Arquivo diários:22 de maio de 2018

As glossopetras dão com a língua nos dentes

Olá! Nós somos as glossopetras!

um selfie de glossopetras, mostrando como algumas de nós são bem grandinhas…

Somos fósseis pequenos, de milímetros a decímetros de tamanho. Somos encontrados em abundância nas melhores camadas sedimentares próximas de você. No entanto, somos mais comuns em alguns lugares específicos do mar Mediterrâneo, de onde somos extraídas

em grande quantidade. Um dos lugares mais famosos de ocorrência de glossopetras é a Ilha de Malta.

O nome glossopetra é um nome greco-romano. Reparem: glossós, ou língua, é uma palavra grega. Língua em latim é língua mesmo. E petra é pedra em latim, como até as pedras sabem. Glossopetra, portanto, é um nome greco-romano, que significa Língua de Pedra. Porque parecíamos com pequenas línguas.

Nós somos conhecidas em praticamente todas as línguas e culturas do Velho Mundo.

AMULETOS PARA “SOLTAR” A LÍNGUA…

Para os romanos, nós, as línguas de pedra, éramos amuletos importantes. Segundo se acreditava, nós poderíamos fazer “desatar” a língua das pessoas. Poderíamos também fazer com que as pessoas confessassem os crimes os mais secretos. Da mesma forma, nos usavam também para tornar as pessoas mais subornáveis e colaborativas. Por outro lado, era tamanho nosso poder que alguns romanos mais desabusados usavam nós glossopetras para seduzir pessoas castas para os atos mais inconfessáveis!

No entanto, sábios com Plínio, o Velho, eram mais céticos. Segundo Plínio, os mágicos diziam que as glossopetras caiam dos céus durante os eclipses da Lua. Já imaginaram, uma chuva noturna de pequenas linguinhas de pedra? No entanto, segundo Plínio, isso parecia não ser verdade.  Assim como ele também não compartilhava a crença antiga que as glossopetras acalmavam os ventos.

Monddrache, o Dragão da Lua. Gravura antiga atribuídas pelo astrólogo, nigromante e alquimista Agripa de Netesheim

Além disso, algumas glossopetras maiores  (ver figura acima) eram também chamadas de línguas de dragão. Tinham cerca de dez centímetros de comprimento ou mais. Existia uma lenda, que vinha do cultura nórdica, que atribuía a diminuição da Lua em alguns momentos de seu ciclo à ação de um dragão, o Monddrache, o Dragão da Lua. Essas glossopetras maiores, quase da palma de uma mão humana,  eram chamados de Dentes do Dragão da Lua (Zähne der Monddrache).

SÃO PAULO E AS GLOSSOPETRAS
Selo comemorativo do naufrágio de São Paulo na ilha de Malta. Depois desse naufrágio, nós glossopetras passamos a símbolos do cristianismo…

Na ilha de Malta, onde somos abundantes, há a lenda de que São Paulo, ao naufragar na ilha, teria sido picado por uma víbora. O Santo não se fez de rogado, e atirou a serpente ao fogo. Como resultado, todos os dentes e olhos das cobras de Malta foram petrificados. Por isso, em alguns lugares, somos também chamadas de línguas de serpente. As serpentes que hoje existem na ilha de Malta não são venenosas, confirmando assim, empiricamente, a ação milagrosa do apostolo. Essa lenda também aparece na Irlanda, com São Patrício. Aqui nós já comentamos sobre Santa Hilda de Whithby e os amonites.

Há uma outra lenda, muito posterior, dizendo que São Paulo transformou a sua própria língua em pedra, com numerosas propriedades medicinais. Por outro lado, os cavaleiros Normandos, que conquistaram Malta em 1090 AD, logo se aproveitaram dessa lenda e logo vendiam para toda a Europa as famosas (e milagrosas!) línguas de São Paulo. Com muito lucro, diga-se.

UM PODEROSO ANTÍDOTO CONTRA QUASE TUDO
Natterbaum, ou “arvore das serpentes”, peça em prata sobredourada representando a genealogia de Cristo. Esta peça era usada como proteção para venenos. No centro em cima há uma enorme Língua de Dragão.

Existiram, também, diversas as aplicações medicinais das glossopetras. Durante a Idade Média, acreditava-se que nós, glossopetras, éramos poderosos antivenenos. Poderíamos detectar a presença de veneno mudando de cor ao sermos mergulhadas numa taça de vinho. Desta forma, éramos usadas como contraveneno de cobra, para acelerar o parto e como poderoso talismã na proteção contra bruxarias.

Durante a Renascença, o geografo holandês De Laet (1581-1649) enviou algumas glossopetras para serem usadas para males bucais. Entre os usos registrados estão a dor de dentes e para aliviar as dores da dentição em crianças.

