Megafauna brasileira: difícil de caçar ou dura de de mastigar?
O registro fóssil e arqueológico da América do Sul, e em especial o brasileiro, abriga um enigma capaz de deixar qualquer um atônito. Os primeiros seres humanos a botarem os pés aqui conviveram por ao menos um milênio (e provavelmente por bem mais tempo) com mastodontes, preguiças gigantes, cavalos, ursos, lhamas. O Cerrado de 10 mil anos atrás era o Serengeti 2.0. Essa montanha de proteína animal não está mais entre nós, mas não existe NENHUMA evidência firme de que os primeiros brasileiros tenham se aproveitado desse banquete móvel. NENHUM indício de caça à megafauna. Alguém pode me explicar o porquê?
Esse velho mistério me veio à cabeça novamente depois de entrevistar o paleontólogo Leonardo Santos Avilla, da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), sobre seu interessante trabalho com os mastodontes de Araxá (MG). Ele me contou que tomografias feitas no que sobrou de um desses primos extintos dos elefantes revelaram um corpo estranho que pode ser uma ponta de lança. A ferida cicatrizou, o que significa que o paquiderme (também conhecido como gonfotério) não morreu daquilo.
A identificação ainda não é definitiva, mas seria o PRIMEIRO caso indiscutível de ataque de seres humanos aos monstros do Pleistoceno no Brasil. Isso quer dizer que a gente tem dados mais seguros sobre LARVAS DE BESOURO comendo mastodontes (a vértebra acima é um indício da ação desses carniceiros nas carcaças) do que sobre gente comendo mastodontes.
Para colocar tudo isso em contexto, é bom lembrar que existem alguns dados sobre o uso da megafauna como recurso alimentar e matéria-prima em Monte Verde, no Chile, há 12.500 anos (de novo, são mastodontes) e um ou outro exemplo na Argentina e nos países andinos. De resto, a América do Sul conta com pouquíssimos indícios de que os primeiros habitantes do continente (também conhecidos como paleoíndios) tenham caçado esses grandes mamíferos.
Clovis? Que Clovis?
A coisa é ainda mais estranha porque, na América do Norte, a chamada cultura Clovis (aparentemente a mais antiga, e certamente a mais bem conhecida, dessa fase inicial do povoamento) parece ter subsistido quase exclusivamente à base de picanha de mamute. A famosa ponta de lança Clovis, lindamente trabalhada e com uma ranhura especial para ser presa ao cabo de madeira, parece ser uma tecnologia especialmente projetada para a caça de grandes mamíferos (e muitas foram encontradas em meio às costelas de proboscídeos).
E por aqui… bem, por aqui existe só um punhado de pontas de lança paleoíndias. A imensa maioria dos artefatos é bem tosca, de feitura “expedita”, como se diz (lindo jeito técnico de indicar que o troço foi feito nas coxas). Mais importante ainda, os padrões de subsistência em lugares como Lagoa Santa (MG), mais famoso centro de ocupação paleoíndia do Brasil, mostram foco bem maior na coleta e na captura de animais pequenos, como tatus, preás e lagartos. Quem diabos ia preferir teiú no espeto a um filezão de preguiça gigante?
Acho difícil que os paleoíndios brazucas simplesmente não tivessem habilidade técnica para produzir sua própria versão de Clovis. Será que lhes parecia mais vantajoso investir numa estratégia do tipo “menos riscos, retornos mais seguros”, dedicando-se a caças menores? Finalmente, há até quem sugira a existência de alguma forma de tabu alimentar (totêmico? Religioso? Higiênico?) em relação às grandes feras. (Foi o que Walter Neves, bioantropólogo da USP, sugeriu-me certa vez.)
É claro que novos achados, como os do próprio Avilla, podem modificar esse quadro, embora eu duvide. Será que estamos falando só de um problema de tafonomia, ou seja, de preservação dos restos caçados, que teriam sumido ou se decomposto? Tá, mas para o continente inteiro? Improvável. Se alguém tiver uma luz por aí, pelamordeDeus me avise — ou um escreva um paper.
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PS – Pois é, depois de um hiato vergonhoso, estou de volta. Pra valer, espero.
