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O problema não é o 13, é o 14! O mito do Carbono 14 na Paleontologia

Há quem diga que o treze é um número da sorte. E há também aqueles que não gostam das sextas-feiras 13… 

Mas como professora de paleontologia já há alguns anos eu tenho dificuldades com o 14. Na verdade, com o Carbono 14 (C14).

Em algum momento da vida de vocês, meus queridos alunos e/ou leitores, alguém lhes falou sobre ele. E eu não sei bem os motivos da mídia e de alguns livros de conteúdo básico sobre geociências enfocarem a datação por carbono 14 como sendo a resolução de todos os problemas na vida de um paleontólogo; mas, claro, essa técnica não é tudo isso.

A simplificação que normalmente vejo nos textos sobre o assunto passa uma ideia errada de como a datação de materiais fósseis realmente funciona.

Mas vamos começar do início…

Datação de quê? Idade do organismo ou há quanto tempo ele viveu/morreu?

Para obtermos a idade de algum material, necessitamos de alguma técnica que meça a quantidade de anos que aquele material tem, ou que nos indique uma idade aproximada do material em questão. Com isso eu quero dizer o seguinte: se um organismo viveu durante 30 anos, no período Triássico (250-200 M.a.), a idade que iremos obter com algum método de datação é a idade triássica. A idade do organismo (se era jovem, adulto ou idoso) também pode ser obtida, de forma aproximada, com nossos conhecimentos sobre o desenvolvimento ontogenético do grupo ao qual aquele organismos pertence; mas não é sobre isso que iremos tratar aqui, ok?

O que é necessário para datar?

O método Carbono 14 necessita de matéria orgânica para ser utilizado.

Os fósseis, como nós já falamos por aqui no blog, nada mais são que restos ou vestígios de vida pretérita transformados (em algum grau) em rocha (litificados). Existem, sim, casos onde há preservação de material orgânico original. Mas na maioria das vezes, esse material é perdido no processo de litificação. Então, na maioria das vezes, não há Carbono para ser datado nos fósseis.

Quais as premissas da técnica?

Toda técnica utilizada pelos cientistas segue algumas premissas e possui alguns limites.

Uma das premissas é que o material tenha Carbono, como falamos antes. Então, se quisermos saber a idade de uma rocha (que não tenha C), o método de C14 não pode ser aplicado.

Isótopos são elementos químicos (isto é, têm prótons, nêutrons e elétrons) que possuem número atômico igual (número de prótons) mas um número de massa diferente (média ponderada das massas dos isótopos, isto é prótons + nêutrons). No caso da Carbono, encontramos na natureza vários isótopos, e os mais comuns são C12, C13 e o famoso C14. A abundância natural desses isótopos é diferente, sendo o C12 o mais estável e mais comum dentre todos. Sendo o mais comum (e também por outros motivos) os organismos utilizam-se mais do C12. No entanto, o C14, apesar de raro, também é incorporado pelos organismos.

O C12 com 6 prótons e 6 neutrons. Fonte.

O C14 não é tão comum quanto o 12 basicamente por dois motivos: porque ele se forma na alta atmosfera pela ação de raios cósmicos e descargas elétricas em nitrogênios (eventos aleatórios), e porque o C14 é um isótopo instável de Carbono, isto é, ele se transforma em nitrogênio novamente, para alcançar sua estabilidade. Esse fenômeno é muito bem explicado no vídeo que coloquei nas referências deste texto.

No princípio do desenvolvimento da técnica de C14, uma premissa importante para o estudo era que a formação do C14, apesar de rara,  seria constante para os últimos séculos. Hoje sabe-se que houve variação e uma tabela já foi construída para adequação das análises.

O quadro abaixo mostra os diversos isótopos de Carbono e a duração de suas meias-vidas na natureza ( em segundos “s” ou minutos “m”. Fonte):

Simb % natural Massa Meia vida
9C 0 9,0310 0,127 s
10C 0 10,0169 19,3 s
11C 0 11,0114 20,3 m
12C 98,93 12,0000 Estável
13C 1,07 13,0034 Estável
14C 0 14,0032 5715 a
15C 0 15,0106 2,45 s
16C 0 16,0147 0,75 s
17C 0 17.0226 0,19 s

Como o C14 chega a fazer parte da matéria de um carnívoro?

