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O sólido dentro do sólido: Nicolau Steno, o cientista que virou santo

Nicolau Steno
Retrato de Nicolau Steno, pintado em Florença

Nicolau Steno foi um dos homenageados no Congresso Internacional de Geologia de 2004, realizado em Firenze. Lá, os cientistas inauguraram uma placa, onde faziam menção às suas imorredouras contribuições para a Mineralogia, a Paleontologia e a Estratigrafia. Boa parte delas havia sido realizada no tempo que que Nicolau Steno morou ali, na Toscana.

No entanto, alguns anos antes, em 1988, o Papa João Paulo II o proclamou como “bem-aventurado Nicolau Steno”. Sabemos que, quando morreu, Nicolau Steno era um bispo católico, que trabalhava no norte da Alemanha. Seus últimos anos lhe deram aura de Santo. E quase santo ele é. Hoje ele é um Beato e a festa litúrgica em seu nome ocorre no dia de sua morte, em 5 de dezembro.

Quem era, afinal, Nicolau Steno? O cientista ou o beato?

NIELS STENSEN, O SOBREVIVENTE

Nicolau Steno é uma latinização de seu nome dinamarquês, Niels Stensen. O pequeno Niels nasceu e foi batizado em Copenhagen em 1638. Era o filho do ourives que prestava serviços para o rei Cristiano IV da Dinamarca. O pequeno Niels, que era muito doente a ponto de não poder brincar com as outras crianças, cresceu numa família fervorosamente luterana. Na falta dos brinquedos, brincava com os objetos de ourives de seu pai.

O pequeno Niels, no entanto, era mais forte do que se supunha. Na escola que frequentou, mais de duzentas crianças morreram entre 1654-1655 por causa de uma peste. Contudo, Niels Stensen sobreviveu. E tomou interesse por estudar os corpos humanos. Seu interesse era a Anatomia.

A Anatomia era uma febre (!) na época. Aulas de Anatomia eram disputadas ferozmente pelos acadêmicos. Tudo fervilhava de curiosidade de conhecer melhor o corpo humano.  Aos 19 anos, Niels Stensen entrou para a universidade de Copenhagen, para estudar medicina. Em seus estudos acadêmicos, revelou-se um promissor anatomista. E Copenhagen começou a ficar pequena para seu talento.

NICOLAU STENO, ANATOMISTA

A partir daí, Niels Stensen passou a viajar. E nunca mais parou. Inicialmente, esteve em várias cidades da Europa, estudando anatomia. Em Amsterdam estudou com Gerard Blasius, que estava estudando o sistema linfático. Da mesma forma, em Amsterdam, Stensen também conheceu o filosofo e polidor de lentes Baruch de Spinoza. O que será que eles devem ter conversado?

O jovem estudante Niels Stensen era apaixonado pela filosofia de René Descartes. No entanto, mais tarde, ele renegou a teoria cartesiana. Muito cedo, Steno percebeu algumas contradições na obra do mestre. Descartes, por exemplo, afirmou que a glândula pineal era a sede da alma humana. Steno, com base em suas observações, mostrou que Descartes estava errado.

Steno descobriu, entre outras coisas, que existe um duto que leva saliva até a boca, os dutos parotídeos ou dutos de steno. Por outro lado, Steno descobriu também que o coração era um músculo. E que os cálculos eram pedras que se formam por acúmulo nos órgãos. Descobertas notáveis, por certo.

O CARTESIANO ANTI-DESCARTES

Um a um, Steno acabou por desmentir diversos postulados anatômicos de Descartes. Com o tempo, tornou-se violentamente anti-cartesiano, negando qualquer relação de suas descobertas com o pensamento do filosofo francês. Não obstante, com o perdão do trocadilho, pode-se dizer que Steno não descartou Descartes.

