‘Confie nos seus instintos’

Ouça seu coração. Confie nos seus instintos. Pense menos, sinta mais. Não confie nas máquinas, confie em sua intuição. Essa é a mensagem “edificante” de três de cada quatro filmes de Hollywood. No  final de Guerra nas Estrelas, Luke Skywalker decide desligar o computador de bordo de seu caça X-Wing e fazer o disparo final contra a Estrela da Morte usando apenas “a Força”. Épico. Lindo. Fantástico.
Errado.
Uma edição recente da revista Air & Space, do Instituto Smithsonian, traz uma reportagem sobre desorientação espacial, ou as formas como os bizarros movimentos em 3D dos aviões confundem o senso de equilíbrio humano. Basicamente, um piloto que “confie em seus instintos” sob condições de má visibilidade tende a pôr o avião numa espiral descendente — “the graveyard spiral” é o nome pitoresco.
Dado interessante: a expectativa de vida de um piloto que entre numa nuvem sem estra devidamente treinado para voar só por instrumentos é de 178 segundos. Isso é menos de 3 minutos.

O preço de uma ilusão

Pesquisa divulgada pelaAssociated Pressindica que 57% da população dos Estados Unidos acredita que um milagre pode salvar um paciente terminal, mesmo quando a melhor evidência científica mostra que prosseguir com o tratamento é inútil; e três quartos afirmam que exigir a manutenção do tratamento nessas condições, enquanto se espera que Deus dê uma mãozinha, deve ser um direito das famílias.
A crueldade desse negócio todo é tão grande que desafia a descrição. Primeiro, as pessoas são convencidas, ainda na infância, de que Papai do Céu vai cuidar delas para sempre; depois, a cada prova em contrário, aferram-se às menores migalhas que restam. Quando não há mais migalha nenhuma, inventam novas.
Digo, um Deus hipotético poderia ter evitado o que quer que tenha causado o estado terminal, pra começo de conversa; falhando isso, um milagre, em tese, pode ocorrer a qualquer momento, haja ou não tratamento médico. Qual, afinal, o motivo racional para sustentar tratamentoenquanto se espera um milagre? As duas coisas deveriam sermutuamente excludentes.
Mas o Deus mesquinho que habita a cabeça dessas pessoas é uma espécie de psicopata que gosta demanter suas criaturas em suspense, forçando-as a pagar contas de hospital e a consumir recursos que poderiam ser gastos no salvamento de vidas que realmente podem ser salvas, enquanto esperam que Ele resolva, talvez, derepente, quem sabe, agir — sob pena de um sentimento perpétuo de culpa.
Falando em dissonância congitiva, vejam esta frase do médico católico Michael Sise, ouvido pela AP:

Miracles don’t happen when medical evidence shows death is near.

Agora, um filósofo poderia construir duas ou três carreiras analisando o que isso quer dizer.

Orando contra a inflação

Por que ninguém pensou nisso antes? Um grupo evangélico dos EUA jura que o preço da gasolina caiu — por lá — graças a orações que vem realizando em postos de combustível desde… abril. A onipotência, ao que tudo indica, tarda, mas não falha.
Claro, há tentas coisas erradas nessa estrutura de raciócínio — Desejo ardentemente A por vários meses, A, que depende de uma série de variáveis sazonais e/ou aleatórias acontece, logo foi meu desejar ardentemente que provocou A — que não dá nem para começar a enumerar. Mas é preciso notar que a mesma estrutura dirige a vida de muita gente, se é que as vendas de O Segredo representam algo. 
Curioso, de resto, a timidez do pedido do grupo: para quê parar nos preços da gasolina? Por que não pedir por carros movidos a energia solar? Ou teletransporte grátis para todos? Bolas, se o Cara pode, o Cara pode.
O fato, porém, é que uma longa tradição de avaliações científicas da eficácia da oração, de Francis Galton ao recente estudo STEP, sugerem que  ou (a) a prece não ajuda em nada a obter o objetivo pelo qual se reza ou (b) acaba atrapalhando.