As plantas, por meio de fotossíntese, utilizam os CO2 produzidos pelas descargas elétricas e impactos de raios cósmicos nos N; seguindo a cadeia alimentar, os animais que predam plantas, incorporam esse C instável, e por conseguinte, o C14 chega aos carnívoros que predam estes herbívoros.

Todo paleontólogo usa esta técnica?

Nem todo o paleontólogo sabe dizer a idade exata (em números absolutos) do material com que trabalha. Eu, por exemplo, nunca datei absolutamente nenhum fóssil com que já trabalhei. O C14 é usado para datar materiais de até 50 ou 60 mil anos. Eu trabalho com fósseis de 400 milhões de anos!

O limite do método se dá por um viés analítico. Como o C14 é muito raro em proporção na matéria a ser analisada, após 10 decaimentos suas porcentagens são tão pequenas que ele fica quase impossível de ser detectado. Após 10 decaimentos o material tem cerca de 50 mil anos, uma vez que a meia-vida do C14 tem 5.730 anos.

Como se conta o C14?

O primeiro a realizar a contagem de C14 foi o pesquisador Libby, utilizando um contador Geiger. Ao se desintegrar, um C14 emite uma partícula beta; essa partícula é detectada pelo referido equipamento. Ao colocarmos 1 grama de C atual (de algum ser vivo), temos 13,6 contagens por minuto. Sabendo disso, usamos da matemática para saber quanto 1g de alguma amostra fóssil pode indicar em termos de idade. Se a contagem for de 6,8, significa que uma meia vida já passou, isto é, o organismo em questão morreu há 5.730 anos. Outras técnicas mais recentes e precisas já foram desenvolvidas, utilizando, por exemplo, a contagem dos átomos em si e comparando-se suas proporções. Mais detalhes sobre isso podem ser lidos aqui.

É fato que a maioria das pessoas, quando questionada sobre datação, lembra do C14. Mas veja, para o estudo paleontológico de materiais mais antigos que 50 mil anos, a técnica não pode ser utilizada! Lembrando que o planeta tem 4,5 G.a., o C14 não é o principal método de datação em paleonto…! Outros métodos são muito mais comuns, como a datação relativa das camadas e também as datações absolutas de rochas ígneas + datação relativa das camadas de rochas sedimentares.

Como datar absolutamente uma camada?

Quando temos rochas ígneas, podemos usar métodos de datação como Rubídio-Estrôncio, Chumbo-Chumbo, Urânio-Chumbo, Potássio-Argônio, entre outros. Neste caso, esses elementos químicos instáveis foram formados  quando houve a geração dos minerais que compõem as rochas, por isso, assim que eles solidificam, seu decaimento inicia e a contagem do tempo através das suas meias-vidas pode ser obtida. Cada relação isótopo-pai/isótopo-filho tem uma longa série de intermediários que se formam e possibilitam a datação absoluta. 

E agora... você já sabe quais métodos mais usamos?
Por isso o C14 não é uma técnica utilizada em materiais mais antigos que 50 mil anos, e portanto, não é muito utilizado em Paleontologia. Observe, portanto, a imagem abaixo e me diga o que poderia ser melhorado nela?!

 

decaimento radioativo do C14
Ilustração que mostra o decaimento radioativo do C14… mas que induz as pessoas a achar que é possível datar um fóssil de dinossauro com C14. Fonte.

 

Referências

http://www.deboni.he.com.br/dic/quim1_006.htm

https://manualdaquimica.uol.com.br/quimica-geral/isotopos.htm

http://www.seara.ufc.br/donafifi/datacao/datacao5.htm

Um outro post nosso sobre o tempo geológico, pode ser lido aqui.

A quebra de paradigmas e a idade da Terra

Você sabia que o estabelecimento da Geologia como ciência surgiu com a constatação de que a idade da Terra é avançada, e de que muitos de seus processos naturais levam centenas de milhares de anos para ocorrer? Vou contar um pouco dessa fascinante história…

      “Sem vestígio de um começo, sem perspectiva de um fim” 
James Hutton

Esta frase é icônica do trabalho de James Hutton (1726-1797), um dos primeiros cientistas a pensar sobre a idade da Terra e o tempo envolvido nos processos geológicos, tais quais os reconhecemos hoje.

Hutton em campo, observando rochas com os perfis dos rostos de seus inimigos na ciência.

