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SHE SELLS SEA SHELLS ON THE SEA SHORE

É de manhã cedo. O mar está calmo, e a maré baixa. Na grande falésia branca da praia de Lyme Regis, em Dorset, na Inglaterra, um grupo de pessoas está trabalhando nos rochedos. Usando martelos e picaretas, eles cortam o paredão em busca de fósseis. Entre eles está uma mulher. Mary Anning, acompanhada de seu cãozinho vira-lata Tray, está protegida do frio e da maresia usando roupas largas. Na cabeça, usa um chapéu de palha amarrado no pescoço para não ser arrancado pelo vento do mar .

Praia de Lyme Regis, Dorset, onde Mary Anning viveu e “caçou” diferentes tipos de fósseis…
FÓSSEIS PARA (SOBRE)VIVER

Mary Anning (1799-1847) é a chefe do grupo de coletores de fósseis. Dona de uma pequena mas bem sortida loja, ela é uma das maiores fornecedoras de fosseis para colecionadores e museus de toda a Europa. Mesmo dos Estados Unidos vem pesquisadores e colecionadores para ver – e comprar! – suas preciosidades.

Mary Anning (1799 – 1847) e seu cãozinho Tray, A pintura é de 1842.

De origem humilde, a família de Mary Anning começou a coletar fosseis para complementar a parca sobrevivência. No entanto, seu pai Richard, sua mãe Molly e seu irmão Joseph também eram exímios coletores de fosseis. Entre os fosseis mais importantes que coletaram estão os famosos esqueletos dos plesiossauros, grandes lagartos marinhos.  Hoje, boa parte dos fosseis coletados por Mary Anning e sua família estão expostos no Museu de História Natural em Londres. Da mesma forma, na França, na Inglaterra e na Alemanha, quase todos os grandes Museus de História Natural têm fósseis  coletados por ela.

Mesmo sem uma educação formal, Mary Anning chegou a participar da construção da Paleontologia moderna. No entanto, ela chegou mesmo a participar de alguns debates,  corrigindo algumas distorções e classificações incorretas. Dona de um saber prático, Mary Anning ajudou muito neste estagio embrionário da paleontologia.

DORSET NO JURÁSSICO

Embora tenha chegado a ter uma loja, vendendo fosseis para toda a Europa, Mary Annning sempre passou por varias necessidades financeiras. Para tanto, várias pessoas ao longo de sua vida, penalizadas com as duras condições de Mary Anning e sua família, fizeram subscrições para ajudar.

 

Duriea Antiquor (Dorset antigo) de Henri de la Beche (National Museum of natura History of Wales). A luta fictícia entre o ictiossauro e o plesiossauro ficou tão famosa que Julio Verne a incluiu em seu “Viagem ao Centro da Terra”.

Entretanto, uma das mais criativas e interessantes subscrições foi feita por um grande amigo de Mary Anning, o geólogo Henri De La Beche. Bom desenhista e caricaturista, De La Beche desenhou uma gravura cujas vendas pudessem ajudar financeiramente Mary Anning, já então bem doente de um câncer de seio. Contudo, a gravura, intitulada Duriea Antiquor (“Dorset antigo” em latim), retrata com precisão e bom homor qual teria sido, há milhões de anos atrás, a vida dos fósseis coletados por Mary Anning.

Bem desenhado e bem elaborado, Duriea Antiquor é um dos primeiros e mais importantes desenhos sobre o mundo anterior aos humanos. Contudo, a sua representação da vida no jurássico até hoje é uma das mais influentes da paleontologia. A gravura até hoje baliza a maneira como representamos até hoje a vida antiga na  Terra.

VENDER CONCHAS DO MAR NA BEIRA DO MAR…

A vida e os perrengues pelos quais passou Mary Annning dariam um poema. Ou um livro. Ou um filme. Ou tudo isso.

No início do século XX o escritor inglês H. A. Forde  publicou “The Heroine of Lyme Regis: The Story of Mary Anning the Celebrated Geologist”. Baseado no relato de Forde, muitas histórias inspiracionais sobre Mary Anning foram escritas. Entretanto, talvez ela seja também a inspiração para o poema – e terrível trava-línguas –  que todos os estudantes de inglês língua estrangeira se confrontam:

She sells seashells on the seashore
The shells she sells are seashells, I’m sure
So if she sells seashells on the seashore
Then I’m sure she sells seashore shells.