Peitões da Idade da Pedra
Algumas coisas nunca saem de moda. Quem reclama da onda das mulheres-fruta talvez se console com o fato de que a preferência por moças, digamos, avantajadas já existia há 40 mil anos, a julgar pela estatueta de uma “Vênus gordinha” alemã, cuja descrição acaba de ser publicada na revista “Nature”.
Como explico na reportagem abaixo, que saiu nesta manhã no G1, trata-se da mais antiga escultura produzida por mãos humanas — e provavelmente também a mais antiga forma de arte figurativa, na qual há uma tentativa de reproduzir a realidade. (Por incrível que pareça, a arte abstrata é mais antiga; veja o post anterior.)
Mas é claro que a gente precisa qualificar um pouco a afirmação acima. “Reproduzir” qual realidade, cara-pálida? É muito difícil especular sobre a função de um objeto como a Vênus de 40 mil anos numa cultura desaparecida que não sabia escrever. Os arqueólogos não vão muito além de uma vaga proposta de “simbologia da fertilidade” (fora o fato óbvio de que havia uma argolinha no topo da estatueta, o que indica que ela provavelmente era portátil).
Mulher ideal?
Correndo o risco de especular além da conta, acho que dá para ir um pouco mais longe. Graças a outros achados um pouco mais recentes na mesma região, a Suábia (sudoeste da Alemanha), sabemos que os povos do Paleolítico Superior tinham uma capacidade de raciocínio abstrato e imaginativo comparável ao das populações tradicionais de hoje.
Eles também produziam, por exemplo, estatuetas teriantrópicas — seres humanos com características animais, como um homem com cabeça de leão, por exemplo. Pode ser que essa seja a representação de um xamã, ou seja, um mago-sacerdote que, segundo a crença de muitos caçadores-coletores, consegue transitar entre o mundo dos humanos, dos animais e dos espíritos.
Diante dessa capacidade conceitual complexa, acho bem pouco provável que a mulher-fruta do Paleolítico representasse de fato o ideal de beleza do período, o tipo de mulher que eles considerariam “gostosona”. Minha impressão é que ela está mais para uma alegoria do feminino — uma criatura com os traços sexuais tão exagerados que serve como uma representação abstrata do papel da mulher como reprodutora. Alguma outra ideia para interpretar essa figura? Estou aberto a sugestões. Confiram a reportagem a seguir.
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O pessoal não estava nem aí para a ditadura da magreza no Paleolítico, a julgar pelo físico cheinho (para dizer o mínimo) das mulheres representadas pelos artistas de 40 mil anos atrás. Essa é a idade do que parece ser a mais antiga escultura feita por mãos humanas, encontrada na Alemanha, e que retrata um corpo feminino de formas volumosas e estilizadas.
O achado foi descrito por Nicholas J. Conard, da Universidade de Tübingen, em artigo na edição desta semana da revista científica britânica “Nature”. Trata-se de mais um clássico golpe de sorte arqueológico: os caquinhos de marfim de mamute lanoso (seis pedaços no total) que compõem a figura foram encontrados, em parte, espalhados durante a escavação e, em parte, peneirados de sedimentos com a ajuda de água. A figura pequenina (veja a foto acima para ter uma ideia da escala) ainda está incompleta, mas Conard conseguiu remontar a estatueta com bom grau de segurança mesmo assim.
Não é a primeira vez que a caverna de Hohle Fels, na Suábia (sudoeste da Alemanha), deixa os arqueólogos de boca aberta. Em 2003, o próprio Conard, com outros colegas, tinha apresentado o que então eram as mais antigas esculturas do mundo — animais como cavalos e aves –, com idade estimada de 33 mil anos. Agora, eles parecem ter se superado
A mera antiguidade da estatueta é importante sem dúvida, embora haja algum grau de incerteza em relação à datação, que foi feita por materiais orgânicos — carvão, por exemplo — associados ao objeto. O que realmente intriga qualquer um são as características da obra, que antecipam em até 10 mil anos uma “mania” dos artistas do Paleolítico Superior, a produção de pequenas “Vênus gordinhas”.