A concepção sobre uma Terra antiga, na Geologia, surgiu aos poucos. Até meados do século XVIII, a bíblia servia de guia para datas e eventos; por isso, acreditava-se que a Terra não teria que 6.000 anos de idade. A influência religiosa era grande no meio científico. Podemos lembrar que o próprio Darwin (1809-1882) demorou anos recolhendo evidências sobre a sua teoria evolutiva, também por conta de seu receio em revelar suas ideias; isso porque iam contra os valores religiosos na época.

Porquê, você se pergunta, a igreja tinha tal influência na ciência? Era um livro de relatos, muito antigo. Como explicar o mundo e a origem de tudo? Muitos cientistas passaram a usar ciência aliada aos relatos bíblicos, na tentativa de calcular a idade do planeta. Além disso, acredito que fosse imoral pensar que Deus tivesse criado um mundo que pudesse ter espécies de organismos imperfeitas. Espécies que se extinguissem. Qual seria a razão para um ser superior criasse algo que não sobrevivesse “pela eternidade”? Historicamente podemos entrar no debate de que a igreja controlava o poder na época e que o homem era, neste contexto, a principal espécie vivente, sendo que o planeta havia sido criado para ele, por um ser superior.

A quebra do dogma religioso e o reconhecimento de um tempo profundo para a idade da Terra se deu no séc. XIX. Nessa época, as ideias de Darwin e Lyell (que viveu entre 1797-1875 e era seguidor de Hutton) se alinharam para explicar os fenômenos observáveis na natureza orgânica e inorgânica (tanto na vida e sua evolução, quanto nos eventos geológicos).

É neste momento que se retira do homem o papel de espécie “mais desenvolvida”. Os princípios da evolução biológica, associados com a necessidade de uma Terra muito antiga, colocam o homem como mais uma espécie dentre centenas de milhares, quebrando assim, pelo menos em parte, a forte influência religiosa na ciência. Mark Twain relata essa quebra com uma analogia que considero fantástica, e traduzo de forma livre, a seguir:

“O homem está aqui há 32.000 anos. Que tenha levado 100.000 anos para preparar o mundo para sua chegada é uma prova irrefutável de que o mundo em si foi criado para isso. Suponho isso, não sei. Se a torre Eiffel representasse agora a idade da Terra, a camada de tinta de seu pináculo representaria a presença do homem na Terra; e todos iriam perceber que aquela casquinha de tinta representa a razão pela qual toda a torre foi construída. Eu concluo isso, não sei”.

Outra metáfora sobre a vastidão do tempo e a presença do homem na Terra é a de John McPhee, também traduzida livremente a seguir:

“Considere a história da Terra como a antiga medida de jarda inglesa, a distância do nariz do rei até a ponta de seu dedo, com o braço estendido. Uma lixada na unha de seu dedo médio e toda a história humana é apagada”.

Podemos dizer que Hutton e Lyell, observando os fenômenos do dia-a-dia da natureza e também eventos catastróficos preservados em rochas, foram capazes de predizer o que seria confirmado alguns anos mais adiante. Afinal de contas o processo de datação radioativa, que é o que fornece a idade real das amostras de rochas, só veio a ser desenvolvido no início do séc. XX. Assim como Darwin, Hutton e Lyell coletaram uma série de informações para corroborar as suas ideias de que a Terra era muito mais antiga da que retratava a bíblia. Mas os números, aqueles “4,5 bilhões de anos” que ouvimos falar sobre a idade do nosso planeta (e que chamamos de idade absoluta), só veio à tona alguns anos depois.

De acordo com alguns filósofos da ciência, como Thomas Kuhn (1922-1996), a ciência caminha exatamente assim. São anos de trabalho na “ciência comum”, acumulando conhecimento, para que, de “uma hora para outra”, os paradigmas científicos sejam quebrados, e novas ideias passem a vigorar.

Retirar a espécie humana de seu pedestal não foi tarefa fácil. A ciência progride a passos lentos, delimitados por momentos de grande revolução; além disso, está sempre enroscada no emaranhado contexto social, econômico, religioso e emocional em que cada um dos cientistas (pessoas), se inserem.

 

 

Onde encontrar mais informações sobre Hutton e a concepção do tempo profundo:

Clique aqui para ser direcionado a uma matéria na página do Smithsonian Institute.

Relembre o nosso primeiro post sobre o tempo profundo
Livros utilizados para este post:
Decifrando a Terra
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