Os usos das glossopetras como medicamento foi muito difundido. A “Terra de São Paulo” , como era conhecido o material contendo as glossopetras maltesas, era comercializada como remédio até fins do século XIX. Um vasto mercado, como diríamos hoje. No entanto, a ocorrência de falsificações levou muitos governos desde o século XVII a realizar verificações e autuações em materiais tidos como Terra de São Paulo.

Nós, glossopetras, poderíamos contar muitas mais histórias e lendas, meninxs.

DENTES DE TUBARÃO?

No entanto, temos que confessar uma coisa: somos, na realidade, dentes de tubarão. Sim, dentes de tubarão. Boa parte de nós glossopetras somos simplesmente dentes de tubarões lamniformes. Contudo, as maiores glossopetras são provenientes do gigantesco Charcharodon megalodon, uma espécie extinta de um tubarão gigante que viveu entre o Mioceno até o fim do Plioceno (para vocês humanos que não tem noção de tempo, significa um período entre 23,3 até 3,3 milhões de anos atrás).

Uma estimativa do tamanho provável do Charcharodon megalodon (cinza e vermelho) com o tubarão Baleia, o tubarão Branco e um ser humano;

Como foi que mudou a ideia de que nós éramos pedras singulares com poderes mágicos e medicinais e nos tornamos meramente dentes de grandes bestas pré-históricas? Esta discussão, por mais simples que pareça, está na base da moderna Geologia.

BRINCADEIRAS DA NATUREZA

vocês podem não acreditar, mas nem sempre os fósseis foram aceitos como hoje: restos de organismos preservados por algum processo. Durante o Renascimento, a utilização de alguns conceitos aristotélicos, como a petrificação, levou alguns  sábios a aceitar que os fosseis poderiam ser objetos gerados espontaneamente nas rochas. Seriam as “virtudes plasticas” defendidas, entre outros, pelo sabio veneziano Girolamo Fracastoro (1476-1553). Seriam meras “brincadeiras da natureza”.

Outros sábios, entretanto, achavam que os animais e plantas petrificados eram realmente restos de organismos. Entre estes estavam, por exemplo, o famoso medico modenesi Gabrielle Falllopio (1523-1562).  Mas quais organismos seriam esses? existiriam realmente ou eram seres já extintos? Isso levava a uma outra questão: se os seres eram extintos, era sinal que eram seres imperfeitos? Deus, por acaso, fazia coisas imperfeitas? Essa era a grande discussão das ciências naturais nestes período.

FABIO COLLONA E AS GLOSSOPETRAS
o sabio neapolitano Fabio Collona (1567-1640), autor de importante estudo sobre nós, glossopetras!

Nós, as glossopetras, estivemos ativas neste debate. Um dos trabalhos mais imortantes sobre nós foi realizado pelo naturalista napolitano Fabio Collona (1567 – 1640), da Academia dei Lincei (dos linces, animal que enxerga mais longe) e amigo de Galileu. Collona estabeleceu que eramos restos de organismos. Para isso, ele calcinou algumas de nós (ui!) e viu que éramos formadas por matéria orgânica. Por outro lado, a terra que nos envolvia não tinha a mesma origem. Logo, segundo Collona, as glossopetras eram restos orgânicos.

a semelhança com os dentes de tubarão também chamou a atenção de Collona. Assm, ele sugeriu que pudessemos representar restos de antigos tubarões, e não pedras magicas ou antivenenos. Mas era necessário mais algum debate para poder afirmar isso com segurança.

NICOLAU STENO E OS DENTES DE TUBARÃO

Foi Nicolau Steno quem estabeleceu a relação dos tubarões com as glossópetras. Para

tubarão glossopetras
Cabeça de tubarão estudada por Steno e as glossopetras

tanto, ele estudou a carcaça de um tubarão capturado ao longo da costa de Livorno em 1666 e confirmou a semelhança entre as glossopetras e os dentes dos tubarões. Para isso, Steno usou de suas habilidades como anatomista e fez uma comparação usando o método da anatomia forense. Assim, tim-tim por tim-tim, ele explicou as semelhanças entre as duas.  Desta forma, ficou bem claro, para bons e maus entendedores, que as glossopetras eram dentes de tubarão.

Contudo, a polêmica ainda durou mais alguns anos. Somente em meados do seculo XVIII é que os fósseis foram aceitos como restos de organismos e tomaram o sentido que tem hoje. Para tanto, nós, glossopetras, tivemos um papel fundamental.

