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Morte, casualidade e explosões: ou como “fazer” um fóssil

Quando dois restos (fósseis) são encontrados lado-a-lado numa rocha, é possível afirmar com 100% de certeza que ambos viveram juntos e morreram juntos?

Ou ainda…

Quando se encontra um resto de um (ou mais) organismo(s) em determinado local, é possível afirmar de antemão que este(s) organismo(s) viveu(ram) ali?

Texto de Carl Sagan, cientista americano famoso por ser um grande divulgador de ciência.
Texto de Carl Sagan, cientista americano famoso por ser um grande divulgador de ciência.

Estas são algumas das perguntas que nós paleontólogos fazemos quando estudamos os fósseis de um determinado local. Já adianto que a resposta para ambas perguntas é negativa. Existem diversas situações envolvidas na preservação de um resto. É errôneo pensar que simplesmente por terem sido preservados lado-a-lado os organismos também conviviam (compartilhavam o mesmo ambiente), ou ainda, que morreram pelo mesmo motivo. Existem casos em que os organismos sequer viveram no mesmo momento, tendo milhares de anos de diferença entre si, mas são, por acaso, preservados na mesma camada, lado-a-lado.

Então se tivermos o seguinte registro: um dente de dinossauro (que viveu no Mesozoico) preservado ao lado da garra de uma preguiça gigante (do Cenozoico) nós temos em mãos um registro com mistura temporal. Estes dois organismos não compartilhavam o mesmo ambiente porque não viveram sequer na mesma era geológica (um é o Mesozoico e outro do Cenozoico). Mas como é que estes dois restos foram parar ali, juntos? Muitos são os eventos que podem levar à mistura temporal. Neste caso em específico podemos pensar que o dente de dinossauro já havia sido preservado e foi retrabalhado (carregado e depositado) com sedimentos mais novos que por um acaso continham restos do referido mamífero gigante… A mistura temporal é, portanto, uma das eventualidades que podem alterar/modificar o registro fossilífero, tornando-o um pouco mais difícil de ser compreendido.

Mas ainda antes de chegarmos à possibilidade da mistura temporal existe uma outra grande contingência: da preservação (ou não) do resto. É preciso que fique claro para você que nem todos os organismos produzem fósseis. Existe uma série de fatores que ocorrem deste o momento em que ele morre até o momento em que alguma pessoa o encontra.

Quais são, então, as chances de se produzir um fóssil? Em 99,9% das vezes em que um organismo morre, ele é destruído. Então (sendo otimista), em 0,1% dos casos a possibilidade existe, persiste. Pense, também, que quanto mais antigo este resto (ou vestígio) é, maiores são as chances de ele ser destruído, pois mais tempo a natureza tem para que ele seja “reciclado”. E ainda… mesmo que este fóssil persista até os dias atuais, quais são as chances de ele ser encontrado por alguém? Num planeta que atualmente possui 149,67 milhões de km2 de áreas emersas… as chances são pequenas (claro que do total dessa área, nem todas as rochas disponíveis são as sedimentares, mas mesmo assim, as possibilidades são baixas). Por isso escolhi a palavra: contingência, no sentido de acaso, eventualidade e/ou possibilidade (ou não) de algo acontecer.

Vou tentar ilustrar isso com o que vi e aprendi numa visita às cavernas de Sterkfontein, na área de Joanesburgo, África do Sul, e que, inclusive, está muito bem explicado neste vídeo. Vou contar a história da descoberta e das eventualidades envolvidas, voltando no tempo até o momento de “produção” deste registro do passado… me acompanhe!

Uma das cavernas abertas para visitação em Sterkfontein, no Berço da Humanidade, Johanesburgo, África do Sul
Uma das cavernas abertas para visitação em Sterkfontein, no Berço da Humanidade, Joanesburgo, África do Sul

Ali, numa área que é denominada “o berço da humanidade” os estudos paleoantropológicos ocorrem desde os anos 1935, na busca por fósseis de hominídeos. No entanto, a região foi imensamente explorada para a produção de calcário, antes de ser tombada como patrimônio da humanidade. Neste tipo de exploração, as cavernas são abertas por dinamites… sim, dinamites, explosões, destruição(!).