Excesso de gostosura
Em comum com essas obras bem posteriores, a “Vênus de Hohle Fels” tem as características sexuais muito exageradas, como o busto volumoso “escapando” das mãos, a barriga nem um pouco sarada e a ênfase na vagina — o escultor primitivo se deu ao trabalho de representar até os grandes lábios da vulva.
Por outro lado, fora a óbvia espessura, os membros não têm muitos detalhes, e a figura praticamente não conta com uma cabeça — ela parece ter sido transformada num simples anel com buraco, o que leva o arqueólogo alemão a sugerir que a estatueta era carregada. Como um amuleto, talvez?
Essa é a grande questão. Muitas teorias sobre a arte do Paleolítico apostam que as “Vênus gordinhas” são “ídolos de fertilidade”, formas de cultuar a figura feminina exagerando seus atributos sexuais. Como os caçadores-coletores da Idade do Gelo não sabiam escrever — embora, sendo humanos anatomicamente modernos, certamente fossem capazes de falar –, a ideia provavelmente continuará sendo apenas um palpite bem formulado.
Lançando luz sobre artefatos do passado
Pouca gente (fora cientistas, claro; bom, às vezes nem eles…) tem estômago pra ficar pensando em metodologia e ferramentas técnicas diante de uma descoberta realmente sensacional. Mas nunca é demais lembrar que, sem essas coisas aparentemente chatinhas, nenhuma boa descoberta acontece, fora raros golpes de sorte. Por isso, como parte da nossa blogagem coletiva sobre luz, resolvi abordar rapidamente um dos métodos de datação mais legais e pouco conhecidos em arqueologia (e outras ciência do “tempo profundo”, claro): a termoluminescência.
Essa técnica, junto com sua “irmã gêmea”, a datação óptica, quebra um galhão em contextos nos quais o arqueólogo ou paleoantropólogo dá o azar de não ter à mão matéria orgânica para datar. E, sem matéria orgânica — carvão, osso, conchas etc. –, adeus possibilidade de usar o tradicional método do carbono-14, o qual depende, claro, da presença dessa forma instável do elemento carbono em matéria anteriormente viva. (Aliás, nota mental: explicar a metodologia do carbono-14 em post futuro.)
Portanto, sem restos desse tipo (imaginemos que você só achou ferramentas de pedra), o que o sujeito faz? Senta e chora? Não, graças à termoluminescência. Se houver indícios de que essas ferramentas foram jogadas numa fogueira, ou passaram um tempo de baixo do sol quente, ou se as amostras a datar são representadas por utensílios de cerâmica, nem tudo está perdido.
O que acontece é que minerais como os que compõem uma ponta de lança ou um vaso tupi possuem uma estrutura microscópica de cristal. Isso sugere que essa estrutura é ordenadíssima, e pode ser mesmo, mas volta e meia aparecem impurezas e imperfeições cuja ação funciona como “armadilhas” para os elétrons do cristal. Com o passar do tempo, aumenta a quantidade de elétrons aprisionados nessas armadilhas microscópicas.
Acontece que, quando um objeto é submetido a calor ou luz intensos, essas armadilhas são “zeradas” e os elétrons voltam para onde deveriam estar na estrutura cristalina, liberando fótons — isso mesmo, partículas de luz. Portanto, quando o vaso de cerâmica foi produzido originalmente, ou quando as ferramentas caíram no fogo do acampamento, é como se seu relógio tivesse zerado, criando, portanto, um período inicial a partir do qual determinar a idade do objeto. (É o equivalente da morte no caso do carbono-14: quando alguém morre, seu organismo cessa de absorver carbono-14, tendo, portanto, uma proporção fixa do elemento, que daí pra frente só diminui.)
Pois bem: em laboratório, basta esquentar a amostra ou iluminá-la com força e observar a energia luminosa que vem do objeto — no caso da datação óptica, luz ultravioleta. A quantidade de fótons é correspondente à quantidade de elétrons antes aprisionados, que corresponde, por sua vez, à idade do objeto. O limite da técnica é de 230 mil anos — bem melhor que os cerca de 50 mil anos do carbono-14.
