive estátuas e mesmo brasões mostrando santa Hilda transformando serpentes em pedra. Sir Walter Scott, autor de Ivanhoé e grande medievalista inglês, chegou a escrever um poema onde falava dos milagres de santa Hilda.

Eu não entendo de milagres, pois estou extinto. Mas entendo de ironias. Alpheus Hyatt (1838-1902), paleontólogo americano, deu o nome de Hildoceras a uma ordem de amonitas do jurássico inferior. Este é, por assim dizer, o meu nome de família. O mistério da transformação das serpentes em pedra já estava resolvido.

Mas, graças a Hyatt, Santa Hilda estava de novo e inadvertidamente ligada a nós pelo nome. Santa Ironia. Quantas risadas Hyatt deve ter dado!

O estilo amonite

Houve inclusive uma época em que nossas graciosas

Capitel com motivos inspirados em amonites. Esta casa também pertenceu ao paleontólogo Gideon Martell

formas serviram de inspiração para os arquitetos. Em vários locais da Inglaterra, foi de muito bom gosto a incorporação de elementos de decoração que lembravam as formas do amonites. Isso foi no inicio do seculo XIX.

Um dos arquitetos responsáveis por estes edifícios não foi ninguém mais que Amon Wilds. Inspirado provavelmente pelo seu próprio nome, ele construiu diversos edifícios com motivos amoníticos. Um dos mais celebrados destes edifícios era localizado em Castel Place 166 High Streets, em Sussex.

Por motivos que só pertencem à Paleontologia, esta casa foi construída para Gideon Mantell. Mantell foi o primeiro a descrever o Iguanodon, um dos primeiros  dinossauros gigantes. De modo que tudo terminou literalmente em casa.

O filho de Amon Wilds, que tinha o nome do pai, continuou sua obra, construindo diversas casas no sul da Inglaterra com motivos amoníticos na década de 1820.

por que eu?

tenho muitas mais historias pra contar. Alguém vai dizer: “conta mais, Hildx“. Eu conto, minhas crianças. Hoje não, que estou cansadx e com sono. Ontem mudou o horário de verão e, mesmo para nós, seres já extintos, isso dá um cansaço medonho.

Sou um amonite, com muito orgulho. Não nadamos mais alegres pelos mares como outrora. Somo umas pedras estranhas

A moderna congregação de Santa Hilda apresenta a sua imagem segurando uma casa, simbolo de sua abadia. Na outra mão, não uma serpente mas um amonite. Uma santa em paz com a modernidade.

desencavadas das rochas. Dos nativos americanos aos hindus, dos ingleses aos alemães, dos bretões do condado de Witby aos modernos museus de paleontologia, nós continuamos brilhando.

Ora somos objeto de adoração ou objetos de cultos estranhos. Ora somos remédios potentes contra picadas de cobra, amuletos para sonhos ruins ou meras decorações em casas de província. O fato é que nós causamos.

Nossa concha elegantemente espiralada e nossas suturas graciosas chamam a atenção por serem objetos geométricos de grande simplicidade e beleza. Nossa presença em rochas antigas nos faz testemunhos importantes da história da Terra.

Semana passada a professora Frésia escreveu aqui mesmo neste blog que um exemplar de amonite que ela ganhou de seu pai alterou seu destino. Hoje, ela é uma feliz paleontóloga. Que bacana! E que orgulho!  Este é nosso mistério.  Nós, amonitas, podemos mudar suas vidas!

E quem quiser que conte outra.

Para saber mais:

Kracher, Alfred. “AMMONITES, LEGENDS, AND POLITICS THE SNAKESTONES OF HILDA OF WHITBY.” European Journal of Science and Theology 8, no. 4 (2012): 51-66.