Mesmo tendo sido imensamente explorada, é bem plausível de se dizer que foram estas explosões que levaram às descobertas já feitas na região, uma vez que possibilitaram o acesso ao local e aos fósseis depositados dentro destas cavernas. Sim, é provável que muitos devem ter sido perdidos, explodidos, mas penso que, de outra forma, os cientistas não teriam conseguido chegar até ali;

…é ou não e muito acaso envolvido? Mas as eventualidades ainda não terminaram. As descobertas mais recentes, principalmente em cavernas que foram pouco exploradas pelos mineradores (ou seja, que sofreram menos implosões), são de hominídeos bastante completos, isto é, com muitos ossos de seus corpos preservados juntos, o que é extremamente raro na paleoantropologia. Segundo Lee Berger, um eminente paleontropólogo envolvido nas últimas descobertas dali, existem mais pesquisadores na área do que fósseis para se estudar. Então a descoberta de esqueletos de hominídeos com muitos ossos é excepcional.

Matthew Berger, o menino que encontrou um dos fósseis de hominídeos mais completo até o momento, o de Australopithecus sediba.
Matthew Berger, o menino que encontrou um dos fósseis de hominídeos mais completo até o momento, o de Australopithecus sediba.

Se voltarmos ainda mais no tempo e tentarmos imaginar os motivos que levaram a um hominídeo morrer ali, vamos perceber mais um “lance de dados” envolvido: as explicações científicas para estas descobertas apontam que as cavernas que possuem estes fósseis de hominídeos quase completos não eram seus locais de vida. Muito provavelmente, há cerca de 1,8 M.a., estes homens e mulheres do passado estavam caminhando na savana e inadvertidamente caíram para dentro das cavernas, onde pereceram, seus ossos fossilizaram, e foram descobertos após explosões dos mineradores da região os colocarem mais acessíveis aos cientistas que ali começaram a explorar o potencial fossilífero da região (anos 2000)…ufa…!

Quando alguém me pergunta se, durante minha vida profissional, já encontrei algum fóssil importante, a primeira coisa que vem em minha cabeça é… seria isso realmente essencial? Será que devo ir ao campo esperando encontrar um fóssil “importante”? e, afinal de contas, o que é um fóssil importante? Espero que o texto tenha conseguido mostrar que qualquer registro de vida do passado é importante e extremamente raro; e muitas são as casualidades envolvidas em sua preservação. Nada mais raro e especial que poder olhar para (um piscar de olhos) (d)o passado e compreendê-lo!

Até o próximo post!

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Fósseis mais próximos de nós, ou seja, do estado de São Paulo: de 1.700 M.a. até 250 M.a.

A minha intenção é realizar um relato sobre a variedade fóssil do nosso entorno. Assim, vou primeiro fazer um resumo bem geral acerca dos milhões de anos de biodiversidade que ocorrem ao nosso redor para depois ir detalhando essas ocorrências. Então lá vou eu…

Os registros fósseis de vida no nosso planeta datam de aproximadamente 3500 milhões de anos (M.a.**) atrás, ou da forma resumida 3,5 giga anos (G.a.*). Desde então os organismos deixaram registro da sua evolução e interação com o meio físico, dito abiótico. Essas evidências fósseis, conhecidas como registro fossilífero, são mais abundantes do que se pode imaginar.

No Estado de São Paulo, o registro fossilífero se inicia com evidências de um dos ecossistemas, mas antigos, os estromatólitos (ver post da Flávia) de Itapeva, que representam comunidades de procariontes (seres vivos formados por uma única célula que não possui núcleo) que se desenvolveram sob uma atmosfera com baixa concentração do oxigênio, ou redutora, e que habitavam o mar que cobria o estado por volta de 1.700 e 850 Ma.

Muitos milhões de anos depois encontramos fósseis da Era Paleozoica, na qual aconteceu a explosão em diversidade dos seres com mais de uma célula, devido ao incremento do oxigênio na atmosfera, e a geografia era muito diferente da atual, assim como o clima.

Figura 1. Folhas associadas às florestas riparias do início do Permiano no Município de Tietê.
Figura 1. Folhas associadas às florestas riparias do início do Permiano no Município de Tietê.

A Era Paleozoica é dividida em seis períodos dos quais temos fósseis nos dois últimos, que são conhecidos como Carbonífero e Permiano. Contudo, nosso planeta era ainda muito diferente do atual. Começando pela distribuição dos continentes que eram concentrados em dois grandes blocos: um ao norte, denominado de Laurasia; e outro ao sul, o Gondwana. Neste último se encontrava a América do Sul unida à África, junto com a Austrália, a Nova Zelândia, a Antártica, a Índia e Madagascar. Os registros fósseis do Carbonífero e do Permiano que temos no estado podem ser também encontrados em outras localidades do Gondwana e estão relacionados a um extenso período glacial e às mudanças climáticas derivadas do aquecimento posterior.