MERYL STREEP?

Em 1969 outro escritor inglês, John Fowles, escreveu um romance histórico chamado “The French Lieutenant´s Woman” (a mulher do tenente francês). Contudo, na história de Fowles, está patente a denúncia do preconceito de classe e de gênero que  Mary Anning sofreu. Mesmo tendo ajudado tantos cientistas, ela nunca ficou, em vida, com a fama da descoberta. O único que homenageou Mary Anning durante sua vida, entretanto, foi o zoólogo franco-suíço Louis Agassiz, que a conheceu pessoalmente em 1834 e nomeou duas espécies de peixe com seu nome.

O livro de Fowles foi um grande sucesso de público e crítica. Em 1982 foi adaptado para o cinema pelo teatrólogo e roteirista Harold Pinter, e dirigido por Karol Reisz. Como protagonistas, ninguém menos que Meryl Streep e Jeremy Irons. Da mesma forma, o livro também virou peça de teatro de grande sucesso.

Poster do filme “A mulher do tenente francês”, de 1982, com Meryl Streep e Jeremy Irons. A historia é livremente baseada na vida de Mary Anning
UM GRANDE VULTO DA CIENCIA

Entretanto, em 1999, bicentenário de seu nascimento, houve um grande evento em seu nome na praia de Lyme Regis. Da mesma forma, em 2005, o Museu De História Natural de Londres incluiu seu nome ao lado de outros grandes vultos da ciência. Nesta exposição, ela está ao lado de personalidades como Carl Linné  e William Smith.

Mary Anning morreu em 1847, vítima do câncer. Ela viveu toda a vida entre os penhascos de Lyme Regis, escavando a lama do mar jurássico em busca de fosseis para sobreviver. Mas, inadvertidamente, foi uma das maiores paleontólogas de todos os tempos.

Contudo, Mary Anning nos desvendou os abismos do tempo e os fantásticos animais que o habitaram. Desta forma, para ajudá-la foram feitas as primeiras representações sobre o mundo antigo que conhecemos. Foi vítima do preconceito de classe e de gênero. No entanto, Com sua vida, inspirou muitas outras.

Mary Anning é tanta inspiração que ultrapassou a Ciência. Mary Anning é pop. Foi livro, peça, filme. Virou até trava-línguas!

Não é pra qualquer um…

Padre Kircher e as Brincadeiras da Natureza

Padre Athanasius Kircher (1602-1680)

Fazia um pouco de frio em Roma no dia em que padre Kircher morreu, aos 78 anos de idade, em 27 de novembro de 1680. O sol praticamente não apareceu, e um vento frio fazia a sensação térmica piorar. No entanto, a vida seguia normal. A missa foi cantada em todas as igrejas da Cidade Eterna no horário habitual. O comércio abriu normalmente. Enquanto isso, as pessoas circularam pela rua para seus negócios, compras e amores.

Fazia já alguns anos que padre Athanasius Kircher andava doente. Surdo, sem enxergar direito e com lapsos grandes de memória, ele raramente saia de sua cela. No entanto, ainda produzia: em carta daquele mesmo mês de novembro, provavelmente ditada por ele, padre Kircher se desculpava com seu interlocutor por causa de suas “mãos trêmulas”.

Com sua morte, desapareceu de cena uma das personalidades da cultura mais interessantes do século XVII. Isso não é pouco, num século que começa com Giordano Bruno, Galileu Galilei, René Descartes, Baruch Spinoza e vai até Isaac Newton, entre tantos outros.

SABIA TUDO E NÃO ENTENDEU NADA?

Padre Kircher comandou, a partir da Biblioteca do Vaticano, que ele dirigiu por mais de cinquenta anos, um dos maiores projetos culturais de que se tem notícia. Seus mais de quarenta livros e seus inventos abrangem praticamente todas as esferas do conhecimento, desde a Linguística até a Geologia, a Física e a Química. Ele foi, segundo a historiadora Paula Findlein, sua biógrafa, “o último homem que sabia de tudo” (deixe Jeff Bezos mais rico aqui).

