Um sonho de liberdade: pi a 2,7 trilhões de dígitos
Um programador de computadores francês, Fabrice Bellard, alega ter calculado o valor de pi com uma precisão de 2,7 trilhões de dígitos. Isso é cerca de 10 vezes o número de estrelas na Via-Láctea, ou mais de 20 vezes o número de seres humanos que já pisaram na Terra.
Pi, a razão entre o comprimento e o raio diâmetro de uma circunferência, é um número irracional e transcedental. Irracional, porque não existe uma fração, formada por dois números inteiros, capaz de expressá-lo (embora haja boas aproximações, como 355/113, precisa até a sétima casa decimal).
E transcedental não porque os autores da Bíblia o desconhecessem, mas porque não existe uma equação em números racionais capaz de produzi-lo — ao contrário do que ocorre com outro famoso número irracional, raiz quadrada de 2, que (obviamente) é a solução da equação x2=2.
A determinação do valor de pi até 2,7 trilhões de casas tem pouco valor prático (cerca de 40 casas bastam para calcular praticamente qualquer coisa com toda a precisão necessária para qualquer finalidade prática imaginável), mas é útil para testar computadores e novas técnicas matemáticas. Que mais? Ah, sim: é também uma ótima oportunidade para relembrar a implicação filosófica desse número.
Pi é um daqueles números quebrados com infinitas casas decimais. Até aí, nada demais: 1/3 é 0,333333333333333333…, por exemplo. A questão, no entanto, é que os números racionais que geram as chamadas dízimas periódicas (expressão que me faz pensar em um massacre que se repete de tempos em tempos) são, como o nome diz, periódicas: o período pode ser bem longo — a fração 1/83 tem um período de 41 dígitos, por exemplo — mas, cedo ou tarde, a expansão decimal começa a se repetir. É previsível.
Pi, não. Até hoje, ninguém foi capaz de achar um padrão nos dígitos desse número, nem mesmo algo do tipo, “depois do segundo 3 sempre aparece um 8”. Nada. Niente. Zilt. Zero. Bulhufas. A sequência de dígitos de pi é aleatória.
Mas, peraí. Como assim, aleatória? Pi é um número perfeitamente bem definido: a razão entre o comprimento e o raio diâmetro de uma circunferência. Além disso, há procedimentos para calculá-lo: algoritmos capazes de gerar a sequência (são algoritmos infintos, que têm de ser reexecutados indefinidamente, mas essa é outra história).
Então, resumindo: temos uma sequência de números que obedece a uma definição simples e clara, que é gerada por algoritmos determinísticos e que… é aleatória. A busca por um padrão em pi é antiga e até hoje não obteve sucesso.Talvez haja ciclos que se repetem a cada 10 trilhões de dígitos? Quem sabe?
Para mim, ao menos, esta é apenas mais uma prova de que processos determinísticos gerados por mecanismos simples podem produzir resultados imprevisíveis, como o quadrilionésimo dígito de pi. De algum modo, é verdade que o “n”-ésimo dígito já está codificado, implícito, no algoritmo. Mas, da mesma forma, é verdade que o único jeito de conhecer esse dígito é fazer todas as contas e chegar até ele. Não há como prevê-lo sem despender o esforço de obtê-lo. Mas aí, claro, já não se trata mais de previsão.
Nesse aspecto, pi talvez seja até mais “livre” que a maioria das pessoas.
Discussão - 8 comentários
ótimo texto!
haa, não sabia que os dígitos eram aleatórios...
Bom texto!
Você podia fazer um sobre o número de Euler ou a Constante de Apéry
É preciso enfatizar que conjectura-se (com boas evidencias) que PI não contem sequencias de simbolos proibidas, ao contrario de outros numeros trancendentais. Ou seja, digitalizado em zeros e uns, pí contem toda a informação de todos os universos possiveis.
Ou seja, PI é equivalente a uma Biblioteca de Babel Borgeana infinita (a biblioteca de Borges é finita). Isso seignifica que todos os pensamentos, escritos, filmes, musicas, poemas, posts, DNAs, fotos, padroes de todos os tipos, podem ser encontrados em alguma sequencia dentro de PI, bem como todas as suas variantes que vierem a ser produzidas ou nao.
Infelizmente, esses padroes sao como agulhas no palheiro (na verdade, bem pior que isso) e provavelmente nenhum deles se encontra nesses primeiros 3,7 trilhoes de casas decimais...
Um primor o seu texto!
Fantástico o post!
Lembrei agora de um livro maravilhoso que li há bastante tempo atrás. É o "The Joy of Pi", de David Blatner. Não sei se vc já leu. Se não, acho que vai gostar. É um livrinho de divulgação científica delicioso! Seu post é um ótimo complemento a ele!
Sempre que eu leio algo a respeito de um cálculo absurdo desses eu me pergunto se quem mediu o círculo estava usando uma régua boa mesmo, daquelas bem calibradas.
porcaria de pi porque existi isso