Efetivamente, ao apreciar a obra de Steno, percebe-se o quão cartesiano ele era.  Quando se vê o mundo de idéias construído por Steno, o que se vê é um universo mecanicista, tipicamente cartesiano. Por outro lado, neste universo stenoniano,  a matéria sólida e particulada se movimentava segundo leis físicas determinadas, como um grande mecanismo.  Logo, tudo se movia no universo de Steno de acordo com a filosofia de Descartes.

A “REPÚBLICA DAS LETRAS”

Em suas viagens Steno acabou por conhecer o seu conterrâneo Ole Borch, importante anatomista da época e um sábio relacionado com as Academias de Ciência que então surgiam. Esse movimento de acadêmicos de vários países em constante comunicação formaram o que se chamou de “República das Letras“.  Era o embrião do moderno sistema de academias e periódicos científicos que se formava. Não por acaso, muitos periódicos modernos ainda ostentam em seu nome a palavra “Letter“. Pois não eram mais que isso: cartas enviadas para as diferentes associações cientificas, que eram lidas nas sessões ordinárias destas academias e discutidas por seus membros.

Todavia, uma vez que Ole Borch, como membro destacado da Republica das Letras,  tinha muitas ligações com a Royal Society de Londres. Foi através de Borch que Steno teve contato com a teoria atomística de Robert Boyle. Esta foi outra das grandes inspirações de Steno. Por meio da leitura de Boyle e sua obra, Steno começa a se interessar por uma Ciência que ainda não existia, a Geologia. Foi neste ponto de sua carreira que ele foi convidado por Ferdinando II, Grão-Duque da Toscana, a ser o anatomista da corte. Em Firenze, sua vida iria mudar. De novo.

Lá, Nicolau Steno vai desfrutar do ambiente da Corte e, principalmente, dos sábios reunidos na “Academia Del Cimento“. Essa academia, fundada pelos Médici, reunia alguns dos mais importantes pensadores italianos da época. Steno torna-se amigo de Marcello Malpigui, Vicenzo Viviani, Francesco Redi, entre outros.

 PEDRAS EM FORMA DE LÍNGUA

Em 1666, um tubarão foi pescado na costa de Livorno. A cabeça deste tubarão foi enviada à Firenze para que Steno pudesse disseca-lo. Steno notou que os dentes do tubarão eram muito parecidos com as glossopetras. Estas glossopetras, as “Línguas de pedra”, eram fósseis muito comuns no mediterrâneo. Eram conhecidas desde os tempos romanos. Havia muito tempo que Outros sábios haviam reivindicado que as glossopetras eram dentes de tubarão. Entre eles, destaca-se Fábio Colonna. no entanto, a pericia anatômica de steno foi muito importante para que estes objetos fossem reconhecidos como restos de animais, ou no sentido moderno, fósseis.

tubarão glossopetras
Cabeça de tubarão estudada por Steno e as glossopetras

Em seguida, Nicolau Steno, de anatomista, passou a naturalista. Fez diversas viagens pela Toscana, onde juntou material para escrever sua grande obra. Aparentemente,  essa obra seria muito grande. Tão grande que Steno começou a escrever o principio, ou o “pródromo”. E assim surgiu uma das grandes obras da Ciência moderna.

PRÓDROMO DE UM SOLIDO CONTIDO EM OUTRO SOLIDO

No Pródromo, Steno procura explicar que haviam varias formas distintas de sólidos contidos nas rochas. Alguns destes sólidos eram fragmentos que eram depositados junto com as rochas, como os fósseis. Um sólido dentro de um solido. Assim ele justificava a existência de diversos materiais parecidos com organismos vivos encontrados nas rochas. como , por exemplo, as glossópetras.

Por outro lado , haviam substancias que cresciam no interior das rochas, os cristais. Steno propôs que os cristais de uma mesma especie teriam o mesmo ângulo entre as faces. E que os cristais poderiam crescer dentro das rochas. Um sólido, um outro sólido, dentro de outro solido. Com esta proposição, a moderna mineralogia começa a existir.

