Ou tudo ou nada

Da série, falácias que aprendemos a amar. Esta aqui me ocorre por conta da celeuma criada em torno da proposta de retirada de símbolos religiosos de repartições públicas — e que acabou gerando reações tão mais divertidas porque surpreendentemente hidrofóbicas, do tipo “Vão acabar dinamitando o Cristo Redentor!” ou “Vão colocar o retrato de Lênin na parede!” a até “Se vão fazer isso, que acabem com os feriados de Páscoa e Natal antes!”.
Nesses exemplos estão embutidas duas falácias, que agrupo como as “Falácias do Tudo ou Nada”.
Uma delas é a boa e velha encosta escorregadia: a que pressupõe que uma vez dado o primeiro passo, toda uma cadeia causal potencialmente embutida nesse passo há de desencadear-se inevitavelmente. Tipo, o hábito de comer carne leva ao canibalismo, ou ler revistas eróticas leva (inevitavelmente) à promiscuidade que (inevitavelmente) leva à aids.
A questão do Cristo Redentor encaixa-se aqui, ainda que eu me pergunte o que haveria de errado em dinamitar – sob condições adequadas de segurança e com a devida autorização legal, claro, antes que me acusem de incentivar o terrorismo – aquele trambolho. O Corcovado é um monte já naturalmente tão bonito, não precisa daquele ornamento brega (aliás, por que a maioria das pessoas que acredita em Deus insiste em estragar as melhores cenas de Sua suposta obra com penduricalhos de mau gosto? Mas, tergiverso).
Bom, continuando: derrubar o Redentor não é uma consequência lógica inevitável do princípio da laicidade do Estado. O que, esteticamente, é uma pena. Mas também, um fato.
A segunda falácia, que aparece na questão dos feriados religiosos, é a da perfeição paralisante, que pressupõe que ou um princípio se aplica de forma perfeita e completa, ou não se deve aplicá-lo nunca. Como na velha frase, “faça direito ou não faça”. À qual gosto de contrapor uma máxima do apologista cristão G.K. Chesterton: “uma coisa que merece ser feita merece ser mal feita”.
Com isso, Chesterton queria dizer que, se o efeito “X” é realmente necessário, é melhor conseguir um “X” razoável do que ficar esperando a forma ideal enquanto a necessidade cresce.
Uma refeição ruim é melhor que morrer de fome; numa emergência médica, um segundanista de enfermagem é melhor do que ninguém; e se um preso num calabouço ficar esperando alguém lhe entregar uma furadeira Black&Decker antes de começar a escavar seu túnel, porque a fivela do cinto é uma ferramenta inadequada e não reconhecida pelo Inmetro, ele certamente vai morrer lá.
Enfim, esperar pelo fim dos feriados religiosos antes de retirar as imagens religiosas das repartições públicas é meio como esperar pela paz mundial antes de apartar a briga no pátio da escola, ou o fim da impunidade no Congresso antes de prender o estuprador do ponto de ônibus. Não é um argumento: é uma tentativa de melar o debate que já se sabe perdido.

Uma nova em Sagitário

Astrônomos japoneses anunciaram, no fim da semana passada, a descoberta de uma nova na constelação de Sagitário. Nestes tempos superlativos, todo mundo parece só ligar para as supernovas, mas as novas também são criaturas interessantes.
Uma nova é, basicamente, uma estrela de corda. Você pega uma anã branca e começa a dar corda para ela — no caso, começa a cobri-la com camadas de hidrogênio de uma estrela vizinha — e, num dado momento, o hidrogênio acumulado na superfície da anã atinge ponto de fusão e explode. Note que essa é uma explosão da superfície da estrela, e não de seu núcleo.
Existem algumas novas que se sabe serem periódicas, acumulando matéria da vizinha num ritmo constante e explodindo a intervalos regulares. Há a suspeita de que todas sejam, mas com períodos de vários milênios de duração.
Ou seja, essas estrelas não são meros brinquedos de corda: são os relógios de bolso do Universo… Ei, que tal um panteísmo onde o Universo como um todo é o coelho de Alice, sempre atrasado e prestes a cair num buraco?
Hmmm…
Só um momento que eu vou até ali fundar uma ordem esotérica e já volto.