Padre Kircher recebendo visitantes na Biblioteca Vaticana

Claro que tal ambição tem seu preço. Conhecer tudo significa conhecer um pouco de tudo. Apesar de ser um erudito no mais amplo sentido da palavra, Kircher cometia gafes e frequentemente fazia falsas interpretações. Quando leu o livro que padre Kircher escreveu tentando decifrar os hieróglifos egípcios, o também polímata Gotfried Leibniz (1646-1716) escreveu: “ele [Kircher] não entendeu nada!”.

Da mesma forma, o erudito inglês Johann Burkhardt Mencke (1674-1732) escreveu “De Charlataneria eruditorum” [A charlatanice dos eruditos], no qual faz uma imagem devastadora de Kircher. Sua caricatura de um charlatão escrevendo coisas estúpidas e sem sentido foi a imagem que ficou do Jesuíta para a posteridade.

No entanto, passado tanto tempo, cabe perguntar: quem foi padre Kircher? Qual o seu alcance e seu significado? Quais seus pressupostos e qual sua visão de mundo? Em anos recentes, apareceram uma série de livros e artigos revisitando e colocando sua vida e sua obra em perspectiva histórica. Um novo Kircher surgiu.

CONHECIMENTO SEM LIMITES

Athanasius Kircher nasceu em Geisa, na Alemanha, em 1602. Era o ultimo de nove filhos de uma família burguesa escolarizada. Segundo sua autobiografia, o jovem Athanasius era um “estúpido propenso a acidentes”. Fez seus estudos no Colégio jesuíta de Paderborn, de onde quase foi expulso por sua saúde fraca.  Quando finalmente se formou, em 1627, foi admitido na pretigiosa Companhia de Jesus. alem disso, foi ser professor de grego e siríaco em Heilingenstadt, onde seu pai também havia lecionado.

Fascinado pelo Oriente, Kircher pediu para ser enviado como missionário para a China, mas foi recusado pela sua Ordem. Logo a seguir, era ele teria que se mudar: a Alemanha estava sofrendo com a Guerra dos Trinta Anos, entre protestantes e católicos. O católico e jesuíta Kircher se refugiou em Avignon na França em 1632, fugindo das tropas protestantes do Rei Gustavo Adolfo da Suécia.

De lá, Kircher foi para Roma, onde ficou até o fim de sua vida. Na Cidade Eterna, construiu uma reputação de homem com muitos segredos e possuidor de textos secretos. Muitos não acreditavam nele, mas o padre Kircher parecia não se importar com isso. Passou a estudar, escrever e fabricar instrumentos os mais diversos.

Trabalhando na Biblioteca do Vaticano, padre Kircher foi logo conquistando seu espaço. Seus livros começaram a ficar famosos, e sua reputação ia aumentando. Padre Kircher escreveu sobre os hieróglifos egípcios, sobre o magnetismo, sobre ótica, sobre os subterrâneos terrestres, sobre a história de Roma. Sobre quase tudo.

É claro que muitos perceberam seus limites. Nicolas-Claude Fabri de Peiresc (1580-1637), filosofo e botânico francês e um dos eruditos mais influentes da época, logo entendeu que os talentos de Kircher eram limitados. No entanto, percebeu seu entusiasmo e energia e apoiou várias das iniciativas do jovem Jesuíta.

KIRCHER DESCE AO INTERIOR DA TERRA

Um dos livros mais famosos de Kircher foi o Mundus Subterraneus, de 1665. Nele, padre Kircher expõe sua visão de mundo, fortemente marcada pelo Neoplatonismo e pelo Hermetismo. Para ele,  Terra era uma só, um imenso organismo vivo, governada pelos elementos fogo e água.

todos os vulcões do mundo interconectados na visão de Padre Kircher no Mundus subterraneus (1665)

O fogo é representando pelo sol, pelo enxofre e por Hermes Trismegisto (o três vezes grande). É o fogo que vemos nos vulcões que Kircher representou como sendo um todo interconectado.  Para entender os vulcões, Kircher desceu á cratera do Vesúvio logo após uma erupção em 1638. Também realizou viagens de estudo para Creta, Malta e Sicília,

 

AS MONTANHAS DA LUA

A água, por sua vez, é representada pelos oceanos, rios e fontes, e também pela Lua. Estudando a origem dos grandes rios do planeta, Kircher conclui que estes estavam interconectados com as grandes cadeias de montanhas. O Nilo, o Danúbio, o Ganges e o Amazonas seriam formados por grandes lagos subterrâneos, localizados justamente nas grandes cadeias de montanhas. O Nilo nasceria no coração da Africa nas “Montanhas da Lua“. As tais montanhas não existiam, mas é uma prova de que Kircher sabia se aproveitar de relatos de viajantes e construir o seu próprio.  no seculo XIX não poucos viajantes europeus percorreram as nascentes do Nilo atras destas míticas montanhas. Para kircher, as fontes eram a conexão do interior com o exterior da Terra pela agua. Para ele, a união do sol masculino com a lua feminina realizada na terra dá ao planeta seu caráter “neutro”.