Objetos como a mais antiga forma de arte humana — o bloco de pedra de Blombos, na África do Sul, com 77 mil anos (abaixo) — foram datados com ajuda dessa técnica.
Agora com équio!
Uma nota alucinadamente rápida para avisar que o Chapéu, Chicote e Carbono-14 agora já tem RSS, graças aos magos da programação do ScienceBlogs! Ficarei contente e lisonjeado caso os nobres leitores queiram assinar o meu feed, simplesmente clicando na barra onde se lê “RSS” aqui em cima. Voltamos em breve com mais programação normal.
Em uma caverna na Indonésia vivia um hobbit
É por essas e outras que a paleoantropologia e a arqueologia são tão fascinantes: ninguém se entende. Ou, ao menos, tem alguns pontos a respeito dos quais ninguém se entende. É o caso do hobbit da ilha de Flores, na Indonésia — que para alguns é o hominídeo Homo floresiensis e, para outros, não passa de um ser humano moderno com 18 mil anos de idade e portador de uma forma severa de deficiência física e mental. Muitos defendem o status da criaturinha como uma espécie separada de hominídeo, mas há uma minoria um bocado barulhenta de especialistas que “lê” as características primitivas de seu esqueleto como, na verdade, sinais de microcefalia ou outra síndrome igualmente brava.
A imagem acima é do pezinho do LB1, o principal exemplar de hobbit (na verdade uma hobbit; seria a célebre Lobélia Sacola-Bolseiro?), objeto de uma análise detalhada na edição de hoje da revista “Nature”. Escrevi sobre isso para o G1 hoje. Confira a reportagem abaixo.
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É um novo capítulo na saga do hobbit, e não estamos falando de Frodo, do clássico “O senhor dos anéis”. Duas análises publicadas hoje na prestigiosa revista científica “Nature” reforçam a tese de que o hobbit em questão, cujos restos de 18 mil anos de idade foram achados na ilha indonésia de Flores, é mesmo uma espécie bizarramente única de hominídeo (grupo a que pertencem os parentes primitivos do homem e os próprios seres humanos). E, a julgar pelos pés da criaturinha de 1,10 m de altura, ele pode ter sido um hominídeo ainda mais primitivo e estranho do que imaginávamos.
A polêmica nunca se afastou muito da misteriosa criatura desde que um grupo de pesquisadores indonésios e australianos anunciaram sua existência para o mundo em 2004, também nas páginas da “Nature”. O hominídeo foi batizado como Homo floresiensis e, por causa de características específicas de seu crânio e esqueleto, foi considerado um descendente do Homo erectus, que já habitava o Sudeste Asiático há cerca de 1,7 milhão de anos.
A ideia é que alguns H. erectus teriam ficado isolados em Flores e simplesmente encolhido — um fenômeno que, por incrível que pareça, é comum com mamíferos isolados em ilhas. (Para efeito de comparação, elefantinhos extintos das ilhas europeias de Sicília e Malta chegavam, quando adultos, ao tamanho de um filhote de elefante africano de hoje.)
O problema é, que desde então, outros pesquisadores contestaram o status do hobbit, afirmando que se trataria apenas de um humano moderno com deficiências físicas e presumivelmente mentais, por conta do crânio e cérebro diminutos. Os críticos argumentavam que o cérebro de um hominídeo jamais encolheria tanto assim, mesmo preso numa ilha, onde o órgão diminui pela falta de ameaças e predadores.
As análises de hoje, porém, mostram que o hobbit, seja lá quem ele for, talvez seja realmente uma espécie bizarra e primitiva, diferente da nossa. A equipe liderada por William Jungers, da Universidade de Stony Brook (EUA), fez uma análise anatômica detalhada dos pezinhos do principal exemplar hobbit, uma fêmea conhecida pelo código LB1.
O que acontece é que, embora o dedão da criatura tivesse a mesma posição do nosso, diferentemente do dos chimpanzés, o pé como um todo é um bocado comprido em termos relativos, em especial quando comparado com os ossos da perna. Trata-se de uma característica tão estranha que sugere que a criatura provavelmente não conseguia correr pelas mesmas distâncias ou com a mesma velocidade que um ser humano moderno.