O pré-sal e a biopirataria

Uma coisa parece não ter nada a ver com a outra mas a mim, ao menos, parece existir uma espécie de fio condutor comum — ideológico, talvez? — que liga a recente onda nacionalisteira em torno das descobertas de petróelo na chamada “camada pré-sal”  dos mares brasileiros às recorrentes ondas de pânico sobre biopirataria que assolam a mídia de tempos em tempos.
Basicamente, o conceito de propriedadepor trás de slogans como “o pré-sal é nosso” ou “o cupuaçu é nosso” não parece resistir a uma análise muito detalhada.
O conceito liberal de propriedade dá conta de que toda pessoa é proprietária, primeiro, de si mesma, seus pensamentos e seu corpo; segundo, de tudo o que conquista por meio do trabalho. Assim, uma fruta pendurada em uma árvore no meio da floresta não pertence a ninguém, mas passará a pertencer a quem se der ao trabalho de trepar na árvore para pegá-la.
Generalizando, recursos naturais pertencem a quem se dispuser a despender o esforço necessário para explorá-los.
É claro, óbvio, evidente, que muitos processos de exploração envolvem o que os economistas chamam de “externalização de custos” — coisas como poluir a água e fazer com que o governo (i.e., o contribuinte) arque com o preço do tratamento, ou sujar o ar e fazer com que o sistema de saúde pública (i.e., o contribuinte, de  novo) fique com a conta das bronquites e gargantas inflamadas.
Populações e governos devem ser devidamente compensados por isso? Sim. Empresas devem ser docemente constrangidas a minimizar esse tipo de safadeza? Evidente. Mas ficar achando que tudo que a natureza botou neste proverbial Berço Esplêndido “é nosso” e, por isso, ninguém tasca, é burrice. Ou demagogia.

Filosofia experimental: raças humanas

A recente entrevista de Richard Lynn à revista Época, na qual o pesquisador argumenta para diferenças de capacidade intelectual média entre populações humanas, gerou diversos debates, aqui no “pedaço brasileiro” (lusófono?)  do ciberespaço sobre o conceito de “raça” dentro da espécie humana.
(Ah, sim: o trabalho de Lynn é polêmico e atrai críticas, não apenas do típico histrionsimo politicamente correto, mas também metodológicas)
O consenso atual entre os biólogos parece ser o de que não faz sentido falar em raças dentro da humanidade, e que o conceito que melhor se aplica é o de “etnia”, este com base cultural, e não genética — ao menos, é o que se depreende deste “stub” da Enciclopéia Britânica.
Mas, afinal, qual o conceito popular de raça? A dúvida me ocorre porque ando lendo algunstrabalhos de filosofia experimental, onde filósofos vão a campo para tentar determinar se as intuições humanas “puras” correspondem aos modelos conceituais da filosofia.
Isso é importante, por exemplo, no campo do Direito, onde as leis são escritas por juristas com conceitos filosóficos em mente, que podem não ter nada a ver com o que esta na cabeça da população  em geral – por exemplo, “Intencionalidade” tem um significado filosófico muito mais sofisticado que a noção popular “de propósito”, mas o pessoal no júri talvez não saiba disso.
Então: quando biólogos e antropólogos discutem a idéia de “raça” e concluem que se trata de uma enorme bobagem, será que estão falando da mesma coisa que o pessoal na rua, que leu a entrevista de Época e vai debater o asunto na mesa do bar? Essa distinção também pode ser útil no debate dos critérios para ações afirmativas.
Filosofia experimental geralmente toma a forma de estudos estatísticos feitos a partir de pesquisas de opinião onde se pede que “pessoas comuns” emitam juízos de valor sobre pequenos dilemas morais hipotéticos (exemplo: mesmo advertido de que havia bebido demais e que, se pegasse o carro, poderia acabar matando alguém, um homem diz: “não me importo com isso, só quero chegar logo em casa”; ele pega o carro e, estando bêbado, atropela e mata uma mulher; ele matou a mulher intencionalmente?).
Talvez fosse possível construir algo assim para testar a idéia de “raça”  encontrar os limites do conceito no imaginário (conceituário?) popular.