As nascentes do Amazonas em uma caverna subterrânea sob os Andes

Esta visão “holística” do planeta é uma das características da visão neoplatônica de Kircher. O resultado é esta aparente confusão barroca, que une o microcosmo e o macrocosmo, como se um fosse a extensão do outro. Para tanto, Kircher usa da metáfora, da alegoria e do simbolismo para mostrar os sinais da glória de Deus na natureza.

AS BRINCADEIRAS DA NATUREZA

A paleontologia de Kircher é uma das mais interessantes facetas de sua obra. Em seus luvros, contudo, Kircher distingue claramente os fósseis que “são produtos de petrificação de animais e conchas” de outros que são símbolos e alegorias. No primeiro time, estão as coquinas representadas no Mundus Subterraneus (figura abaixo). No outro, as pedras que reproduzem a face de uma garça, uma coruja, ou Nossa Senhora com o menino Jesus. Para Kircher, tais representação não tinham nenhuma causalidade. Eram somente “lusus naturae”, ou seja, brincadeiras da natureza.

As coquinas de Padre Kircher: prova de origem inorgânica dos fosseis

Entretanto, uma leitura apressada da obra de Kircher sugere para muitos somente um lunático (e ainda por cima Jesuíta!) que enxerga figuras absurdas impressas nas rochas. Da mesma forma outros pensavam no padre Jesuíta como um fanático reacionário que é contra a “visão correta” dos fósseis como restos de animais tal como conhecemos hoje. Entretanto, nenhuma destas visões enxerga Kircher como ele deve ter sido.

Kircher sabia que haviam fósseis formados por restos de animais. Durante suas viagens à Sicília, ele encontrou e representou no Mundus Subterraneus animais com aparência moderna achados nas rochas.

As outras indicações de “pedras figuradas” representam, para Kircher, uma interconexão entre micro e macrocosmo. Desta forma, dentro de sua visão de mundo, estas pedras eram as  provas da sabedoria de Deus. Para ele, a discussão sobre a origem organica ou inorgânica dos fosseis e das rochas que as continham não estava posta. A sua “pira” era outra.

as pedras “figuradas”, com significados simbólicos: garças, pombas, corujas e outras figuras
FUJA DA INQUISIÇÃO, PADRE KIRCHER!

Entretanto, a visão de mundo de Padre Kircher era posta constantemente em cheque pelos censores da Companhia de Jesus. Não era pra menos. Por causa de suas ideias neoplatônicas (e por sua defesa do Sistema Copernicano) Giordano Bruno havia morrido na fogueira em 1600, dois anos antes de Kircher nascer. Quando o jovem Kircher chegou à Itália, em 1632, o processo contra Galileu ainda corria, tendo grande publicidade.

Um padre que em seus livros citava Hermes Trismegisto, fazia experimentos alquímicos e construía instrumentos estranhos deve ter chamado atenção dos censores, como realmente chamou. Contudo,  Kircher soube contornar e aparar as arestas entre suas ideias do mundo natural com as demandas da inquisição. Não deve ter sido fácil.

A VIDA QUE SEGUE

Quando padre Kircher morreu, o dia estava frio e cinzento em Roma, mas não por causa dele. Enquanto isso, durante os mais de cinquenta anos que ele permaneceu ali na frente da Biblioteca do Vaticano, o mundo havia mudado muito. Agora, graças a uma notável rede de sábios e eruditos, a ciência moderna estava em franca expansão.

Neste período, o surgimento de novas sociedades cientificas, os primeiros journals, as correspondências de filósofos naturais por toda a Europa (e mesmo na América) haviam mudado o ponto da discussão.

