Conhecimento, para quê?

Perguntaram-me, em um comentário a uma postagem mais antiga, se, afinal de contas, inteligência é uma coisa que realmente vale a pena. Comecei a responder ao comentário dizendo que “inteligência” é um conceito meio amplo — pode se referir desde à principal estratégia evolucionária do Homo sapiens, ao discernimento para tomar decisões sábias, ao acúmulo de conhecimento e à aplicação tecnológica desse conhecimento. 

De tudo isso, pessoalmente só sou cético quanto ao valor evolucionário da “inteligência” entendida como aquilo que o cérebro humano faz e que é diferente de tudo aquilo que os cérebros das outras criaturas da Terra fazem. Minha explicação favorita para o Paradoxo de Fermi é a de que somos a única espécie inteligente da galáxia, mas não porque sejamos especiais, e sim porque a autoconsciência e a capacidade de conceptualização simplesmente são ineficientes demais, darwinianamente falando, para terem sido adotadas em outras biosferas.

Mas, bem: diante do fato consumado de que temos inteligência no sentido, digamos, biológico… Ciência e tecnologia são realmente o que de melhor podemos fazer com ela? A humanidade não era mais feliz em tempos mais ignorantes? Não deveríamos estar tentando responder às perguntas realmente importantes?

Respostas curtas: sim, não, importantes para quem, cara-pálida?

Começando pela pergunta número dois: a idealização do passado é, basicamente, um erro de foco. Talvez a melhor explicação disso tenha sido dada por Isaac Asimov, quando disse que todo mundo que acha que teria sido mais feliz na Atenas de Péricles, Sócrates e Sófocles sempre se imagina reclinado em liteiras, comendo azeitonas e queijo de cabra, ou discutindo filosofia na ágora… Mas não trabalhando até a morte como escravo nas minas de prata.

Generalizando: a vida melhor do passado não passa de uma versão altamente idealizada a vida da classe dominante do passado.

A faxineira cabeça-dura que bagunça meus livros toda vez que vem tirar pó aqui em casa me enche de saudades do tempo em que os mordomos falavam três línguas e sabiam organizar os clássicos gregos em ordem alfabética (grega) na estante, mas o fato é que, naquela época, provavelmente eu seria o tal mordomo. 

O que me traz à primeira pergunta: ciência e tecnologia são as duas forças mais democratizantes que existem. Mesmo que num primeiro momento o conhecimento pareça concentrar ainda mais o poder e a renda, no médio e longo prazo o que ele faz é disseminar oportunidades (permitindo, por exemplo, que ex-mordomos tenham blogs).

Por fim: importante, para quem?  Perguntas do tipo “qual o sentido da vida”, “existe uma razão para tanto sofrimento” ou “bacalhau vai melhor com vinho verde tinto, branco ou com um calamares rosé” são questões de foro íntimo, que não admitem, realmente, uma resposta do mesmo jeito que “qual a causa da gravidade” (o bóson de Higgs, espera-se)  admite.

A busca da iluminação é uma busca solitária, a ser empreendida por quem acha que esse tipo de coisa vale a pena. Ou, se você é o tipo de pessoa que prefere que lhe digam as coisas (em vez de descobri-las por conta própria), saia de casa e vire à esquerda: cedo ou tarde um templo, igreja ou terreiro vai aparecer no seu caminho para aliviá-lo de suas dores metafísicas (e da carteira também, temo).

Um exemplo final: Carlos V (1500-1558), rei da Espanha e imperador romano, um dos homens mais poderosos de todos os tempos – além de boa parte da Europa, dominava a maior parte das Américas – tinha gota. A doença o transformou num inválido, incapaz até de andar, e o levou a abdicar em 1556.

 

Também tenho gota. Mas tomo meu remédio, controlo a dieta e, graças a isso, sou capaz de desfrutar de longas caminhadas. Enfim, eu, que só sou rei para a minha gata siamesa (e olhe lá), vivo melhor do que o mestre e senhor de dois continentes vivia, 500 anos atrás.

Discussão - 4 comentários

  1. Carlos Hotta disse:

    Muito bom! Tenho um amigo que sempre prega que a Ciência nos tornou mais infelizes... pelo menos podemos aproveitar a infelicidade por mais tempo!

  2. Denis disse:

    Opa, eu acho que tem diferenças entre inteligências individuais e coletivas, raciocínio, e habilidades biológicas.
    Um amigo erudito sempre ficava pasmo por eu não ler livros, achava que eu preferia filmes e me condenava, e ainda me considerava A pessoa mais inteligente que ele conhecia.
    O que acontece é que ele que era muito inteligente, lera milhares de livros, mas ele não possuía raciocínio para lidar com toda a informação.
    Eu tenho raciocínio sem informação. Eu leio, mas nunca termino livros, odeio experiências e opiniões pessoais, elas influenciam as minhas próprias descobertas. E normalmente estão erradas.
    Tem gente que vive de compartilhar experiências, sabem muito dos outros sem nunca terem experimentado. Conhecimento coletivo. Isso vemos muito em todo lugar, igrejas, escolas.
    E tem gente com tantas outras habilidades que superam uns aos outros, como música, matemática, agilidade física, persuasão. São experts em umas coisas e leigos em outras, e não conseguem aprender essas outras.
    Certamente conhecimento é importante, mas sem lógica, é só informação.

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