Mas e os nazistas, Pol Pot, Mao…?

Já ouvi essa objeção, digamos, “moral” ao ateísmo tantas vezes que resolvi escrever um pouco a respeito. A idéia geral é de que a humanidade até que ia se virando razoavelmente bem, com um pogromzinho aqui, uma bruxinha queimada na estaca ali, uma cruzadinha acolá, até que o Iluminismo resolveu “matar Deus”, “dar asas à arrogância humana” e, pimba!, mergulhamos no relativismo niilista que nos levou diretamente aos campos de extermínio nazistas e aos campos de matança cambojanos.

Então tá.

Esse argumento costuma ser sacado em dois tipos de situação, defensiva (“tá vendo, a religião não é tão má assim, ateus também fazem merda”) e ofensiva (“na Idade Média não tinha atrocidades como no século 20”).

As duas modalidades, no entanto, pecam por ignorar um dado óbvio, que é a diferença de meios. Torquemada não tinha metralhadoras; e não consigo imaginar um argumento melhor para a separação entre Igreja e Estado do que a idéia de Urbano II, o papa que iniciou a febre das Cruzadas, de posse de um arsenal nuclear.

Aliás, o mundo secularizado do século 20 conseguiu evitar a esterilização atômica da Terra. Mas que tal pôr no lugar de Nikita Kruschev uma figura como o monge e enviado papal à cruzada contra os cátaros, Arnaud “Matem Todos, Deus Saberá Quais os Seus” Amalric, e ver o que acontece?

Descendo aos específicos, o mito do “nazismo ateu” é o mais fácil de eliminar. Simplesmente porque o nazismo não era ateu. Hilter era católico (nunca foi excomungado; a Igreja Católica chegou a baixar uma norma de excomunhão automática para comunistas, mas nunca se deu ao trabalho de fazer o mesmo com os nazistas, ora veja só), e todo o projeto do Holocausto já havia sido traçado por Martinho Lutero. O nazismo foi, sob esse aspecto, profundamente cristão – ecumênico, até.

Ok, e o Camboja? E a China? E…?

É preciso notar, de antemão, que pessoas que se envolvem em massacres e atrocidades em escala industrial geralmente acreditam estar fazendo a coisa certa. Ninguém (ou quase ninguém) acorda de manhã para se olhar no espelho e diz, “bom-dia, lindo assassino de criancinhas, amigão criminoso de guerra!”.

Torturadores, assassinos em massa, guardas de campo de extermínio acreditam que o que fazem é bom, justo e necessário. Acreditam contra todas as evidências. Em resumo, têm fé. Como já comentei numa postagem anterior, “fé” é o verdadeiro motor das atrocidades.

Sim, não é preciso que seja uma fé no sobrenatural; pode ser fé no rumo da História, no Destino Manifesto, no Grande Pássaro da Galáxia, no Guia dos Povos, ou em qualquer outra coisa.

Mas quem ensinou à humanidade que ter fé é uma virtude, é desejável, é sinal de caráter, foram os monoteísmos. Dessa culpa, dessa grande culpa, eles jamais se livrarão.

Discussão - 3 comentários

  1. Celso Renato disse:

    Gostaria de acrescentar mais algumas coisas a suas excelentes observações... Em primeiro lugar, muitos desses loucos do século XX que são apontados como ateus eram na verdade contra as religiões organizadas, talvez para evitarem concorrência, mas em suas vidas pessoais eram superticiosos e acreditavam em certas idéias místicas e sobrenaturais. Se não me engano, era Pol Pot que exigia dormir em travesseiros feitos de penas de ganso, e tinha um fundo místico nisso tudo... E penso que nenhum ateu acredita em algum fenômenos místico ou sobrenatural. No caso de Stálin, pelo que saiba, ele não matou em nome do ateísmo, mas em nome da manutenção de uma ditadura política. Em segundo lugar,supondo, eu disse supondo, que o nazismo e o stalinismo fossem realmente movimentos ateus (claro que a maioria dos carrascos de Hitler eram com certeza cristãos, mas vamos esquecer isso agora), além das limitações técnicas que você tão bem mencionou, eu sinceramente gostaria de saber de números. Porque se na conquista da América protestantes e católicos massacraram indígenas de norte a sul do continente, será que este número é inferior ao de judeus mortos na segunda guerra, ou de dissidentes políticos mortos nos Gulags na ex-URSS? E mesmo que sejam, digamos um milhão de índios(número bem inferior ao que acredito ser real)matar um milhão de pessoas é um crime menor do que matar seis milhões? E para fechar... Como Deus permitiu que se matasse em Seu nome? Estranho, muito estranho...

  2. Moc disse:

    Oi, Celso! Concordo que boa parte da oposição dos totalitarismos à religião organizada foi um caso simples de eliminação da concorrência -- afinal, dois mestres incontestáveis não podem existir ao mesmo tempo no mesmo lugar.Mas não sei se dá pra pôr todo o débito do genocídio indígena das Américas na conta do cristianismo. "Dilatar a fé" foi um fator, claro, mas não o único...

  3. Celso Renato disse:

    Olá Moc... Concordo que não se possa atribuir o genocídio americano somente a expansão da fé cristã... Mas acho que podemos afirmar que todos envolvidos em tal fato eram cristão, não ateus... Parabéns, o blog continua muito bom.

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