Antes de tudo, o mundo quando Padre Kircher morreu era mais racionalista e mecanicista, baseado mais nas ideias de Descartes e Newton, entre tantos outros. Para isso, a nova ciência que surgia prescindiria de ideia de um Deus ou de qualquer explicação metafisica para fazer a natureza funcionar.  com isso, não havia mais espaço para o sobrenatural, para o maravilhoso e para o espanto. Sobretudo, não havia mais espaço para o padre Kircher.

Fazia frio e ventava no dia em que padre Kircher morreu, mas não por causa de alguma vontade divina. Fazia frio e chovia por causa das correntes de ar atmosférico sobre o Mediterrâneo. Enquanto isso, os pássaros no outono migravam para o sul. As placas  tectônicas seguiam se movimentando, podendo provocar terremotos ou erupções vulcânicas. As fontes seguiriam jorrando água.

No dia seguinte, uma missa foi rezada pela alma de um padre velhinho que morrera naquela noite fria.

SUGESTOES DE LEITURA

Findlen, P. (Ed.). (2004). Athanasius Kircher: the last man who knew everything. Routledge.

Gould, S. J. (2004). Father Athanasius on the isthmus of a middle state. Athanasius Kircher: The last man who knew everything, 201-237.

O Dinamarquês das Cavernas

Um fim de tarde no interior
A praça central de Lagoa Santa (MG) no inicio do seculo XX

Estávamos em 1878, 56º ano da independência do Brasil. Fazia já 38 anos do Reinado de sua alteza Imperial, D Pedro II.

Era um fim de tarde quente na pequena vila de Lagoa Santa, no interior de Minas Gerais. As nuvens se acumulavam atrás da Serra da Piedade. Era um prenuncio de chuva para amenizar o calor abafado. Uma banda de música se fazia ouvir, lá para os lados da praça central.

O som da música ia aumentando, a medida em que nos aproximamos. A cidade era uma rua, com as casas dispostas em amplos quintais cheios de arvores de todos os tipos: pequizeiros, umbuzeiros, mangueiras. Os buritizeiros eram muito comuns, assim como outros tipos de coqueiro. O contraste das outras arvores e os coqueiros davam um recorte especial às casas da pequena cidade.

As casas eram simples, com cercas de madeira na frente. a grande maioria era de telhado simples, mas as maiores tinham até quatro águas. Eram caiadas de branco, com portas e janelas de madeira. Algumas janelas, nas casas maiores, eram de vidro, com duas guilhotinas. A madeira das janelas era pintada de azul ou vermelho. Muitas possuíam amplas varandas, onde se viam redes, cadeiras de descanso e vasos de plantas.

Quando cessa a música, os músicos começam a se dispersar. Um velhinho, que parecia ser o maestro da banda, começa a descer a rua acompanhado de um menino. Quando entram na grande casa da esquina, pode se ver as luzes sendo acesas.

O velhinho que cuidava da banda de Lagoa Santa era ninguém menos que Peter Wilhelm Lund. O famoso paleontólogo dinamarquês, que havia chegado ali na pequena vila havia uns trinta e cinco anos. Agora, já com quase oitenta anos, era uma figura pública do lugar. Da varando de sua casa dava conselhos, emprestava dinheiro e cuidava da pequena banda da cidade.

A Banda Santa Cecilia
O Paleontologo Dinamarques Peter Wilhelm Lund (1801-1880), em foto de 1868

A banda Santa Cecília era um dos xodós de Peter Lund. Ele havia dado o dinheiro para comprar os instrumentos e também participava dos ensaios. Lund era conhecido na cidade como um bom músico e havia sido, na juventude, um bom pé-de-valsa.

Naqueles dias, entretanto, sentindo-se cansado, Lund deixava-se ficar em casa. Reclamava muito de reumatismo, e deixava-se ficar na rede, descansando. Só raramente ia aos ensaios, acompanhado de seu afilhado Nereo. O garoto era filho de Luís Cecílio, seu colaborador no trabalho de escavação das grutas calcárias da região.

A exploração das cavernas de Lagoa Santa

Durante cerca de dez anos, entre 1835 e 1845, desde que ali chegara, Lund havia escavado quase todas as cavernas da região na procura de fósseis. Era um trabalho duro. Lund contratou dezenas de pessoas, comprou muitas mulas e construiu equipamentos para retirada do material das cavernas e para a obtenção dos fósseis e esqueletos.