Figura 2. Lenho de gimnosperma, final do Permiano no Município de Conchas.
Figura 2. Lenho de gimnosperma, final do Permiano no Município de Conchas.

O registro fóssil do Carbonífero é caracterizado por abundantes fósseis pertencentes a vários tipos de vegetação que moravam sob um clima terrivelmente frio (p.ex. Salto, Campinas, Monte Mor), enquanto que o do Permiano, pelo registro de uma variada vegetação (figuras 1 e 2) conhecida como Flora de Glossopteris (p.ex. Taguaí, Piracicaba, Saltinho). Com relação à fauna, também podemos conhecer dos moluscos, artrópodes e vertebrados (p.ex. Rio Claro, Saltinho) que habitavam o mar que na época banhava as praias do estado. Por enquanto, vou deixar por aqui. No próximo texto vem os últimos 250 M.a. e mais fósseis.

* Giga ano, ou bilhões de anos

** Milhões de anos atrás

Texto produzido por Frésia R.S. Branco

Microbialitos – fósseis mais persistentes

Os fósseis são importantes ferramentas para se entender o passado da Terra e a evolução da vida nela. Chamam a atenção por muitas vezes serem bonitos, por apresentarem formatos e espécies não mais existentes que causam curiosidade e aguçam o interesse de pessoas de todas as idades. Porém, nem todos os fósseis são visíveis ou mostram claramente um organismo preservado. Os seres vivos são capazes de deixar seu registro de uma maneira indireta, como se fosse uma assinatura escrito: “passei por aqui”.  Fósseis como estes são chamados de icnofósseis (icno = marca) e podem ser um produto do metabolismo de algum organismo (cocô e xixi, por exemplo), pegadas, bioconstruções, etc.

Figura 1 – Estromatólito de Vazante/MG, Brasil. Este exemplar possui cerca de 1,2 bilhões de anos.
Figura 1 – Estromatólito de Vazante/MG, Brasil. Este exemplar possui cerca de 1,2 bilhões de anos.

Os microrganismos foram os primeiros seres a conseguirem deixar no registro geológico sua marca. Desde os primórdios da vida na Terra, eles foram capazes de deixar bioconstruções chamadas de microbialitos. Estes são formados através do aglutinamento de grãos de sedimento, como areia, na substância mucilaginosa secretada pelas bactérias, o EPS (substância extracelular polimérica), e pela indução da precipitação de carbonato de cálcio devido ao metabolismo delas. Descomplicando um pouquinho, é como se as bactérias construíssem estruturas que mais tarde litificam (viram rocha!). Com o passar do tempo, os microrganismos que ali viviam deixam de existir, ficando somente o registro de sua atividade metabólica, os microbialitos.

Figura 2 – Estromatólitos gigantes de Santa Rosa de Viterbo/SP, Brasil.
Figura 2 – Estromatólitos gigantes de Santa Rosa de Viterbo/SP, Brasil.

Um microbialito pode ser desde um simples biofilme preservado em um substrato (as chamadas MISS – estruturas sedimentares microbialmente induzidas); esteiras microbianas, que são comunidades de microrganismos diferentes vivendo em associação; ou bioconstruções chamadas estromatólitos (figura 1), que podem alcançar até mais de dois metros de altura (figura 2).

Os microbialitos são importantes por diversas razões, além do pioneirismo em questão de registro fossilífero. Eles são excelentes reservatórios de petróleo (vide o petróleo das camadas do Pré-Sal, que estão alojados em estromatólitos), fornecem informações a respeito do ambiente em que foram formados e podem até serem associados ao que se espera encontrar como sinais de vida fora da Terra, como as estruturas “suspeitas” registradas pela sonda Curiosity, em Marte (figura 3), muito semelhantes às MISS observadas em variados lugares da Terra (Noffke, 2015). Salvo a sua diminuição em abundância a partir de 540 milhões de anos atrás, quando os organismos multicelulares encontraram em seus microrganismos formadores uma fonte de alimento, os microbialitos abrangem um grande intervalo no tempo geológico, extendendo sua existência mesmo após todos os eventos de extinção, estando presentes até os dias de hoje.