Além disso, Steno também propôs uma evolução geológica para as rochas da região da Toscana. Segundo se pode ler no pródromo, as rochas sofriam erosões internas, com intensos abatimentos de blocos. estes blocos abatidos eram ocupados por outras rochas, mais novas e assim por diante. Com isso, ele explicou diversas sucessões estratigráficas, alem de enunciar o principio de superposição de camadas que hoje leva o seu nome.

Steno
Assim Steno explicou os ciclos sedimentares que ele observou nos arredores de Firenze
PADRE STENO ? BISPO STENO?

No entanto, uma outra mudança se operava com Nicolau Steno. Influenciado por seus amigos da academia Del Cimento, Steno acabou por se converter ao catolicismo em 1671. Mais do que isso: praticamente abandonou seus estudos de Anatomia e Geologia e passou a dedicar-se aos estudos teológicos. Assim, em 1675 ordenou-se padre católico e em 1677, bispo.

Nicolau Steno, vestido como Bispo Católico

Movido pela religiosidade, no entanto, Steno devotou cada vez mais tempo para sua fé. Sua energia e seu entusiasmo o levaram a ser evangelizador católico no norte da Alemanha, uma terra ferrenhamente protestante. E foi isso que Steno foi em seus últimos anos de vida. Desta forma, andando de cidade em cidade, tentando converter as pessoas ao catolicismo romano, Steno empregou todas as suas forças. Adquiriu fama de santo.

UM MÁRTIR CATÓLICO

Steno trabalhou inicialmente em Hanover, onde conheceu Leibniz, de quem se tornou amigo. Depois, foi para a cidade de Schwerin. Lá, em meio hostil, Steno trabalhou incansavelmente. Contudo, sua saúde começou a fraquejar. Muito doente, acamado, Steno morreu em 5 de dezembro de 1686 cercado por seus paroquianos.

Sua fama de evangelizador foi intensa. Desta forma, o caráter de sua conversão do luteranismo para o catolicismo de um sábio destes porte o transformou num herói católico. por conta de um processo de beatificação que durou mais de 50 anos recolhendo provas, Steno foi beatificado pelo para João Paulo II em 1988.

BEATO  OU CIENTISTA?

A vida de Nicolau Steno, entretanto, nos deu mostras do intenso ambiente intelectual do

seculo XVII. Como filosofo natural (a palavra cientista ainda não existia), Steno fez algumas afirmações interessantes e duradouras. Contudo, haviam ainda um grande caminho pela frente. Nada do que disse ou escreveu mudou instantaneamente a historia da Ciência ou da humanidade. Por um lado, muitos filósofos naturais continuaram a obra de Steno, e foram elaborando as bases da nova Ciência que só foi surgir, afinal, no seculo XIX, a Geologia.

Por outro lado, Steno e sua conversão, sua vida de Beato, foram exemplos para muitas pessoas que tinham preocupações religiosas. Não foi à toa que seu processo de beatificação foi levado a efeito no século XX, um século tão esmagadoramente dominado pela Ciência. Como que para provar para nós todos que mesmo um grande cientista pode ter preocupações de natureza religiosa.

Sem dúvida, o método cartesiano do experimento e da dúvida foi o grande marco na vida de Steno. A dúvida fez com que ele fosse cada vez mais rigoroso em suas observações e seus experimentos, do lado cientifico. Entretanto, do lado religioso, a dúvida fez com ele ele perdesse sua fé e se iniciasse numa outra, numa fé nova. E isso não é trivial.

Santo ou cientista, contraditório e paradoxal, Nicolau Steno foi um baita ser humano.

para saber mais:

Yamada, T., 2009. Hooke–Steno relations reconsidered: Reassessing the roles of  Ole Borch and Robert Boyle. The revolution in geology from the renaissance to the enlightenment203, p.107.

Vai, G.B., 2009. The Scientific Revolution and Nicholas Steno’s twofold conversion. The Revolution in Geology from the Renaissance to the Enlightenment203, p.187.