Quase todas as grutas da região foram escavadas. Durante o período de intensa exploração, dezenas de toneladas de material eram escavados, numa operação que muito similar a uma exploração mineira convencional. O trabalho era tão gigantesco que Lund gastou nele praticamente um quinto de sua fortuna.

Lund era um homem rico, herdeiro de um prospero comerciante dinamarquês.  Ao morrer, o velho Henrik Lund deixou para cada um de seus filhos o suficiente para que não se preocupassem com dinheiro ou trabalho. Seus irmãos dedicaram-se as finanças. Lund estudou e virou um renomado naturalista. Mas a família era cheia de talentos. Um primo famoso de Peter Lund foi o filósofo dinamarquês Soren Kierkegaard.

O “priminho Soren”

O famoso filósofo precursor do existencialismo moderno era treze anos mais moço que Lund. Nas cartas e correspondências com a família via-se que Peter Lund o tratava como “o priminho Soren”. Aludia a ele como um adolescente imaturo e autocentrado. Para Kierkegaard, por outro lado, ele era o primo Peter, naturalista. Certa vez, numa polêmica com Hans Christian Andersen, citou os formigueiros brasileiros, na certa derivados de observações de Lund.

Soren Kierkegaard (1813 – 1855), o “priminho Soren” de Lund e uma dos maiores filósofos da Modernidade

Numa carta que nunca enviou a Lund, Kieerkegaard mostra-se entusiasmado com as ciências naturais. No entanto, imagina que a “monstruosa dedicação” do naturalista a pequenos detalhes impede a compreensão de coisas maiores. Enquanto isso, no outro lado do mundo, Lund embrenhava-se

com dedicação monstruosa para resolver os problemas paleontológicos das cavernas de Lagoa Santa.

Lund, o Catastrofista

As pesquisas de Peter Lund em Lagoa Santa foram um marco para a paleontologia. Nós já falamos sobre os inícios do conhecimento sobre a fauna pleistocênica de Minas, com o trabalho de Simão Sardinha, no seculo XVIII. No século XIX Lund preencheu importantes lacunas do conhecimento sobre a fauna do Pleistoceno. Preguiças Gigantes, Megatérios, Gliptodontes e outros mamíferos extintos foram encontrados em suas escavações. Com base nestes fósseis, Lund escreveu diversos trabalhos, publicados nos mais importantes periódicos científicos da época.

Lund e o Tigre de dentes de sabre, num documentário dinamarquês sobre o cientista e seu trabalho nas cavernas de Minas Gerais (https://www.dr.dk/nyheder/viden/naturvidenskab/fem-ting-du-boer-vide-om-danskeren-der-fandt-sabeltigeren

Neles, Lund explicava sobre as faunas extintas devido as “grandes Revoluções do Globo”, como havia aprendido com seu professor em Paris, Georges Cuvier. Cuvier, de quem nós já falamos aqui, era um dos maiores expoentes da teoria chamada “catastrofismo”. O catastrofismo propunha que as diferenciações entre as faunas eram devidas a diversos tipos de cataclismos. O grande problema do catastrofismo era que ele não propunha uma boa alternativa para a mudança das diferentes espécies animais e vegetais que eram encontradas.

Diferentemente, ao correr do século, as teorias sobre a mudança dos seres vivos eram explicadas pela mudança gradual das espécies pelos diferentes mecanismos de evolução. Lund, em seu refúgio de Lagoa Santa, não participou destes embates. No entanto, dada a qualidade de seu trabalho, sua pesquisa chegou a ser citada elogiosamente por Charles Darwin A Origem das Espécies, de 1859.

Um naturalista “aposentado”
A casa de Lund em Lagoa Santa;

Quando isso aconteceu, Peter Lund já se encontrava “aposentado”. Depois de publicar seus artigos mais importantes, ele tratou de despachar sua coleção para a Dinamarca. Hoje, sua coleção está no museu de história natural de Copenhague. Muitos hoje veem como uma atitude imperialista. No entanto, parte das atividades de Lund fora parcialmente financiada pela Coroa dinamarquesa. O desenhista de Lund, Peter Andreas Brandt, era pago com uma bolsa fornecida pela academia dinamarquesa de ciências.