Essa característica, ao lado de algum detalhes mais técnicos, é mais primitiva do que se vê entre os Homo erectus, o que pode indicar que o verdadeiro ancestral do Homo floresiensis é um hominídeo mais antigo que já tinha passado antes pela Ásia, sem deixar vestígios detectados até hoje. Por enquanto, os antropólogos não arriscam dizer quem seria esse ancestral.
Em outro artigo científico na mesma edição da “Nature”, Eleanor Weston e Adrian Lister, do Museu de História Natural de Londres, estudaram outros mamíferos fósseis que viviam em ilhas para entender a misteriosa redução cerebral do hobbit. As contas que eles fizeram mostram que outros animais, como hipopótamos e elefantes anões, passaram por reduções cerebrais compatíveis com as do hobbit ao viver ilhados. Resta saber se esse argumento calará os críticos.
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Jungers, W., Harcourt-Smith, W., Wunderlich, R., Tocheri, M., Larson, S., Sutikna, T., Due, R., & Morwood, M. (2009). The foot of Homo floresiensis Nature, 459 (7243), 81-84 DOI: 10.1038/nature07989
Weston, E., & Lister, A. (2009). Insular dwarfism in hippos and a model for brain size reduction in Homo floresiensis Nature, 459 (7243), 85-88 DOI: 10.1038/nature07922
Mais do mesmo
Você leu primeiro no ScienceBlogs Brasil — mas talvez queira ler de novo em mais profundidade 😉 Ainda sobre os efeitos (graças a Deus, psicossomáticos, ao menos por enquanto) do apocalipse porcino, minha coluna de hoje no G1, a famigerada Visões da Vida, aborda mais uma vez a relação entre domesticação de animais e surgimento de pandemias ao longo da história humana.
Para conferir, clique aqui.
Gripe suína: armas, germes e aço
Está difícil pensar em qualquer outra coisa que não seja o apocalipse porcino nesta semana (ainda mais trabalhando com jornalismo em tempo real. *Suspiro*.) Portanto, melhor usar a histeria (?) em favor de uma lição arqueológica importantíssima: como a domesticação de porcos e outros animais transformou a saúde das sociedades humanas. Em muitos casos, para pior — muito pior.
Colocando a coisa de forma um tanto resumida e simplificada, é quase certo que a nossa espécie só enfrenta doenças infecciosas de avanço rápido e potencialmente letais porque aprendeu a criar outros bichos em larga escala. Gripe (claro!), varíola, coqueluche, sarampo, cólera, difteria, tifo, tuberculose — antes do desenvolvimento de antibióticos e da medicina moderna em geral, dá para imaginar como essa listinha matava gente. Acontece que todas essas doenças começaram sua “carreira” como zoonoses, a julgar pela proximidade genética dos patógenos responsáveis por elas com vírus ou microrganismos carregados por animais domésticos.
A tese é um dos elementos proeminentes do já clássico livro “Armas, Germes e Aço”, do biogeógrafo americano Jared Diamond, da Universidade da Califórnia em Los Angeles — daí o título deste post. É só olhar para o processo que transformou javalis (como o simpático bicho da foto acima) em porquinhos domésticos para se dar conta de que a dinâmica epidemiológica virou do avesso por causa da domesticação.
Densidades, densidades
Primeiro, mal dá para comparar as densidades populacionais de humanos e bichos antes dos eventos de domesticação e depois dos eventos de domesticação. É verdade que mamíferos de grande porte como cavalos, javalis, ovinos e bovinos selvagens já viviam em bandos antes de virar criaturas de fazenda, mas raramente tantos bichos eram confinados em espaços tão pequenos quanto por obra e graça da ação humana.
E, claro, houve um feedback positivo entre população de animais domésticos e população humana. A quantidade de proteína animal (carne e leite), combustível (fezes), adubo (fezes again), matéria-prima (ossos) e agasalho (peles) disponível para criadores de grandes mamíferos é exponencialmente superior à que podia ser adquirida pelo melhor dos caçadores-coletores. Junte a isso a agricultura e você tem, claro, a possibilidade de sustentar muito mais gente no mesmo espaço de terra. Com sorte, esse excedente de gente, também graças aos bichos, fica até mais móvel, podendo se deslocar e colonizar novas terras no lombo de cavalos, bois, jumentos e búfalos.