Bacará

Hoje em dia James Bond vai ao Cassino Royale jogar pôquer, mas em tempos menos plebeus (mais exatamente, nos anos 50, quando Ian Fleming escreveu Cassino Royale, o romance), ele jogava uma coisa muito mais chique, baccarat chemin de fer.
Simplificando ao máximo, o bacará e um jogo parecido com o 21, ou blackjack (segundo alguns cálculos de probabilidade, o blackjack é o único jogo de azar onde o apostador tem chance real de bater o cassino no longo prazo, escapando portanto do teorema da ruína do jogador. Mas não vá a Las Vegas contando com isso). Só que, em vez de fazer 21, no bacará o jogador deve fazer 9.
As cartas são contadas assim: o dez e as figuras valem zero (ou, no jargão do jogo, baccarat). As demais cartas valem o valor de face (o ás corresponde ao 1).
Matematicamente, o bacará é interessante porque, em vez de simplesmente “estourar”, como no caso do 21, o jogador que obtém uma mão maior que 9 passa a ter seus pontos contados “módulo 10”.
Dizer que um número A corresponde a B módulo C significa que a divisão de B por C produz resto A. Por exemplo, 2 corresponde a 14 módulo 12, porque 14/12 deixa resto 2. da mesma forma, 3 equivale a 15 módulo 12. Perceba que, num relógio de ponteiros, todos os horários da 1 da tarde até a meia-noite são lidos exatamente como se fossem números em módulo 12. E 12 módulo 12 é zero, o que pode ser interpretado como a zero hora do dia seguinte.
(Eu também poderia ter dito que no bacará, quando um total de pontos é igual ou maior que 10, só se considera o segundo dígito, mas qual seria a graça disso?)
Outro toque interessante do bacará é que ele transforma as probabilidades em questão de boas maneiras. Todo jogador começa recebendo duas cartas, com a opção de pedir uma terceira.
É considerado de bom tom o jogador abrir o jogo se totalizar 8 ou 9 nas duas cartas iniciais, pedir uma nova carta em totais de zero a quatro e não pedir nenhuma em totais de 6 ou 7 (mas manter a mão oculta, esperando o fim da rodada para revelar-se).
Apenas num total de 5 o jogador pode escolher livremente se quer ou não a terceira carta sem chocar os demais.

Paradoxo de sexta (38)

Bom, o da semana passada foi rapidamente abatido no comentário do Girino: de fato, as probabilidades em jogo não são meio a meio, mas dois terços a um terço. Um jeito de intuir isso é imaginar que a carta que tem as duas faces pretas tenham uma pequena ranhura microscópica — impossível de ver a olho nu — numa delas. Com isso em mente, é fácil perceber que o outro lado da carta pode ser a face preta com ranhura, a face preta sem ranhura ou a face branca.
O desta semana é o Paradoxo Heterológico.
Alguns adjetivos têm a propriedade que descrevem: “curto” é um adjetivo curto, por exemplo. Já “longo” obviamente não é longo. Agora, vamos chamar as palavras que têm a propriedade que descrevem de autológicas, (de “auto” = próprio, “logos” = palavra) e as que não têm, de heterológicas (“hetero” = outro, diferente).
Agora, “heterológico” é um palavra heterológica? Se sim, então ela não tem a propriedade que descreve. Mas ela descreve, exatamente, a propriedade de não ter a propriedade. Então, ela tem a propriedade. Mas se tem, então…
Bom, você já viu onde isso vai (ou melhor, não vai parar). E agora?

É amanhã!