Idéias Cretinas entra na avenida e pede passagem…

Olá a todos!
Esta é a minha primeira postagem original aqui nos Lablogatórios; este blog existiu por quase um ano no blogspot, até que fui convidado a trazê-lo para cá, convite que fiquei muito honrado em aceitar. Acho justo avisar que Idéias Cretinas não é um blog de ciência típico (se é que existe esse animal, o “blog de ciência típico”); assuntos delicados como política e religião farão aparições – e, se você prestou atenção no cabeçalho desta página, deve ter notado o título  “Idéias Cretinas” associado à Suma Teológica de Tomás de Aquino. Considere isso aviso suficiente.
Para não ficar me repetindo, copio abaxo o “Manifesto Idéias Cretinas”, que lançou a versão anterior do blog em 2007. Bem-vindo e boa leitura…
Este blog tem um título provocador que foi escolhido com o propósito de chamar atenção para um fato: ele tratará de idéias, não de pessoas. E idéias estão aí para ser espancadas, ridicularizadas, desmontadas, negadas e, por que não, defendidas. Se você vai se sentir ofendido porque uma de suas idéias preferidas — seja a superioridade da religião cristã, do socialismo científico ou da cerveja belga — poderá ser reduzida a pó de traque em algum momento, problema seu. Ninguém mandou entrar aqui.
A civilização humana evolui pelo choque de idéias. De uns tempos para cá virou moda achar que algumas idéias, políticas e religiosas principalmente, deveriam ser postas acima da crítica, em nome da boa convivência entre partidos, credos, povos, culturas, o escambau; que, no fim das contas, ninguém está “mais certo” do que ninguém.
Bullshit, digo eu. Correr o risco de ver suas crenças reduzidas a escombros é parte do preço de ser adulto. Se não estiver pronto para isso, volte para a barra da saia da mamãe. E se eu digo que a Terra é quadradada e você diz que ela é redonda, é óbvio que um de nós está “mais certo” que o outro.
Por fim: o fato de você (ou eu, ou qualquer outra pessoa) acreditar numa idéia demonstravelmente cretina não é demérito pessoal algum. Como o historiador Michael Shermer já explicou em seu ensaio “Why Smart People Believe Weird Things”, os mecanismos da crença são variados e têm um jeito de se infiltrar por baixo do radar do senso crítico. Continuar a acreditar depois da demonstração inequívoca da cretinice pode ser um problema ético, como argumentou o filósofo e matemático William Clifford, mas aí é com você.
Neste blog, vamos explorar o potencial e nível de cretinice de diversas idéias correntes. Entre em paz, e de livre e espontânea vontade…

8/8/8

O Fantástico de ontem à noite — desculpe, até eu assisto uns pedaços desse negócio às vezes, principalmente quando os seriados da TV a cabo são todos repetidos demais — cometeu uma peça de numerologia a respeito do dia 8/8/8 que merece ser analisada sob, ao menos, dois ângulos.
(Para quem não sabe como a superstição “funciona”, vamos lá: os numerólogos atribuem a cada letra do alfabeto um número, geralmente seguindo o famoso “código secreto do pré-primário”: A=1; B=2; C=3, e assim por diante. Aí, pegam nomes de pessoas, países, empresas, etc., traduzem-nos de acordo com o código e somam os algarismos obitidos entre si, até chegar a um só dígito. Esse resultado teria significado místico. Exemplo: Idéias Cretinas é 9+4+5+9+3+18+5+20+9+14+1+19. Agora, onde está acalculadora… ? Ah: 116, ou 1+1+6 = 2+6 = 8. Então “8” é o número místico deste blog. Pelo que falaram no Fantástico, trata-se do número da honestidade e da veracidade. Arrá!).
Bom, a “reportagem” da Globo mostrava algumas crianças nascidas em 8/8/8 com vários oitos em suas vidas — o número do quarto em que as mães ficaram internadas (512, 5+1+2 = 8), a hora exata do nascimento (7h56 = 7+5+6=18) e assim por diante. Causa de espanto e admiração. Certo?
Nem tanto. Chegamos, agora, aos dois ângulos quem mencionei lá em cima.
O primeiro é o artificialismo das produções para televisão. Quem não trabalha com comunicação quase nunca se dá conta, mas toda reportagem para TV é produto de uma pré-produção exaustiva: antes de deslocar uma equipe composta de profissionais especialiazdos e equipamentos caríssimos para algum lugar, as empresas querem ter o máximo de certeza de que terão algo a apresentar ao final do processo.
Resumindo: tudo que você vê na TV geralmente é fruto de uma preparação que teve início, via telefone e internet, horas ou mesmo dias antes de o repórter ir a campo. Exceções, claro, são as coberturas (ao menos, as coberturas iniciais) de grandes desastres ou outros desenvolvimentos inesperados; mas essas, geralmente, começam com um cinegrafista amador, um vídeo de celular ou uma câmera de segurança.
Daí, as crianças cheias de oitos apresentadas na reportagem não foram simplesmente “encontradas”: foram ativamente caçadas, procuradas e selecionadas. Com uma preparação assim, a lei dos grandes números sempre trabalha a favor do que se quer mostrar, por mais estapafúrdio que seja.
O segundo ângulo é que o fato de uma seqüência de números de um dígito se reduzir a “8”, quando somada pelo sistema dos numerólogos é, de fato, bem grande.
Se a tabela que rabisquei no guardanapo do café da manhã estiver correta, há 45 maneiras de somar dois dígitos — dois dígitos parece ser um bom caso-teste, já que toda seqüência numerológica, não importa o tamanho inicial, cedo ou tarde se reduz à soma de dois algarismos — de forma que o resultado tenha apenas um dígito (desprezei o caso 0+0 = 0, já que não existe uma “letra zero” para os numerólogos, e os casos onde o zero seria o primeiro dígito, como 0+1, 0+2, etc).
Dessas 45 maneirias, 8, ou cerca de 17%, geram “8” como resultado. O único dígito com mais “modos de construção”, por assim dizer, é o 9, com 9/45, ou 20%. O dígito 7 tem 15% e o 1, pobrezinho, com apenas um modo de formação (1+0), tem meros 2%.
Ou seja: o esforço de produção nem precisou ser tão esforçado assim, já que as coincidências de oitos estão entre as mais prováveis criadas pelo próprio método numerológico. Pode acreditar: é o que diz o blog da honestidade e veracidade, regido pelo número 8.

