O caso Eluana

Casos como o da italiana Eluana Englaro ilustram bem os problemas da idéia dos “magistérios separados” para religião e ciência, defendida por Stephen Jay Gould ou pelo brasileiro Newton Freire-Maia. Segundo essa visão, as questões mais profundas sobre vida e ética seriam adjudicadas à religião.
Mas, e quando os ditames religiosos contrariam a compreensão científica dos fatos — o fato, por exemplo, de que Eluana está efetivamente morta há 17 anos — em que a decisão deve e basear?
A questão é especialmente dolorosa porque a ciência é — e assume-se — como uma fonte de conclusões falíveis. Já a religião se vende como fonte de verdades infalíveis. A alternativa é entre uma dúvida real e sincera e uma falsa certeza hipócrita, e nem sempre é fácil, principalmente quando se tem um grande investimento emocional na questão, escolher um lado.
O problema agrava-se quando notamos que a ciência não é, não pode ser, uma alternativa ao papel normativo das religiões. A pessoa que deixa de “terceirizar” sua consciência ética para algum algoritmo definido em catecismo não pode, simplesmente, passar a descarregar o peso de suas responsabilidades morais sobre a ciência. Ela tem de assumir o peso total para si, contando com a ciência apenas como uma fonte de dados para informar suas decisões.
É algo que requer muita coragem, e aparentemente foi o que o pai de Eluana fez. E esse talvez seja o aspecto mais asustador para quem encara o ateísmo e suas implicações pela primeira vez: se não há uma providência, se não há uma consciência maior garantindo que todas as merdas do mundo no fim servirão de adubo para um jardim de delícias, então cada um de nós só pode contar consigo mesmo e com a humanidade em geral. E cada um de nós, e mesmo a humanidade como um todo, sempre podemos estar errados.

Discussão - 4 comentários

  1. João Carlos disse:

    Daí a "facilidade" em adotar "fundamentalismos": os "Livros Sagrados" viram "manual de instruções" (em caso de dúvida, procure um especialista — leia-se "sacerdote").
    E, por isso mesmo, a constatação de que a ciência jamais poderá ocupar o lugar da religião: a ciência tem questões e dúvidas; as religiões são cheias de "certezas" (por mais estapafúrdias que sejam).
    Pouquíssimos "religiosos" conseguem conviver com a idéia de um "Deus" (ou equivalente) totalmente indiferente às questões individuais.

  2. Luciene disse:

    eu passei por algo parecido, minha mãe morreu, mas não nos falavamos a decadas. eu tive que arcar com responsabilidades legais e financeiras para o sepultamento, porque sou parente.
    não parece importar a individualidade da pessoa nesse caso. que escolhas ela e eu fizemos, e que consequencias levaram a sua morte.
    meu avô também, idoso, doente terminal de cama, suas escolhas foram a causa de sua doença. que responsabilidade eu tenho para sustenta-lo num quarto de hospital?
    se tais leis de obrigação de parentesco vem de origem emocional-religiosa, que a religião que a criou pague pelas dispesas. que a religião vá afagar meu avó.
    "você ingeriu gorduras, sal, açúcar, e alcool inconsequentemente, mas deus não quer que você sofra, ele tem uma missão pra ti quando morrer vai pro ceu", segurem a mão dele pelos próximos 4 meses.

  3. Anderson Bautz disse:

    Caramba... Adorei o texto! Me fez realmente pensar na discussão religião x ciência.
    Desde de antes de sair do armário ateu já tinha para comigo que somos os únicos responsáveis pelo que fazemos ou deixamos de fazer, e que é muito mais digno enfrentar as consequências de nossos atos sem empurrar pra cima (ou pra baixo!).
    Mas por muito tempo pensei que a ciência fosse a melhor substituta para a religião. Tem razão, a ciência NUNCA pode substituir a religião, pois deixa de ser ciência e vira... ora, ora, vejam só: religião!
    Mas bem... mesmo sendo a ciência apenas uma ferramenta, é a melhor que temos. E o que ela não pode ajudar muito, bem... é melhor a gente encarar de frente nossas responsabilidades e consequências de nossos atos...
    Obrigado pelo pensamento renovado, me fez ganhar o dia!

  4. Ulisses Adirt disse:

    HAHAHA
    "se não há uma providência, se não há uma consciência maior garantindo que todas as merdas do mundo no fim servirão de adubo para um jardim de delícias" foi uma definição perfeita. Melhor só o pessoal que chama Jesus Cristo de zumbi judeu.

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