Desenho de P.A. Brandt mostrando o trahalho nas cavernas. os homens almoçando dentro da caverna e os jumentos usados para carregar a terra retirada fazem contraste com a bela cortina calcária ao fundo.

Brandt, assim como Lund, nunca voltou para a Dinamarca. Seus desenhos das escavações e as ilustrações dos esqueletos encontrados foram muito importantes para o trabalho de Lund. O traço de Brandt ligou-se ao texto de Lund. Mesmo passando com sua família passando por diversos percalços na Escandinávia, Brandt ficou em lagoa Santa até morrer em 1862.

Viver e morrer em Lagoa Santa

Lund estivera pela primeira vez no Brasil entre 1825 e 1829. Nesta primeira viagem, ele ficou principalmente no interior da província do Rio. Tratou de voltar em 1834, quando fez uma viagem que atravessou o Rio, São Paulo e Goiás, terminando em Minas. Em São Paulo, visitou a fábrica de ferro de São João de Ipanema, grande centro industrial da época. Esteve também na Vila de São Carlos, a atual Campinas, antes de partir para o cerrado dos Goiás.

Quando chegou a Minas, entretanto, Lund deixou-se ficar. Escolheu a pequena Lagoa Santa como seu ponto de apoio. Quando terminou suas escavações, deixou-se ficar na pequena vila. Dizia a família que estava doente, e que temia retornar ao frio do inverno dinamarquês. Arrumou mil desculpas. Foi ficando, ficando e ficou. Incorporou-se e foi incorporado à pequena Lagoa Santa. Era, como vimos, um pacato e benquisto cidadão. No tempo em que ali viveu, Lund colocou a pequena vila no mapa da ciência.

Lund faleceu em 1880, aos 79 anos. Toda a população da pequena cidade seguiu o enterro. Em seu funeral a banda Santa Cecília tocou desde sua casa até o cemitério. O velho Lund havia deixado ordens em seu testamento que em seu enterro ninguém deveria chorar.

Peter Lund, o cientista

Peter Lund foi muito importante para a Paleontologia. Seus achados de animais consolidaram a questão das faunas de mamíferos pleistocênicos. Suas descobertas foram importantes para os debates sobre a teoria da evolução das espécies, embora Lund tenha permanecido sem criticar o catastrofismo de seu mestre Cuvier.

Os esqueletos humanos encontrados em lagoa Santa são os mais antigos até hoje descobertos no continente americano. Lund, ao comparar os esqueletos humanos e a fauna pleistocênico concluiu afirmativamente pela sua grande antiguidade. Era o famoso “homem de Lagoa Santa”. No entanto, hoje mais famosa é uma mulher. Foi nestas cavernas que foi encontrado, no inicio deste século, o esqueleto de Luzia. Trata-se do mais antigo esqueleto humano das Américas, descrito pela equipe do arqueólogo Walter Neves.

A reconstrução do cranio chamado de Luzia: a mais antiga americana até hoje conhecida.

Lund também se correspondeu com os cientistas brasileiros do Instituto Histórico e Geográfico brasileiro. Embora nunca tivesse saído de Lagoa Santa, ele acabava por atrair diversos pesquisadores para a pequena vila. Seu mais assíduo visitante foi JT Reinhardt, botânico dinamarquês, que fez importantes observações e descrições das plantas do cerrado. Outro visitante ilustre foi outro botânico, Eugene Warming.

O “Pai” da Paleontologia Brasileira?

Quando se pensou numa história das ciências geológicas no Brasil, o nome de Lund não pôde deixar de ser citado. Entretanto, os historiadores mais envolvidos com teorias positivistas resolveram simplificar:  Lund foi proclamado o “pai” da paleontologia brasileira.

A ciência não tem pais. Nem mães. A ciência é uma atividade da cultura humana com outra qualquer. Apesar de sua imensa contribuição, Peter Lund não é nosso “pai”, na medida em que não nos deixou “filhos”. Não há uma tradição, uma maneira de pensar, uma sequência de paleontólogos criados a partir de Peter Lund.

O homem de Lagoa Santa era tudo isso. Complexo e contraditorio. Um grande cientista que queria viver só e pacatamente no interior da Brasil. Em Minas Gerais, quem não quer?

Para saber mais:

Holten, Birgitte, and Michael SterllPeter Lund e as grutas com ossos em Lagoa Santa. Editora UFMG, 2011.