Padre Kircher e as Brincadeiras da Natureza

Padre Athanasius Kircher (1602-1680)

Fazia um pouco de frio em Roma no dia em que padre Kircher morreu, aos 78 anos de idade, em 27 de novembro de 1680. O sol praticamente não apareceu, e um vento frio fazia a sensação térmica piorar. No entanto, a vida seguia normal. A missa foi cantada em todas as igrejas da Cidade Eterna no horário habitual. O comércio abriu normalmente. Enquanto isso, as pessoas circularam pela rua para seus negócios, compras e amores.

Fazia já alguns anos que padre Athanasius Kircher andava doente. Surdo, sem enxergar direito e com lapsos grandes de memória, ele raramente saia de sua cela. No entanto, ainda produzia: em carta daquele mesmo mês de novembro, provavelmente ditada por ele, padre Kircher se desculpava com seu interlocutor por causa de suas “mãos trêmulas”.

Com sua morte, desapareceu de cena uma das personalidades da cultura mais interessantes do século XVII. Isso não é pouco, num século que começa com Giordano Bruno, Galileu Galilei, René Descartes, Baruch Spinoza e vai até Isaac Newton, entre tantos outros.

SABIA TUDO E NÃO ENTENDEU NADA?

Padre Kircher comandou, a partir da Biblioteca do Vaticano, que ele dirigiu por mais de cinquenta anos, um dos maiores projetos culturais de que se tem notícia. Seus mais de quarenta livros e seus inventos abrangem praticamente todas as esferas do conhecimento, desde a Linguística até a Geologia, a Física e a Química. Ele foi, segundo a historiadora Paula Findlein, sua biógrafa, “o último homem que sabia de tudo” (deixe Jeff Bezos mais rico aqui).

Padre Kircher recebendo visitantes na Biblioteca Vaticana

Claro que tal ambição tem seu preço. Conhecer tudo significa conhecer um pouco de tudo. Apesar de ser um erudito no mais amplo sentido da palavra, Kircher cometia gafes e frequentemente fazia falsas interpretações. Quando leu o livro que padre Kircher escreveu tentando decifrar os hieróglifos egípcios, o também polímata Gotfried Leibniz (1646-1716) escreveu: “ele [Kircher] não entendeu nada!”.

Da mesma forma, o erudito inglês Johann Burkhardt Mencke (1674-1732) escreveu “De Charlataneria eruditorum” [A charlatanice dos eruditos], no qual faz uma imagem devastadora de Kircher. Sua caricatura de um charlatão escrevendo coisas estúpidas e sem sentido foi a imagem que ficou do Jesuíta para a posteridade.

No entanto, passado tanto tempo, cabe perguntar: quem foi padre Kircher? Qual o seu alcance e seu significado? Quais seus pressupostos e qual sua visão de mundo? Em anos recentes, apareceram uma série de livros e artigos revisitando e colocando sua vida e sua obra em perspectiva histórica. Um novo Kircher surgiu.

CONHECIMENTO SEM LIMITES

Athanasius Kircher nasceu em Geisa, na Alemanha, em 1602. Era o ultimo de nove filhos de uma família burguesa escolarizada. Segundo sua autobiografia, o jovem Athanasius era um “estúpido propenso a acidentes”. Fez seus estudos no Colégio jesuíta de Paderborn, de onde quase foi expulso por sua saúde fraca.  Quando finalmente se formou, em 1627, foi admitido na pretigiosa Companhia de Jesus. alem disso, foi ser professor de grego e siríaco em Heilingenstadt, onde seu pai também havia lecionado.

Fascinado pelo Oriente, Kircher pediu para ser enviado como missionário para a China, mas foi recusado pela sua Ordem. Logo a seguir, era ele teria que se mudar: a Alemanha estava sofrendo com a Guerra dos Trinta Anos, entre protestantes e católicos. O católico e jesuíta Kircher se refugiou em Avignon na França em 1632, fugindo das tropas protestantes do Rei Gustavo Adolfo da Suécia.

De lá, Kircher foi para Roma, onde ficou até o fim de sua vida. Na Cidade Eterna, construiu uma reputação de homem com muitos segredos e possuidor de textos secretos. Muitos não acreditavam nele, mas o padre Kircher parecia não se importar com isso. Passou a estudar, escrever e fabricar instrumentos os mais diversos.