Imperialismo epistemológico

Ouvi a expressão do título desta postagem anos atrás, durante um debate sobre o valor da homeopatia. Ela estava, não surpreendentemente, na boca do homeopata, que argumentava que sua prática fracassava nos testes científicos simplesmente porque não era certo tentra impor os padrões da medicina “tradicional” à técnica “alternativa”.
A idéia de que podem existir diferentes epistemologias — isso é grego para “como separar crenças falsas de crenças verdadeiras e justificadas” — é comum. Intuições epistêmicas, isto é, o conjunto de instintos que leva as pessoas a classificar algumas crenças como “conhecimento” e outras como “palpite”, de fato variam entre culturas, e até de pessoa para pessoa.
O fato óbvio, no entanto, é que se duas pessoas (ou culturas, ou povos) têm opiniões opostas quanto à natureza epistêmica de uma mesma afirmação — mesmo depois de controladas variáveis como sutilezas semânticas, flexibilidade interpretativa, contexto — então pelo menos uma das duas está errada.
Como já bem notou o filósofo Paul Boghossian, toda alegação de conhecimento, não importa se seja feita por um astrofísico de Cambridge, pelo papa ou pelo grande xamã doz zulus (os zulus têm xamãs?), parte de três “elementos primitivos” comuns a toda a humanidade: observação, dedução, indução.
Mesmo um mulá que acredita que o Alcorão é a fonte suprema da Verdade se vale de observação (para ver o que está escrito) indução (para poder afirmar que a mesma sura não vai afirmar uma coisa diferente daqui a meia-hora) e dedução (para aplicar os princípios do livro de forma coerente ao mundo real).
Assim, a “epistemologia imperialista” do método científico é a mesma epistemologia primitiva comum a todo exemplar do animal humano, só que aplicada, sem restrições e de forma aberta, ao conjunto geral dos fenômenos do universo, e não a um único livro, às entranhas de um pássaro ou às “provas” de Hahnemann, o santo-padroeiro dos homeopatas.

Marjoe

Nos anos 70, um documentário, Marjoe, ganhor o Oscar mostrando como uma criança, Marjoe Gortner, foi transformada em um pastor evangélico por pais ambiciosos e como os mesmos truques que fizeram do garoto uma espécie de Mozart da picaretagem continuavam a funcionar, mesmo com a fraude exposta. O filme meio que caiu em esquecimento, mas há uma boa seleção de trechos no YouTube (dois deles abaixo).
Uma lição importante disso é ver como a mensagem tem de ser adaptada aos preconceitos e superstições prevalentes no público-alvo — Marjoe falava a linguagem dos caipiras americanos (“Howdy, let’s get de devil two black eyes!”). Isso provavelmente explica a adoção, no Brasil, de termos como “encosto” e “descrrego” por certos cultos.
Aqui, Marjoe explica como a coisa funciona:

Aqui, alguns excertos de sua carreira como menino prodígio do pentecostalismo:

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