Relativismo radical

Muito, muito bom o Fear of Knowledge, de Paul Boghossian. Trata-se de um livro magrinho em que o filósofo se dedica a desmontar a tese de Richard Rorty, de que a realidade não é “representacionalmente independente” — isto é, de que não faz sentido falar em como as coisas “realmente são”, que só é possível falar em “como as coisas sao dentro de um determinado esquema de representação”.

Boghossian constrói meticulosamente o caso de que se não houver uma realidade “real”, cognoscível, na qual ancorar o conceito de “esquema de representação”, a proposta de Rorty é inviável: seria preciso ter um esquema de representação para representar o esquema de representção que representa o esquema de representção no qual há um esquema de representação que… (etc, etc, etc)… segundo o qual as coisas são de tal jeito.

A filosofia brasileira está mais ligada à chamada tradição européia “continental”, que tende a valorizar mais a retórica, o princípio de autoridade (Marx disse, Hegel disse, Fucault disse, Lacan disse…) e o politicamente correto que o jogo de argumentos. O que é uma pena: a tradição analítica, à qual Boghossian se filia, é muito mais rica e satisfatória, em minha humilde opinião de ignorante interessado.

Tu quoque, Lula

Alguém poderia, por favor, pedir pro Lula calar a boca? Óquei, sei que esse apelo já deve ter sido feito milhares de vezes antes, e por fontes muito mais credenciadas que este modesto blog, com suas míseras 500 visitas mensais (poucas, mas de qualidade, apresso-me em dizer) mas é que o presidente anda abusando muito de sua falácia favorita, tu quoque, ou, você também ou, ainda, a falácia da autoridade moral: a idéia de que quem comete um erro não pode apontá-lo nos outros.

Essa bobagem vem, como muitas outras, dos Evangelhos. No caso, o episódio da lapidação da mulher adúltera. Abre parêntese: curioso notar que em nenhum momento Jesus questiona a barbárie de se condenar uma mulher à morte, sob tortura, apenas por ter usado próprio corpo como quis… Fecha parêntese.

Assim como no precedente bíblico, a falácia lulista (que já tinha virado a favorita do Planalto no tempo do mensalão) confunde o fato em si com sua fonte. Ora, ou a mulher cometeu adultério, ou não; ou a lei mosaica exige o apedrejamento, ou não; no caso mais recente de invocação por S. Excia., ou o Brasil está irresponsavelmente reduzindo sua biodiversidade a pó de traque, ou não.

Quem faz a denúncia é muito pouco relevante. O que conta, ou deveria contar, são as evidências apresentadas.

Mas deve ser mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha que um político resolver discutir algo com base na evidência…

‘Free speech’ vs ‘Hate speech’

A polêmica sobre se as igrejas cristãs fundamentalistas deveriam ser proibidas de pregar contra o homossexualismo traz à tona uma série de problemas, que vão desde a revisão politicamente correta de textos clássicos (ei, o Levítico diz que homem com homem é “abominação aos olhos do Senhor”, algo tão pecaminoso quanto, por exemplo, comer ostras), até as questões de liberdade de culto, de pensamento e de expressão.

Como (quase) sempre, no entato, o dilema chega aqui depois de já ter sido debatido à exaustão lá fora: a formulação em inglês é “free speech does not include hate speech” (“liberdade de expressão não inclui a liberdade de expressar o ódio”). Mas será que não, mesmo?

Digo, dar às pessoas de quem discordamos o direito de falar é o preço que pagamos pelo nosso direito de falar. Se liberdade de expressão for só a liberdade de quem concorda comigo, trata-se de uma liberdade falsa. Exposta desse jeito, a questão vira ponto pacífico.

Mas, e quando chegamos às pessoas de quem discordamos radicalmente – nazistas, fascistas, homófobos, cristãos fundamentalistas, supremacistas islâmicos, judeus sionistas ultra-ortodoxos, comunistas stalinistas, produtores de poesia erótica pedófila – o direto deles deve ser preservado, também? Ou liberdade de expressão vale, sim, para quem discorda da gente, mas só para quem discorda da gente um pouquinho? Você é livre para ter seus costumes e sua cultura, mas não ponha os cotovelos na mesa, ou vamos mandá-lo comer no canil?

Pode-se argumentar que o discurso de ódio representa uma situação ultra-especial, já que é o tipo de discurso que tem conseqüências comprovadamente nefastas. A Suprema Corte dos EUA reconhece uma exceção à cláusula de liberdade de expressão da Primeira Emenda, que é a do caso de “perigo real e imediato”. O exemplo clássico é o de que “a liberdade de expressão não dá a ninguém o direito de gritar ‘fogo!’ num teatro lotado, a menos que realmente haja fogo”.

Será que o discurso de ódio traz esse tipo de perigo real e imediato? Falar contra o homossexualismo equivale a levantar um falso alarme de “fogo!” no teatro lotado da sociedade?

Eu diria que depende de como o discurso em si é formulado. Existe uma diferença entre gritar “fogo!” e consultar calmamente a pessoa na cadeira ao lado, para perguntar se ela também está sentindo cheiro de fumaça. Como existe uma diferença entre dizer que “relações homossexuais são pecaminosas à luz do capítulo 18 de Levítico” e “linchem o viadinho filho-da-puta”. A segunda frase já seria crime de qualquer jeito, por se tratar de instigação direta à violência. Não precisamos de mais uma lei para punir isso.

Sempre que surgem propostas de lei para suprimir um tipo de idéia ou expressão, eu me lembro de minha infância e adolescência no Brasil dos anos 70/80, ainda durante a ditadura militar.

Acho que nunca houve tantos jovens comunistas no Brasil quanto naquela época – até eu, confesso, tive uma camiseta do Che, um pôster de Marx e sonhava com o dia em que os empresários filhos-da-puta vendidos ao imperialismo internacional acabariam no paredón. Lembro que um amigo de meu pai, um cara conservador até a medula, contrabandeou para o Brasil um exemplar em espanhol do Livro Vermelho de Mao, só de sacanagem.

Resumindo, o proibido atrai. E o ódio proibido atrai muito, muito mais. Para fechar com um clichê, a luz do sol continua a ser o melhor desinfetante.

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