Trabalhando na Biblioteca do Vaticano, padre Kircher foi logo conquistando seu espaço. Seus livros começaram a ficar famosos, e sua reputação ia aumentando. Padre Kircher escreveu sobre os hieróglifos egípcios, sobre o magnetismo, sobre ótica, sobre os subterrâneos terrestres, sobre a história de Roma. Sobre quase tudo.

É claro que muitos perceberam seus limites. Nicolas-Claude Fabri de Peiresc (1580-1637), filosofo e botânico francês e um dos eruditos mais influentes da época, logo entendeu que os talentos de Kircher eram limitados. No entanto, percebeu seu entusiasmo e energia e apoiou várias das iniciativas do jovem Jesuíta.

KIRCHER DESCE AO INTERIOR DA TERRA

Um dos livros mais famosos de Kircher foi o Mundus Subterraneus, de 1665. Nele, padre Kircher expõe sua visão de mundo, fortemente marcada pelo Neoplatonismo e pelo Hermetismo. Para ele,  Terra era uma só, um imenso organismo vivo, governada pelos elementos fogo e água.

todos os vulcões do mundo interconectados na visão de Padre Kircher no Mundus subterraneus (1665)

O fogo é representando pelo sol, pelo enxofre e por Hermes Trismegisto (o três vezes grande). É o fogo que vemos nos vulcões que Kircher representou como sendo um todo interconectado.  Para entender os vulcões, Kircher desceu á cratera do Vesúvio logo após uma erupção em 1638. Também realizou viagens de estudo para Creta, Malta e Sicília,

 

AS MONTANHAS DA LUA

A água, por sua vez, é representada pelos oceanos, rios e fontes, e também pela Lua. Estudando a origem dos grandes rios do planeta, Kircher conclui que estes estavam interconectados com as grandes cadeias de montanhas. O Nilo, o Danúbio, o Ganges e o Amazonas seriam formados por grandes lagos subterrâneos, localizados justamente nas grandes cadeias de montanhas. O Nilo nasceria no coração da Africa nas “Montanhas da Lua“. As tais montanhas não existiam, mas é uma prova de que Kircher sabia se aproveitar de relatos de viajantes e construir o seu próprio.  no seculo XIX não poucos viajantes europeus percorreram as nascentes do Nilo atras destas míticas montanhas. Para kircher, as fontes eram a conexão do interior com o exterior da Terra pela agua. Para ele, a união do sol masculino com a lua feminina realizada na terra dá ao planeta seu caráter “neutro”.

As nascentes do Amazonas em uma caverna subterrânea sob os Andes

Esta visão “holística” do planeta é uma das características da visão neoplatônica de Kircher. O resultado é esta aparente confusão barroca, que une o microcosmo e o macrocosmo, como se um fosse a extensão do outro. Para tanto, Kircher usa da metáfora, da alegoria e do simbolismo para mostrar os sinais da glória de Deus na natureza.

AS BRINCADEIRAS DA NATUREZA

A paleontologia de Kircher é uma das mais interessantes facetas de sua obra. Em seus luvros, contudo, Kircher distingue claramente os fósseis que “são produtos de petrificação de animais e conchas” de outros que são símbolos e alegorias. No primeiro time, estão as coquinas representadas no Mundus Subterraneus (figura abaixo). No outro, as pedras que reproduzem a face de uma garça, uma coruja, ou Nossa Senhora com o menino Jesus. Para Kircher, tais representação não tinham nenhuma causalidade. Eram somente “lusus naturae”, ou seja, brincadeiras da natureza.

As coquinas de Padre Kircher: prova de origem inorgânica dos fosseis

Entretanto, uma leitura apressada da obra de Kircher sugere para muitos somente um lunático (e ainda por cima Jesuíta!) que enxerga figuras absurdas impressas nas rochas. Da mesma forma outros pensavam no padre Jesuíta como um fanático reacionário que é contra a “visão correta” dos fósseis como restos de animais tal como conhecemos hoje. Entretanto, nenhuma destas visões enxerga Kircher como ele deve ter sido.