Pare para pensar um instante em quão antinatural (do ponto de vista dos 6 milhões de anos de evolução humana) é essa situação dos últimos dez milênios. A chance de contato próximo com grandes mamíferos ou mesmo bandos de aves que os caçadores-coletores tinham era minúscula. Neguinho dava graças a todos os deuses se abatesse um bisão por mês. Só que agora você tem um monte de gente e um monte de bicho amontoado no mesmo assentamento — pessoas mexendo com esterco, carne, sangue, banha e sabe-se lá o que mais de vaquinhas, porquinhos e cabrinhas. (O “sabe-se lá o que mais” não é só pra efeito dramático. Em Papua-Nova Guiné, mulheres de certos tribos amamentam leitões órfãos. É, amamentam leitões.)
Esse cenário inédito não só facilitou a transmissão de doenças entre humanos e animais como também fez com que doenças infecciosas epidêmicas se tornassem autossustentáveis pela primeira vez. Se você é um caçador-coletor e tem o desprazer de ser infectado por um patógeno assassino oriundo, digamos, de macacos, tem o grande consolo de saber que sua tribo de 50 pessoas vai morrer inteirinha, ou ficar inteirinha imune, rapidão. E a doença muito provavelmente vai ficar por ali mesmo, porque aqueles 50 coitados raramente têm contato com outros grupos.
A coisa muda completamente de figura quando temos densas populações de criadores de animais e agricultores interligadas por rotas de comércio e interação extratribal constante. Agora até patógenos assassinos podem se beneficiar da massa crítica populacional para se espalhar por um ou mais continentes inteiros e fazer muito, muito estrago, coisa um bocado improvável de acontecer na era pré-domesticação.
Vencedores e vencidos
Diamond extrai uma conclusão interessante desse raciocínio todo. (Confira, aliás, o trecho da adaptação em documentário do livro dele no vídeo abaixo, o qual trata desse tema.) Quando invasores europeus pisaram nas Américas, na Polinésia e na Austrália pela primeira vez, quem morreu dizimado por varíola, gripe, sarampo e outros flagelos eurasiáticos foram os nativos. Não há nenhum caso de doença oriunda desses locais que tenha detonado os europeus.
Ora, nenhum desses povos domesticou animais em grande escala, com exceção das lhamas incas (as quais, aliás, são o único grande* mamífero domesticado das Américas). Diamond aponta que, junto com a menor densidade populacional, a falta de animais domésticos é a chave. Os europeus eram os herdeiros de um caldeirão de microrganismos transferidos por bichos, o qual matou tanta gente na Eurásia que acabou levando ao surgimento de imunidade entre os conquistadores — mas não entre os nativos.
Não dá para negar que a conclusão que a gente tira de tudo isso é um tanto sombria. Medidas modernas de higiene e monitoramento contínuo podem ajudar. Mas, se a história serve de guia, a criação intensiva de animais e o contato de seres humanos com eles ainda vai nos dar muitos sustos ligados a epidemias no futuro.
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* Como bem apontou um comentarista abaixo, os povos andinos também domesticaram o porquinho-da-índia. Além disso, quase todas as tribos americanas tinham cães, assim como muitas das polinésias. Nada, no entanto, que se compare em escala ou variedade aos mamíferos domesticados da Eurásia.
Vergonha alheia da Veja
Juro que eu gostaria de voltar a temas arqueológicos mais divertidos e agradáveis. Mas, até por uma questão de autoestima profissional, não dá para passar batido pela reação indiscutivelmente patética da revista Veja diante de um erro besta em sua última edição.