O instante cabalísitico que anunciei em uma postagem anterior ocorrerá nesta sexta-feira. Na hora do almoço, assistiremos a um alinhamento numerológico ímpar, com a passagem das
12h34min56seg de 7/8/9.
Pedi aos leitores do blog que me ajudassem a profetizar algo de momentoso para o segundo fatídico, mas o que mais recebi foram zombarias de incréus (putz, eu sempre quis usar essa palavra!).
Alguns tentaram até mesmo apresentar apelos ao bom senso, como por que não incluir frações de tempo menores que o segundo, ou o fato de que nada ocorreu nos países que usam a notação contrária (mês antes do dia) em julho. Como se o bom senso pudesse se sobrepor aos ditames do cosmo!
Mas, ok, a profecia ganhadora do concurso foi esta aqui:
Eu professo que neste exato momento um protótipo de computador quântico conseguirá dividir seu próprio overflow por zero.
Como vai ser lua cheia, o alinhamento Sol-Terra-Lua-Júpiter-Netuno durante o eclipse do dia 5 causará terremotos nos andes e na polinésia.
Alguém importante vai morrer de complicações cardiovasculares.
E eu vou ganhar um emoticon exclusivo. xD

Por dois motivos: primeiro, cita um eclipe (nenhuma profecia realmente é comme il faut sem um eclipse para acompanhar, seria como um Big Mac sem fritas), e “alguém importante morrer de complicações cardiovasculares” me lembra muito da minha previsão favorita de um fim de ano, “um membro da academia brasileira de letras terá problemas graves de saúde”.
E, bom, eu tinha prometido um emoticon exclusivo para a melhor profecia… Então aí vai. Não é grande coisa, mas eu o chamo de “Nostradamus”:
+;^)~~

Agosto, um mês político

Não, o título desta postagem não se refere ao fim do recesso parlamentar, nem ao suicídio de Getúlio Vargas, mas a uma peculiaridade do par de meses julho/agosto: são os únicos meses consecutivos que têm, ambos, 31 dias. E a razão disso é política.
Política do império romano, diga-se de passagem. O fato é que quando os romanos resolveram homenagear César Augusto com um mês (o nosso agosto, que na época tinha outro nome e apenas 30 dias), Júlio César já tinha o dele (julho, claro).
E julho tinha 31 dias.
Agora, será que bastava mudar o nome do mês? Mas aí o mês de Augusto seria menor que o de Júlio. Imagine as piadinhas no Senado. A solução: tirar um dia de um mês sem patrono (fevereiro, que na época tinha 29 dias, com 30 em anos bissextos) e transferi-lo para o mês com pistolão.
Agosto também é o mês 8. E 8 é um número interssante: é o primeiro cubo (depois de 1), o único cubo da sequência de Fibonacci (de novo, descontando o 1) e o único cubo que é exatamente uma unidade menor que um quadrado (9). Essa propriedade se preserva, de certa forma: qualquer número triangular (1, 3, 6, 10…) vezes 8 é sempre uma unidade menor que um quadrado.
“O Oito ” também é o nome de uma organização terrorista combatida pelo mágico Mandrake. E 8 é o número máximo de rainhas que se pode pôr num tabuleiro comum de xadrez sem que uma possa capturar a outra. Isso pode ser feito de 12 modos diferentes.