Kircher sabia que haviam fósseis formados por restos de animais. Durante suas viagens à Sicília, ele encontrou e representou no Mundus Subterraneus animais com aparência moderna achados nas rochas.

As outras indicações de “pedras figuradas” representam, para Kircher, uma interconexão entre micro e macrocosmo. Desta forma, dentro de sua visão de mundo, estas pedras eram as  provas da sabedoria de Deus. Para ele, a discussão sobre a origem organica ou inorgânica dos fosseis e das rochas que as continham não estava posta. A sua “pira” era outra.

as pedras “figuradas”, com significados simbólicos: garças, pombas, corujas e outras figuras
FUJA DA INQUISIÇÃO, PADRE KIRCHER!

Entretanto, a visão de mundo de Padre Kircher era posta constantemente em cheque pelos censores da Companhia de Jesus. Não era pra menos. Por causa de suas ideias neoplatônicas (e por sua defesa do Sistema Copernicano) Giordano Bruno havia morrido na fogueira em 1600, dois anos antes de Kircher nascer. Quando o jovem Kircher chegou à Itália, em 1632, o processo contra Galileu ainda corria, tendo grande publicidade.

Um padre que em seus livros citava Hermes Trismegisto, fazia experimentos alquímicos e construía instrumentos estranhos deve ter chamado atenção dos censores, como realmente chamou. Contudo,  Kircher soube contornar e aparar as arestas entre suas ideias do mundo natural com as demandas da inquisição. Não deve ter sido fácil.

A VIDA QUE SEGUE

Quando padre Kircher morreu, o dia estava frio e cinzento em Roma, mas não por causa dele. Enquanto isso, durante os mais de cinquenta anos que ele permaneceu ali na frente da Biblioteca do Vaticano, o mundo havia mudado muito. Agora, graças a uma notável rede de sábios e eruditos, a ciência moderna estava em franca expansão.

Neste período, o surgimento de novas sociedades cientificas, os primeiros journals, as correspondências de filósofos naturais por toda a Europa (e mesmo na América) haviam mudado o ponto da discussão.

Antes de tudo, o mundo quando Padre Kircher morreu era mais racionalista e mecanicista, baseado mais nas ideias de Descartes e Newton, entre tantos outros. Para isso, a nova ciência que surgia prescindiria de ideia de um Deus ou de qualquer explicação metafisica para fazer a natureza funcionar.  com isso, não havia mais espaço para o sobrenatural, para o maravilhoso e para o espanto. Sobretudo, não havia mais espaço para o padre Kircher.

Fazia frio e ventava no dia em que padre Kircher morreu, mas não por causa de alguma vontade divina. Fazia frio e chovia por causa das correntes de ar atmosférico sobre o Mediterrâneo. Enquanto isso, os pássaros no outono migravam para o sul. As placas  tectônicas seguiam se movimentando, podendo provocar terremotos ou erupções vulcânicas. As fontes seguiriam jorrando água.

No dia seguinte, uma missa foi rezada pela alma de um padre velhinho que morrera naquela noite fria.

SUGESTOES DE LEITURA

Findlen, P. (Ed.). (2004). Athanasius Kircher: the last man who knew everything. Routledge.

Gould, S. J. (2004). Father Athanasius on the isthmus of a middle state. Athanasius Kircher: The last man who knew everything, 201-237.

