O sentido da vida

Uma acusação que freqüentemente aparece na boca de religiosos — e de outros apologistas de superstições da Idade do Bronze — é a de que o materialismo torna a vida humana “sem sentido”. Como todo argumento costumeiro, este é um onde o que realmente se diz se confunde com o que se parece dizer, por conta das camadas e nuances de significado que as palavras acumulam na cultura.

Materialismo, por exemplo: para quem nunca estudou ou se preocupou com filosofia, “materialismo” é a doutrina de que o bem supremo está na acumulação de bens materiais — dinheiro, jóias, jatinhos — por quaisquer meios disponíveis. Mais ou menos como alguns pastores evangélicos fazem hoje, ou a Igreja Católica fazia na Idade Média e no Renascimento, ou Madonna canta em Material Girl.

Para evitar essa confusão, o melhor termo seria “naturalismo”: a doutrina de que não existe
nada fora ou além da natureza. Ou, determinismo naturalista: a idéia de que tudo que há e ocorre no Universo em um dado instante é conseqüência, apenas e tão somente, do estado físico do Universo no instante anterior.

E por que essa visão de mundo — embasada em evidências sólidas e séculos de pesquisa científica — comprometeria o “sentido da vida”?

Como de costume, religiosos e místicos introduzem como premissa o próprio ponto que querem provar: a vida só faz sentido se existir um plano espiritual. Logo, se não há um plano espiritual, a vida não faz entido. Tão lógico quanto: eu quero um milhão de dólares. É necessário que eu receba tudo o que quero. Logo, dê-me um milhão de dólares.

Óquei, antes que me acusem de má vontade, vamos ver no quê um “plano espiritual” pode ajudar a vida a encontrar sentido. Pode ser porque esse “plano” coloca a vida humana em perspectiva, em relação a um Poder Superior. Então, o sentido da vida seria agradar a esse Poder, mais ou menos como o sentido da vida de um cachorro é agradar ao dono. Hmm. Thanks, but no, thanks.

Também pode ser por causa da vida eterna ou, no geral, de um “plano cósmico”: o sentido da vida no “plano material” se revela na conquista da vida eterna, ou na realização de um grande “plano cósmico”. Certo. Mas, então, qual o sentido da vida eterna? Ou do plano cósmico, por falar nisso? Esse “sentido da vida” não responde a nada, apenas adia a pergunta — a bem da verdade, chuta a bola no mato, torcendo pra ninguém encontrar.

No fim, qual o sentido de perguntar qual o sentido da vida? A evolução fez do homem um animal que busca dar sentido a tudo, mas talvez falar em “sentido da vida” seja um erro conceitual tão grande quanto perguntar, por exemplo, se o carrinho de cachorro-quente vai melhor com mostarda.

Cada vida ganha significados diversos, que podem ser escolhidos, conscientemente ou não, por quem a vive, ou atribuídos por quem a testemunha. Se você realmente quer que a sua vida tenha um, existe a opção de terceirizar a tarefa para o Grande Amigo Imaginário no Céu, o para o Grande Country Club (ou bordel, dependendo da sua religião) do Além. Mas será que isso resolve algo?

Discussão - 6 comentários

  1. Daniel disse:

    Não é incomum encontrarmos palavras que são usadas com um significado por filósofos e com um significado muito diferente pela população em geral ("metafísica" é um bom exemplo).Para filósofos, o materialismo é algo como a idéia de que tudo que existe pode ser explicado em termos de agrupamento de matéria (para ficaramos up to date com a Física moderna, seria melhor incluir aí os campos, como por exemplo, os campos eletromagnéticos). Assim, por exemplo, consciências (como a consciência humana) são produzidas por certos tipos bem específicos de agrupamento de matéria (que está nos neurônios e em toda a substância que constitui o nosso cérebro).Materialismo (ou, Naturalismo, se você prefere evitar confusão com o significado coloquial de "materialismo") não está relacionado com o determinismo. Muitos físicos, motivados pelas interpretações mais populares da Mecânica Quântica, rejeitam o determinismo. Na verdade, seria mais acurado considerar a questão do determinismo como um problema aberto na (Filosofia da) Ciência, já que existem propostas de interpretações determinísticas da Mecânica Quântica (a Mecânica de David Bohm, por exemplo).Em todo caso, não acho uma boa idéia você se comprometer com o determinismo, mesmo porque isso não tem nada a ver com o resto do post.

  2. Moc disse:

    Daniel, semanticamente acho que vc tem um bom ponto ao criticar meu uso de "determinismo", que é outra palavra carregada, mas note que eu estou me referindo ao determinsmo físico: a idéia de que apenas fenômenos físicos causam fenômenos físicos, ou de o futuro do universo depende apenas do passado do universo, e não de nada que venha "de fora". (Dando o devido crédito, roubei essa definição de seu xará Daniel Dennett).Isso pode ter algum peso na questão do livre arbítrio (que vai virar um post algum dia desses), e nem na questão da mecânica quântica -- mesmo se a ciência terminar por concluir (como tudo indica, até agora) que as "decisões" no campo subatômico são aleatórias e individualmente imprevisíveis -- embora passíveis de tratamento estatístico -- esse acaso ainda é físico. Ou: quem joga dados é o universo em si, não Deus.

  3. Daniel disse:

    Então o nosso (aparente) desacordo veio do fato que estávamos usando a palavra "determinismo" com significados diferentes.Claro, estou de acordo que mudanças de estado do universo possuem apenas causas de origem física (em oposição, por exemplo, a causas de origem mágica, ou algo do gênero).Mas pode não ser verdade que o estado do universo num dado instante determine o estado do universo nos instantes seguintes (a velha história Leibniziana de "uma inteligência suficientemente poderosa que conheça tudo a respeito do universo num dado instante conhece o destino do universo"); talvez o estado do universo num dado instante determine apenas uma distribuição de probabilidade no espaço de possíveis estados do universo nos instantes seguintes.

  4. Patola disse:

    moc, sobre o Daniel Dennett, é bom lembrar que ele mesmo trata o determinismo e livre-arbítrio como abstrações de níveis diferentes e, portanto, independentes um do outro (já leu "Freedom Evolves" dele?).

  5. Moc disse:

    Oi, Patola! Sim, li "Freedom Evolves"... e concordo com a conclusão geral dele, da irrelevância do determinismo para qualquer conceito de livre arbítrio que faça sentido.

  6. Patola disse:

    A propósito, algo importante de mencionar nesse contexto. Cosmogonias - ou como quer que queiram chamar as "visões de mundo" - atéias/materialistas interessantes também existem. Estou lendo um livro muito interessante do Neurocientista Keith E. Stanovich chamado "The Robot's Rebellion", onde ele pega muita coisa da psicologia evolutiva (com uma pesada crítica dela), os avanços mais recentes no descobrimento da nossa mente e cérebro e, lógico, a evolução em si para traçar uma cosmogonia completa.O livro é delicioso e bastante enriquecido. Não é à toa que seu subtítulo é "Finding meaning in the age of Darwin", e, apesar de eu estar em 1/3 do caminho, ele parece que vai cumprir boa parte dessa proposta. Aconselho!

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