Meus honrados Sciblings Carlos Hotta e Rafael Soares já fizeram um ótimo trabalho descrevendo a escorregada aqui, aqui e aqui. (Para entender o caso, sugiro que você confira os posts exatamente na ordem acima.) Em resumo, o que acontece é que, num infográfico sobre a célebre dupla hélice do DNA, o pessoal da revista acabou representando os pares de nucleotídeos (os famosos A, T, C e G cuja aparição em trio contém o código para a fabricação de proteínas) como se eles fossem moléculas contínuas.
No entanto, o que realmente acontece é que os nucleotídeos interagem por meio de pontes de hidrogênio, que não são ligações moleculares no sentido estrito (como as que unem os átomos de hidrogênio e oxigênio na água, digamos). As pontes de hidrogênio são as mesmas interações que existem entre cada uma das moléculas de água num copo do líquido. Por isso, o certo é representá-las, como sempre se faz, com tracejadinhos ou coisa que o valha, simplesmente porque elas são mais fracas do que uma verdadeira ligação molecular.
Reação estapafúrdia
O mais maluco em relação a isso tudo é que, depois de um e-mail educado e respeitoso explicando o problema conceitual e sugerindo a correção, os caras me respondem (não a mim, quero dizer; estou só usando o pronome reflexivo com a função enfática, se é que você me entende) dizendo “desculpe, não somos uma revista científica, então podemos escrever com a bunda” (estou parafraseando um pouco aqui).
Oi? E um negócio chamado precisão? Eu até concordo que nem todo jornalista precisa nascer sabendo o que são pontes de hidrogênio. Simplificar as coisas é uma necessidade grande em muitos infográficos. Ok. Mas existe uma distância abissal entre simplificar e introduzir um erro no que você quer representar. A reação jornalística-padrão diante de um erro factual é simplesmente abaixar as orelhas e dar um Erramos. Não tem discussão.
Concordo com o Rafael quando ele diz que a reportagem até prestou um serviço interessante ao fugir da lengalenga do determinismo genético. Mas a falta de humildade na hora de reconhecer um erro factual é um sintoma muito preocupante de uma maneira de pensar. Por que diabos o jornalismo científico fica em categoria diferente de, por exemplo, o jornalismo político? Se alguém da Veja escrevesse “a primeira-dama Marcella” ou “o ministro Gilberto Mendes”, duvido que isso não virasse objeto de Erramos. Não se render a essa lógica óbvia denota uma arrogância e um apego às próprias certezas que não combina com bom jornalismo em lugar nenhum do mundo.
Alguém já disse que quem não é fiel nas pequenas coisas não será fiel nas grandes. Ficadica, Veja.
Carlos II, o Zicado
A vida de Carlos II, rei da Espanha morto em 1700, já foi descrita como uma mistura infeliz de infância prolongada além do normal e senilidade precoce. Apelidado por seus súditos de el Hechizado (“o Enfeitiçado”; pessoalmente, eu prefiro a tradução livre “o Zicado”), Carlos só aprendeu a falar aos quatro anos e começou a falar com oito. Relatos da época dão conta de que seus defeitos labiais o impediam de falar e comer direito. (As anomalias bucais são típicas da dinastia do monarca, os Habsburgos, mas aparecem de forma exagerada nele.) Sua cabeça era grande demais; ele sofria de fraqueza muscular, vômitos, impotência e/ou ejaculação precoce. De quem é a culpa? Do inbreeding, ou excesso de consanguinidade, ao longo de 200 anos de reinado dos Habsburgos na Espanha.
A poliesculhambose de Carlos II, acaba de mostrar um grupo de pesquisadores da Galícia na revista “PLoS One”, deriva do fato de que os Habsburgos, como forma de manter suas posses territoriais nas mãos da família, casarem com frequência estarrecedora entre parentes próximos. Por causa de gerações dessa prática, Carlos, o Zicado, que foi o último membro da dinastia na Espanha, era geneticamente equivalente a alguém gerado por um casamento entre pai e filha ou entre irmão e irmã. Confira minha reportagem completa sobre o tema em reportagem desta semana no G1.