Quando a tragédia vira registro

Who has dressed you in strange clothes of sand?
Who has taken you far from my land?
Who has said that my sayings were wrong?
And who will say that I stayed much too long?
Clothes of sand have covered your face
Given you meaning, taken my place
Some make your way on down to sea
Something has taken you so far from me
Does it now seem worth all the color of skies?
To see the earth through painted eyes
To look through panes of shaded glass
See the stains of winter’s grass
Can you now return to from where you came?
Try to burn your changing name
Or with silver spoons and colored light
Will you worship moons in winter’s night?
Clothes of sand have covered your face
Given you meaning but taken my place
So make your way on down to the sea
Something has taken you so far from me

Clothes of sand, Nick Drake

 

De modo geral, o destino final das partículas sedimentares é o fundo de uma bacia sedimentar, que pode ser o fundo do mar, por exemplo… E neste processo lento e incessante cada ciclo de soerguimento transforma essas partículas e as coloca novamente para o “reinício” do ciclo. O ciclo mencionado aqui é o das rochas, que forma não só as sedimentares mas também ígneas (magmáticas, do magma dos vulcões) e metamórficas (transformadas por grandes pressões e temperaturas). A música de Nick Drake acima fala um pouco sobre este ciclo, você percebeu? 😆 (É uma das poucas músicas com conteúdo de geologia que conheço… )É este ciclo um dos grandes responsáveis pelas mudanças geográficas/geomorfológicas que vemos na Terra e que não ocorrem em Marte nem na Lua, por exemplo; a Lua de Dante Alighieri (1265-1321) é a igualzinha a que você vê hoje.

Voltando ao ciclo… são também partes dele (junto com a tectônica de placas e outros processos geológicos) que levam a grandes tragédias humanas. Terremotos têm seus mais antigos registros em documentos chineses (1177 a.C.)*, avisos sobre o perigo de tsunamis no Japão tem pelo menos 600 anos **, e atividades vulcânicas intensas já deixaram suas marcas por diversas vezes na história humana (veja no link as maiores tragédias associadas a esses eventos) ***.

Os fósseis, isto é, restos ou vestígios de vida ou de sua atividade, com mais de 11.000 anos, têm sua origem ligada ao ciclo das rochas. Em especial, as rochas sedimentares são as que normalmente contêm os fósseis. Isso porque o resto de um organismo também é transportado e depositado como uma partícula sedimentar. É um pedaço de vida que se une aos processos de formação da rocha sedimentar que, ao longo do tempo geológico se transforma em rocha. Em outros posts já comentamos que o tempo geológico é bastante distinto do tempo que percebemos como humanos. A pergunta que estamos tratando hoje é se todo resto ou vestígio de vida fica preservado… será??  Os fósseis que encontramos são na verdade a exceção à regra. A maioria dos organismos se decompõe; além disso, a formação do registro fossilífero é episódica. Grandes eventos como enchentes, tsunamis, vulcanismos, desmoronamentos é que preservam. Se pensarmos na história recente de desastres naturais no Brasil podemos dizer que há grandes chances da tragédia do Rio Doce (2015) e dos deslizamentos no interior do Rio de Janeiro (2011) formarem um registro fossilífero daqui a pelo menos 11.000 anos. Na nossa escala de tempo esses eventos são incomuns, mas na escala do tempo geológico eles ocorrem (não com periodicidade, mas com frequência); e por envolverem grandes áreas, enormes quantidades de sedimentos e pouco tempo, têm maiores chances de preservar. Enfim, são registros de eventos catastróficos que perfazem a maior parte do material de estudo dos paleontólogos e também dos geólogos que trabalham com rochas sedimentares.

Preciso salientar aqui que a ocupação desordenada da margem de rios e encostas, e no caso do Rio Doce, a represa de sedimentos, são ações antrópicas, e o homem é a primeira espécie a alterar o ambiente em larga escala. O que quero dizer é que os registros que temos são resultado de eventos naturais, e o registro fóssil do futuro será bem diferente. Vamos torcer para que existam paleontólogos até lá…!

 

Visite os links abaixo para maiores dados nas atividades geológicas citadas.

*http://pubs.usgs.gov/gip/earthq1/history.html

**http://historyofgeology.fieldofscience.com/2011/03/historic-tsunamis-in-japan.html

*** http://volcano.oregonstate.edu/deadliest-eruption

Escute aqui a música de Nick Drake na versão de Renato Russo