COM A LÍNGUA NOS DENTES

Assim sendo, hoje nós não somos mais fósseis, e sim uma parte deles. Desta forma, não somos mais tão importantes e procuradas como no passado, empobrecendo talvez alguns mineradores. Contudo,  nós somo muito orgulhosas de nossa participação. De fato, nossa presença nestes debates serviu para que os fósseis fossem reconhecidos como hoje são. Mais que isso, houve uma mudança na maneira como as pessoas enxergavam as camadas de rocha.

Assim, o que era só brincadeira da natureza passou a significar também testemunhos da história terrestre. O grande livro da natureza podia afinal ser lido. A história da natureza, com o tempo, passou a ser maior que a história humana. Por um lado, a história natural pode ser lida em milhões e mesmo bilhões de anos. Por outro lado, outras preocupações vinculadas com esta historia natural passaram a ocupar o centro da vida das pessoas.

Entretanto, questões como evolução das espécies, mudanças climáticas, grandes extinções, etc só fazem sentido num tempo longo. E estão nas agendas das pessoas e dos governos de hoje. Contudo, nada disso seria possível sem entender que pequenas linguinhas encontradas nas rochas possam ser dentes de tubarões.

Nada mal, não?

PARA SABER MAIS:

Hsu, K.T., 2009. The path to Steno’s synthesis on the animal origin of glossopetraeThe Revolution in Geology from the Renaissance to the Enlightenment. Geological Society of America, Boulder, CO, Memoirs203, pp.93-106.

Rosenberg, G.D. ed., 2009. The Revolution in Geology from the Renaissance to the Enlightenment (Vol. 203). Geological Society of America.

O problema não é o 13, é o 14! O mito do Carbono 14 na Paleontologia

Há quem diga que o treze é um número da sorte. E há também aqueles que não gostam das sextas-feiras 13… 

Mas como professora de paleontologia já há alguns anos eu tenho dificuldades com o 14. Na verdade, com o Carbono 14 (C14).

Em algum momento da vida de vocês, meus queridos alunos e/ou leitores, alguém lhes falou sobre ele. E eu não sei bem os motivos da mídia e de alguns livros de conteúdo básico sobre geociências enfocarem a datação por carbono 14 como sendo a resolução de todos os problemas na vida de um paleontólogo; mas, claro, essa técnica não é tudo isso.

A simplificação que normalmente vejo nos textos sobre o assunto passa uma ideia errada de como a datação de materiais fósseis realmente funciona.

Mas vamos começar do início…

Datação de quê? Idade do organismo ou há quanto tempo ele viveu/morreu?

Para obtermos a idade de algum material, necessitamos de alguma técnica que meça a quantidade de anos que aquele material tem, ou que nos indique uma idade aproximada do material em questão. Com isso eu quero dizer o seguinte: se um organismo viveu durante 30 anos, no período Triássico (250-200 M.a.), a idade que iremos obter com algum método de datação é a idade triássica. A idade do organismo (se era jovem, adulto ou idoso) também pode ser obtida, de forma aproximada, com nossos conhecimentos sobre o desenvolvimento ontogenético do grupo ao qual aquele organismos pertence; mas não é sobre isso que iremos tratar aqui, ok?

O que é necessário para datar?

O método Carbono 14 necessita de matéria orgânica para ser utilizado.

Os fósseis, como nós já falamos por aqui no blog, nada mais são que restos ou vestígios de vida pretérita transformados (em algum grau) em rocha (litificados). Existem, sim, casos onde há preservação de material orgânico original. Mas na maioria das vezes, esse material é perdido no processo de litificação. Então, na maioria das vezes, não há Carbono para ser datado nos fósseis.

Quais as premissas da técnica?

Toda técnica utilizada pelos cientistas segue algumas premissas e possui alguns limites.

Uma das premissas é que o material tenha Carbono, como falamos antes. Então, se quisermos saber a idade de uma rocha (que não tenha C), o método de C14 não pode ser aplicado.

Isótopos são elementos químicos (isto é, têm prótons, nêutrons e elétrons) que possuem número atômico igual (número de prótons) mas um número de massa diferente (média ponderada das massas dos isótopos, isto é prótons + nêutrons). No caso da Carbono, encontramos na natureza vários isótopos, e os mais comuns são C12, C13 e o famoso C14. A abundância natural desses isótopos é diferente, sendo o C12 o mais estável e mais comum dentre todos. Sendo o mais comum (e também por outros motivos) os organismos utilizam-se mais do C12. No entanto, o C14, apesar de raro, também é incorporado pelos organismos.

O C12 com 6 prótons e 6 neutrons. Fonte.

O C14 não é tão comum quanto o 12 basicamente por dois motivos: porque ele se forma na alta atmosfera pela ação de raios cósmicos e descargas elétricas em nitrogênios (eventos aleatórios), e porque o C14 é um isótopo instável de Carbono, isto é, ele se transforma em nitrogênio novamente, para alcançar sua estabilidade. Esse fenômeno é muito bem explicado no vídeo que coloquei nas referências deste texto.

