Metafísica e ortografia

Sempre impliquei um pouco com a idéia, relativamente comum mesmo entre cientistas, de que a compreensibilidade da natureza — isto é, o fato de que é possível, por meio de observações, descobrir leis naturais, elaborar teorias, prever o comportamento futuro do mundo — seria um “dogma metafísico” da ciência. Ou, em outras palavras: que é algo que é preciso aceitar “por fé”, sem justificativa, algo tão arbitrário quanto, digamos, acreditar em deus. 
Minha implicância vem do fato, que a mim me parece óbvio, de que, embora a pressuposição de que o universo é inteligível seja, mesmo, necessária para dar início à atividade científica, essa pressuposição não é mais dogmática que, digamos, a existência do éter luminífero ou do flogísitico: uma idéia útil, um ponto de partida conveniente mas que pode, eventualmente, vir a ser descartado.
Se for descartado a ciência acaba, mas e daí? Talvez a última descoberta científica seja a de que a ciência, a partir de um certo ponto, é impossível.  Frustrante, sem dúvida, mas perfeitamente concebível (embora muito pouco plausível).
O fato é que a inteligibilidade do mundo vem se confirmando. Ao pressupô-la, o cientista é como o homem que, andando numa noite escura e aproximando-se do lugar onde sabe que há um abismo, diz a si mesmo: “Suponho que há uma ponte à frente”. Ele pode até dar o primeiro passo sobre a ponte como um ato de fé; mas se ela não estiver ali, ele vai cair. O fato de a ciência não ter caído (ainda) no caos permite supor que a ponte se estende ainda por alguns metros adiante. Dado o primeiro passo, os seguintes não são sustentados por fé ou por dogma, e sim por um piso muito concreto.
No entanto, nos debates em torno do tema, sempre me vi incapaz de oferecer um exemplo que convencesse os defensores da idéia de que a ciência tem base dogmática de que seria possível detectar “o fim da ciência”. Será que o dogma simplesmente não impeliria os cientistas cada vez mais á frente, levando à criação de teorias cada vez mais malucas e cada vez menos eficientes, a impor regularidades baseadas em wishful thinking e leis imaginárias ao caos?
Bom, achei o exemplo de ciência impossível: a reforma ortográfica da língua portuguesa!
Ortografia não é uma ciência mas, em teoria, poderia ser um modelo de objeto de estudo: um conjunto de algoritmos que permite escrever palavras dentro da norma culta da língua. Cientificamente — por observação, dedução, formulação e teste de hipóteses — deveria ser possível descobrir esses algoritmos, como um cientista descobre as leis da natureza.
O fato, no entanto, é que o aparente algoritmo ortográfico é uma ilusão: ele funciona até certo ponto, e em seguida se perde em exceções, dúvidas, no gosto pessoal dos autores. Microonda virou micro-onda porque o pseudo-algoritmo diz que o hífen deve separra duas vogais iguais no encontro de prexifo (micro) e raiz (onda). Mas preexistir não vira pre-existir, continua como era.
Enfim: o Universo poderia ser como a nova ortografia do português: a conservação da energia poderia ser tão arbitrária como micro-ondas e peexistir. Mas não é. 
Pelo menos, não até onde sabemos…

Discussão - 10 comentários

  1. Lucas disse:

    Gostei da metáfora da ponte. O começo é de concreto, mas como tudo está escuro não dá pra saber se vai cair no abismo depois de 10 passos. Sou agnóstico, não tem jeito.

  2. Carlos Hotta disse:

    Isso é algo que muitas pessoas anticiência não entendem: leis da física não são como leis da ortografia!
    Não existe nada que sugira algo como tal lei da física funciona a não ser ao redor do cara que multiplica o pão... ou existe? (singularidades?)

  3. Não há dúvida de que o universo é inteligível, não há dúvida. Mas o que os críticos da ciência querem dizer é que tal inteligibilidade não dá conta do conceito total de universo. Afinal, o que é isso? Os buracos negros e os quarks? Essa explicação máxima, completa, final, é uma crença, um dogma. O cientista crê nela porque ela o move adiante e dá sentido ao seu trabalho; do mesmo modo que a idéia de Deus impulsiona o crente a querer ser melhor do que era.
    Afinal, qual é o referente do termo "universo"?
    Por outro lado, se a ciência abdica da pretensão de "explicar" os fenômenos com os quais trabalha, o que lhe resta como motor normativo? Assim, ela deixa de fornecer uma explicação, um sentido, para as coisas, pois tudo é perda eminente sobre ganho provisório.

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