Eu adoraria ver esse tipo de análise aplicado a outras dinastias cuja mania de se casar com parentes podia ser ainda mais extrema. Os Habsburgos, que curtiam uma união de prima com primo ou de tio com sobrinha, até que pegavam leve perto dos faraós ou dos Ptolomeus, os macedônios que tomaram conta do Egito da morte de Alexandre, o Grande até a conquista romana. Esses sujeitos costumavam casar irmão com irmã mesmo. Será que há uma correlação entre a decadência das dinastias faraônicas e o período prolongado de inbreeding?
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Em outra notícia arqueológica da semana, americanos identificaram ervas medicinais em amostras de vinho de 5.000 anos e também em outras mais recentes, de 1.500 anos, ambas obtidas no Egito. Já se sabia que a adição de condimentos era uma prática comum no vinho da Antiguidade, em parte porque as más condições de armazenamento transformavam a bebida num vinagre intragável depois de algum tempo.
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Alvarez, G., Ceballos, F., & Quinteiro, C. (2009). The Role of Inbreeding in the Extinction of a European Royal Dynasty PLoS ONE, 4 (4) DOI: 10.1371/journal.pone.0005174
Ruth de Aquino: enterrando a defunta
Com (muito) atraso, e antes de voltar à arqueologia e a coisas mais divertidas, vou meter rapidamente a minha colher no rolo envolvendo Ruth de Aquino, colunista da revista “Época”. Como sabe amplamente quem acompanha o ScienceBlogs, a moça causou uma reação calorosa da comunidade científica ao criticar o que considera o “besteirol” da pesquisa atual em um de seus textos.
Gostaria de ter podido comentar o affair lá no G1, onde trabalho. O fato de eu não ter feito isso levou até alguns amigos e colegas a achar que estava rolando algum tipo de censura; afinal, ambos os veículos pertencem às Organizações Globo. Na verdade, o que ocorreu é mais prosaico: não temos mais um espaço opinativo genérico no G1. (O Blog da Redação foi praticamente desativado para publicação de conteúdo original, porque não conta como audiência de jornalismo para o Ibope. Pois é.) Como seria absurdamente off-topic tratar do tema na minha coluna/blog, que versa sobre evolução, acabei deixando a coisa passar. Mas a liberdade aqui no ScienceBlogs me permite voltar ao tema.
A doença e os sintomas
Anyway: para ser sucinto, eu diria que Dona Ruth não é a doença, é apenas um sintoma dela. Não vejo problema nenhum em fazer humor com ciência e sou contra a tentativa de “sacralizar” o mundo científico. A ciência tem seus elementos de ridículo, assim como todo tipo de empreendimento humano. Também não se faz humor sendo equilibrado ou ponderado. Beleza. Mesmo assim, as coisas que a moça escreveu são preocupantes porque denotam um tipo de pensamento utilitarista e simplista que domina as grandes figuras do jornalismo brasileiro. É a “síndrome do pra quê serve”, batizada em homenagem a um ex-ombudsman da “Folha de S.Paulo” que sempre fazia essa pergunta em relação a reportagens de ciência.
Desculpe, Dona Ruth, mas não dá para fazer ciência pensando só no “pra quê serve”. Alguém já disse que, se os cientistas tivessem organizado um megaprojeto para tentar achar formas de curar o glaucoma, jamais teriam chegado… ao laser, que é o que realmente resolve o problema em cirurgias hoje. A pesquisa básica, por mais inútil que pareça, tem justamente a vantagem de abrir novas avenidas pro conhecimento. Nunca se sabe quando elas vão ser úteis, mas isso não é motivo para deixar de abri-las.
Outro problema sério: essa mania de ficar se esgoelando, dizendo que “o meu, o seu, o nosso” dinheirinho está sendo desperdiçado com estudos sobre a velocidade do pum dos pinguins. Na boa, achar que as pesquisas estilo IgNobel (muitas vezes legais e interessantes, por sinal) monopolizam o financiamento público à pesquisa é ser MUITO cego. Basta comparar o dinheiro que é destinado, em qualquer lugar do mundo, aos estudos sobre câncer com a verba para mapear a biodiversidade de insetos (grande exemplo de pesquisa “inútil”, dirão alguns) para ver que a pesquisa “útil” é desproporcionalmente financiada.
São essas distorções que todos nós, como comunicadores de ciência, temos de trabalhar para combater.