Você acredita em qualia?

A discussão de uma postagem anterior, sobre a Desigualdade de Bell, fez surgir um comentário interessante: à minha peremptória afirmação de que uma árvore que cai na floresta faz barulho, mesmo sem ninguém para ouvir, o Osame contrapôs que, afinal, “barulho” é um efeito subjetivo — uma alteração no cérebro causada por ondas sonoras — e que, logo, não há “barulho”.
Acho que essa objeção pode ser contornada com uma visita ao Houaiss, que define “barulho”, na primeira acepção, como “som estrepitoso; rumor; estrondo”; ou seja, a palavra também se refere ao som em si (segunda acepção de “som”: “vibração que se propaga num meio elástico com uma frequência entre 20 e 20.000 Hz, capaz de ser percebida pelo ouvido humano”), não apenas à impressão no córtex auditivo.
Mas a questão levantada abre espaço para uma especulação diferente: você, leitor, acredita em qualia? (plural latino; singular, “quale”). Os (ou seria “as”?) qualia são, na forma como a palavra é usada por filósofos, o que há de irredutivelmente subjetivo numa experiência. São a resposta a questões como “o que é ver o vermelho?”, “o que é ‘doce’?” ou “qual a sensação de estar lendo isto?”
Não se trata, apenas, de dizer que existe uma distância entre descrição e experiência, mas uma afirmação sobre a natureza dos conteúdos mentais: seria impossível saber que o “vermelho” que você vê é o mesmo “vermelho” que eu vejo; seria impossível saber se a sensação gustativa a que eu atribuo o nome “doce” é a mesma a que você dá o mesmo nome. E assim por diante.
Criaturas desprovidas de qualia seriam, também no jargão filosófico, “zumbis”: perfeitamente capazes de se passar por seres humanos, mas que na verdade estariam apenas rodando algoritmos (“ao morder algo contendo moléculas do tipo açúcar numa concentração acima de x%, sorria e diga: ‘Hmmmm…. lá se vai minha dieta!’), mas vazios por dentro.
O status ontológico dos qualia — se são coisas “em si”, se são apenas uma metáfora útil ou meros construtos teóricos — no entanto, é uma questão disputada.
É possível, por exemplo, que sejamos todos “zumbis”, e que o que o que vemos como qualia sejam apenas o ruído das engrenagens dos algoritmos rodando. Que “ver a cor vermelho” não seja a sensação subjetiva de ter um certo tipo de atividade no córtex cerebral, mas sim que seja a própria atividade de certa parte do córtex cerebral.
Ou: se os eletrodos forem ligados aos neurônios corretos, todos vemos o vermelho da mesma forma.
Pessoalmente, sinto-me mais inclinado a encarar os qualia como o tiquetaque do relógio algorítmico do que como sinais inefáveis da presença de uma alma sensível. Muita gente acha que isso é um rebaixamento da experiência humana, mas discordo: a experiência, afinal, está aí, e não é melhor ou pior por causa do que pensamos dela. E os bons relógios tiquetaqueiam de um modo muito agradável.

Discussão - 7 comentários

  1. Cretinas,
    Acho que náo existem apenas duas opções:
    1. Materialismo fisicalista ingenuo onde:" "ver a cor vermelho" não seja a sensação subjetiva de ter um certo tipo de atividade no córtex cerebral, mas sim que seja a própria atividade de certa parte do córtex cerebral" - acho que existe uma incongruência em tentar uma equivalência lógico-formal entre afirmativas do tipo "eu vejo um cartão vermelho" e afirmativas do tipo "neuronios da região V2 disparam". São tipos linguísticos diferentes...
    2. Espiritualismo ingênuo: "sinais inefáveis da presença de uma alma sensível."
    Temos idéias intermediárias como emergentismo fraco, emergentismo forte, etc. Acho que nós físicos não entendemos direito o que é "informação" (que vem do conceito de "forma" Aristotélica como agente causal de algum tipo).
    Exemplo: Não acredito que o WordPress é simplesmente o tique-taque do clock do meu computador, acho que a questão do software (uma "alma" informacional que pode se "encarnar" em diversos hardwares, é constrangido mas não depende intrinsicamente do hardware) sinaliza que não se pode reduzir o antigo conceito de alma ao cérebro (assim como não podemos reduzir a idéia de software ao conceito de hardware).
    Então, os Qualia dependem mas não são apenas as correntes eletricas no cérebro, assim como o software é implementado mas não equivale logicamente às correntes eletricas do seu notebook.
    Tem que entrar a idéia de padrão informacional anti-entrópico, informação, não apenas sintática mas também semantica. Ou seja, assim como a solidez de uma pedra é uma ilusão (pois afinal, temos apenas paticulas, vazio e campos eletricos), os Qualia são uma ilusão, mas uma ilusão sólida como uma pedra...