Figura 3: Comparação de estruturas encontradas em Marte com MISS da Terra.
Figura 3: Comparação de estruturas encontradas em Marte com MISS da Terra.

Referências

Noffke, N. 2015. Ancient Sedimentary Structures in the <3.7 Ga Gillespie Lake Member, Mars, That Resemble Macroscopic Morphology, Spatial Associations, and Temporal Succession in Terrestrial Microbialites. Astrobiology, 15(2): 169-192.

 

Réptil permiano

Quando foi a última vez que você fez algo pela primeira vez?

Este é o primeiro posto deste blog. É também o meu primeiro post em um projeto de extensão, com objetivo de divulgar, difundir e discutir sobre Ciências, Geociências e Paleontologia.

Como uma feliz coincidência este blog surge quase um ano após a divulgação do resultado que me fez entrar para o corpo de docentes da UNICAMP. E quase seis meses após a primeira “palestra” que assisti, já como docente, dentro da Instituição. Uma apresentação que está muito relacionada ao blog, a minha ideia sobre o papel da ciência e também sobre o papel de um professor universitário, na minha visão.

A palestra a que me refiro era sobre o livro “A utilidade do inútil, um manifesto” do professor e filósofo italiano Nuccio Ordine. Por coincidência eu já havia ouvido falar do livro, e já estava interessada quando soube que ele ministraria a aula magna de abertura da UFRGS, este ano. Senti orgulho por ter sido aluna da UFRGS (onde fiz toda a minha pós-graduação) na ocasião. E foi por pura contingência que acabei descobrindo que no mesmo dia da aula Magna, o prof. Nuccio viria à Unicamp para falar sobre seu livro. E apesar da chuva, estávamos, eu e mais umas 40-50 pessoas, ansiosos por ouvi-lo. Com maestria, o professor Nuccio foi capaz de transmitir sua paixão sobre arte, cultura e, em especial para mim, sobre as ciências puras, aquelas que não tem aplicação direta, ou que tenham como produto imediato uma aplicação ou o lucro. A paleontologia é uma ciência pura. Quando usada para prospecção de petróleo e gás natural tem a sua aplicação. No entanto, grande parte dos estudos paleontológicos no Brasil e no mundo, são puros.

“A única coisa que não se pode ser comprada é o saber” diz Nuccio quando fala sobre sua produção.

Qual o motivo para se estudar algo que não dá lucro? Por que alguém teria interesse em saber sobre paleontologia? Perguntas comuns para quem resolveu viver estudando paleonto, em meio a uma sociedade que está tomada pela lógica utilitarista. A discussão apresentada pelo prof. Nuccio trata também de justiça, solidariedade, tolerância, direito à crítica e até mesmo de amor. Mas a sua relação com as ciências não aplicadas e também com as artes é inquestionável: o conhecimento, e não o lucro, é a base para uma sociedade que valoriza a cultura, a igualdade e a ética; ele constrói os nossos valores.

Acredito que todos os profissionais que trabalham com ciências puras têm em si um grande amor e dedicação pelo que fazem. Alguns conseguem extrapolar esta extrema reverência pelo conhecimento para além dos termos científicos e se transformam em grandes divulgadores de ciências, tais como Carl Sagan, S.J. Gould, Neil de Grasse Tyson… a maioria, porém (como eu) vivem da ciência e realizam a difusão do seu conhecimento para pessoas de sua própria área; constroem o que o filósofo da ciência, Thomas Kuhn, considera “ciência normal”. Divulgando ciência ou não, criando dados dentro de paradigmas ou derrubando-os, as ciências puras, a paleontologia e a paixão por se fazer o que se gosta andam lado-a-lado. A construção do conhecimento, a descoberta do novo, a explicação de fatos cotidianos ou raríssimos está no âmago dos estudos científicos. É como quando fazemos algo pela primeira vez. A repetição é algo monótono. Tente experimentar pequenos hábitos diferenciados e perceba o quão prazeroso é aprender algo novo, conhecer alguém diferente, criar algo único, e que te simplifique a vida. A ciência está aí para isso. E é a paixão por ela e seus desdobramentos que me move.

Sejam bem-vindos ao Paleomundo. Toda semana teremos um post diferente. Conheça mais sobre os colaboradores do blog na aba “colaboradores”.

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