No princípio do desenvolvimento da técnica de C14, uma premissa importante para o estudo era que a formação do C14, apesar de rara,  seria constante para os últimos séculos. Hoje sabe-se que houve variação e uma tabela já foi construída para adequação das análises.

O quadro abaixo mostra os diversos isótopos de Carbono e a duração de suas meias-vidas na natureza ( em segundos “s” ou minutos “m”. Fonte):

Simb % natural Massa Meia vida
9C 0 9,0310 0,127 s
10C 0 10,0169 19,3 s
11C 0 11,0114 20,3 m
12C 98,93 12,0000 Estável
13C 1,07 13,0034 Estável
14C 0 14,0032 5715 a
15C 0 15,0106 2,45 s
16C 0 16,0147 0,75 s
17C 0 17.0226 0,19 s

Como o C14 chega a fazer parte da matéria de um carnívoro?

As plantas, por meio de fotossíntese, utilizam os CO2 produzidos pelas descargas elétricas e impactos de raios cósmicos nos N; seguindo a cadeia alimentar, os animais que predam plantas, incorporam esse C instável, e por conseguinte, o C14 chega aos carnívoros que predam estes herbívoros.

Todo paleontólogo usa esta técnica?

Nem todo o paleontólogo sabe dizer a idade exata (em números absolutos) do material com que trabalha. Eu, por exemplo, nunca datei absolutamente nenhum fóssil com que já trabalhei. O C14 é usado para datar materiais de até 50 ou 60 mil anos. Eu trabalho com fósseis de 400 milhões de anos!

O limite do método se dá por um viés analítico. Como o C14 é muito raro em proporção na matéria a ser analisada, após 10 decaimentos suas porcentagens são tão pequenas que ele fica quase impossível de ser detectado. Após 10 decaimentos o material tem cerca de 50 mil anos, uma vez que a meia-vida do C14 tem 5.730 anos.

Como se conta o C14?

O primeiro a realizar a contagem de C14 foi o pesquisador Libby, utilizando um contador Geiger. Ao se desintegrar, um C14 emite uma partícula beta; essa partícula é detectada pelo referido equipamento. Ao colocarmos 1 grama de C atual (de algum ser vivo), temos 13,6 contagens por minuto. Sabendo disso, usamos da matemática para saber quanto 1g de alguma amostra fóssil pode indicar em termos de idade. Se a contagem for de 6,8, significa que uma meia vida já passou, isto é, o organismo em questão morreu há 5.730 anos. Outras técnicas mais recentes e precisas já foram desenvolvidas, utilizando, por exemplo, a contagem dos átomos em si e comparando-se suas proporções. Mais detalhes sobre isso podem ser lidos aqui.

É fato que a maioria das pessoas, quando questionada sobre datação, lembra do C14. Mas veja, para o estudo paleontológico de materiais mais antigos que 50 mil anos, a técnica não pode ser utilizada! Lembrando que o planeta tem 4,5 G.a., o C14 não é o principal método de datação em paleonto…! Outros métodos são muito mais comuns, como a datação relativa das camadas e também as datações absolutas de rochas ígneas + datação relativa das camadas de rochas sedimentares.

Como datar absolutamente uma camada?

Quando temos rochas ígneas, podemos usar métodos de datação como Rubídio-Estrôncio, Chumbo-Chumbo, Urânio-Chumbo, Potássio-Argônio, entre outros. Neste caso, esses elementos químicos instáveis foram formados  quando houve a geração dos minerais que compõem as rochas, por isso, assim que eles solidificam, seu decaimento inicia e a contagem do tempo através das suas meias-vidas pode ser obtida. Cada relação isótopo-pai/isótopo-filho tem uma longa série de intermediários que se formam e possibilitam a datação absoluta. 

E agora... você já sabe quais métodos mais usamos?
Por isso o C14 não é uma técnica utilizada em materiais mais antigos que 50 mil anos, e portanto, não é muito utilizado em Paleontologia. Observe, portanto, a imagem abaixo e me diga o que poderia ser melhorado nela?!

 

decaimento radioativo do C14
Ilustração que mostra o decaimento radioativo do C14… mas que induz as pessoas a achar que é possível datar um fóssil de dinossauro com C14. Fonte.

 

Referências

http://www.deboni.he.com.br/dic/quim1_006.htm

https://manualdaquimica.uol.com.br/quimica-geral/isotopos.htm

http://www.seara.ufc.br/donafifi/datacao/datacao5.htm

Um outro post nosso sobre o tempo geológico, pode ser lido aqui.