  2. Quanto à definição de barulho, eu concordo com a definição que é um som subjetivamente intenso. O problema é o subjetivamente (pois a sensação subjetiva de intensidade, S, nãoé proporcional à intensidade física do som I, mas segue a Lei de Stevens:
    S = C I^m
    onde C é uma constante e m é o expoente de Stevens.
    Ou seja, como m http://en.wikipedia.org/wiki/Stevens'_power_law
    Ou seja, a Lei de Stevens fundamenta o carater irredutível dos Qualia...
    Seguindo o seu exemplo em uma situação mais clara (olfato), a árvore caiu e apodreceu, mas não existe nenhum organismo para sentir o cheiro dela. Mesmo assim, ela cheira podre? Ou o cheiro seria agradável para para organismos que gostam de alimentos podres?
    Se não existirem observadores, a carniça cheira mal? Emite moleculas (um monte delas, a maior parte não odorantes). O que define que uma molecula é odorante? Não é o fato de que ela pode se acoplar a um receptor olfatorio em uma celula sensorial (um observador?). Por definição, se não há observadores, os objetos em si não seriam inodoros?

  3. cretinas disse:

    Oi, Osame! Primeiro, quero agradecer por vc trazer ao debate um nível de sofisticação tão alto (sério; muitas vezes o senso de ironia se perde na internet, mas neste caso eu quero dizer exatamente o que está escrito). Eu tentando tratar do assunto à pincelada grossa e vc me vem com bico de pena... Minha impressão é a de que existe uma ruptura básica entre o dualismo de substancia (onde os fenômenos mentais seriam uma "outra coisa" metafísica) ou o dualismo cartesiano, e o materialismo; dentro do materialismo, como vc bem citou, há várias nuances, incluindo algumas que na prática parecem dualistas, como algumas versões baseadas em fenômenos emergentes. Creio que o estado atual da filosofia (e da ciência) ainda não permite muito tomar partido, mas eu tendo a achar que não existem "zumbis": qualquer sistema complexo o suficiente se passar por ser humano será algo tão consiente quanto um ser humano.

  4. cretinas disse:

    Desculpem as barbaridades sintático-ortográficas do comentário anterior. Estou no celular evo maldito ônibus dó chacoalha!!!

  5. Cretinas disse:

    Ah, sim, e quanto à carniça: ela não cheira "mal", porque "mal" implica juízo de valor -- mas as moléculas estão lá (aasim como as ondas sonoras, etc.)

  6. As moleculas estão lá, mas o cheiro não. As ondas sonoras estão lá, mas o "barulho" não. As ondas luminosas estão lá, mas as cores não.
    Não podemos nem classifica-las como moleculas odorantes, porque o que define se uma molecula é odorante é a existencia de algum recptor proteico emum organismo onde a molecula se encaixa e dispara um sinal informacional...

  7. Luciana disse:

    Eleonor Rosch realizou pesquisas com as cores e no livro Mente incorporada: ciências cognitivas e experiência humana fez uma revisão de literatura sobre as cores. A autora concluiu que "as cores não estão no mundo e precisam ser acessadas por nossa percepção e nem estão dentro de nós independente do mundo biológico e cultural". Ela refuta a idéia de que as cores são reflexos de superfícies, faz uma série de críticas dentre elas que as cores não são só atributo de superfícies mas tb de volumes e que especificar o que é uma superfície só faz sentido com relação a ao observador em questão.
    A autora fala de duas posições.
    Posição da galinha: o mundo tem propriedades pré-determinas que são anteriores a imagem moldada por nosso sistema cognitivo, cuja tarefa é recuperá-las adequadamente. (objetivismo)
    Posição do ovo: O sist. cognitivo projeta seu próprio mundo e a realidade é apenas o reflexo das leis internas. (idealismo)
    "Mas as cores são experenciais (só existem através da combinação interno/externo) e pertencem ao nosso mundo biológico e cultural compartilhado."
    na abordagem representacionista, o ponto de partida para compreender a percepção é recuperar as propriedades prédeterminadas do mundo.
    Na abordagem atuacionista "o ponto de partida é o estudo de como o observador pode orientar suas ações em uma situação local. considerando que estas situações locais mudam constantemente como resultado da atividade do observador, mas sua estrutura sensório motora (a forma como o SN une as superfícies sensório e motora). Assim a preocupação não é determinar como o mundo pode ser recuperado mas determinar os princípios comuns ou ligações regradas entre sistema sensorial e motor que explicam como a ação pode ser perceptivelmente orientada em um mundo dependente do observador."
    Acho que dizer o qualia existe é dizer que o as cores estão dentro de nós independente independente do mundo biológico e cultural é a visão dos representacionistas.

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