Síndrome de Abraão

Este é o nome que eu sugiro para o distúrbio particular exemplificado no caso da família Neumann, de Wisconsin, que preferiu ficar rezando em vez de levar a filha ao médico, o que fez a garota morre de diabete.
O casal Neumann foi considerado culpado pela morte da menina de 11 anos. O que realmente assusta nesse caso é a lógica cristalina do pai. Ao explicar por que optou pela oração, ele simplesmente afirmou que não “poderia colocar o médico à frente de Deus”.
“Biblicamente, não vejo que esta (ir a um médico) seja a forma de curar pessoas”, disse Neumann pai que, segundo a Associated Press, submeteu o júri, à guisa de defesa, a uma longa pregação da Bíblia. “Se eu vou a um médico, estou pondo o médico à frente de Deus. Eu não estaria acreditando no que Ele disse que faria”.
De novo, o assustador é que o argumento faz perfeitamente sentido. Biblicamente, quem cura é Deus e os médicos são meio inúteis — o que deviam ser mesmo, dado o estado da ciência na época: “No trigésimo nono ano de seu reinado, Asa tornou-se gotoso e sofreu violentamente. Durante sua doença, ele não procurou o apoio do Senhor, mas o dos médicos/Ele adormeceu com seus pais e morreu no quadragésimo primeiro ano de seu reinado” (2 Crônicas 16:12-13).
A exceção ao desapreço à profissão médica são alguns versos do Eclesiástico, um livro que os protestantes consideram apócrifo, mas que a Bíblia católica preserva. Ali se lê: “Honra o médico por causa da necessidade, pois foi o Altíssimo quem o criou/(Toda a medicina provém de Deus), e ele recebe presentes do rei:”, (38:1-2); “O Altíssimo deu-lhes a ciência da medicina para ser honrado em suas maravilhas/e dela se serve para acalmar as dores e curá-las; o farmacêutico faz misturas agradáveis, compõe ungüentos úteis à saúde, e seu trabalho não terminará” (38: 6-7).
Como a família Neumann é pentecostal e não católica, esses versículos laudatórios à Medicina provavelmente não valem, e a única coisa que poderia ter salvo a menina seria um anjo com uma espada de fogo (ou, o que seria melhor, com uma injeção de insulina).
Na prisão, é provável que Neumann se console com o versículo 18 do capítulo 22 do Gênese: “Juro por mim mesmo, diz o Senhor: pois que fizeste isto, e não me recusaste teu filho, teu filho único, eu te abençoarei.”

Gripe suína e a inércia da notícia

Tenho visto pela internet muitos comentários a respeito da atuação dos meios de comunicação frente à pandemia da gripe suína, que vão desde a acusação de que a mídia está “bombando o assunto para desestabilizar o governo Lula” até a noção de que os jornalistas estão seguindo a linha oficial e ocultando a incompetência das autoridades. Um Velho Ditado da Selva dizia que uma ação que desagrada a ambas as facções em uma disputa é provavelmente justa, mas não vamos aceitar o argumento de autoridade aqui (nem mesmo da autoridade do Espírito-Que-Anda).
Vou tentar, então, esboçar algumas respostas sobre o assunto com a perspectiva de um soldado nas trincheiras da informação:
1. Por que a gripe continua a ser chamada de gripe suína? o nome não mudou?
Basicamente, porque ela começou a ser conhecida como gripe suína, foi como gripe suína que ela gerou preocupação mundial ao irromper no México, e passar a chamá-la de outra coisa a esta altura só iria confundir a comunicação.
2. Por que a imprensa não é mais crítica da atuação do ministério da saúde?
Bom, a mim me parece que a imprensa vem sendo crítica o suficiente. Por exemplo, já foram publicadas declarações de epidemiologistas alertando para o fato de que os médicos e enfermeiros dos postos de saúde e hospitais públicos não parecem bem preparados para implementar o protocolo de combate à doença do ministério.
Além disso, o noticiário deixa claro que há estratégias alternativas de enfrentamento da doença (por exemplo, as que preveem ampla administração de antivirais) adotadas em outros países.
3. Por que a imprensa faz tanto alarde com essa gripe? É para pegar no pé do governo?
Não, não é. O que ocorre é que a gripe parece não ser pior que a gripe comum, mas é preciso acompanhar os acontecimentos para saber exatamente até onde a semelhança vai. Isso inclui manter (principalmente nos veículos online) um “body count” atualizado e prestar atenção nos aparentes desvios da norma. A memória da trágica gripe de 1918 e a saudável desconfiança atávica quanto à informação oficial mantêm os jornalistas atentos.
4. A mídia não deveria colaborar mais com o governo, para instruir as pessoas e evitar pânico?
A mídia não deve, em princípio, colaborar com governo algum. Jornalismo é oposição, o resto é balcão de secos e olhados, já dizia Millôr Fernandes. Tendo dito isto, os grandes jornais (e sites, e redes de TV e rádio) vêm cobrindo de modo responsável as coletivas do ministro Temporão e as orientações oficiais (e sempre que possível, com o devido contraponto crítico).
5. Então, a cobertura está sendo perfeita?
Não, não está. Se por um lado o risco potencial representado por essa gripe justifica a cobertura continuada, eu creio que os sites de notícias, principalmente, entraram numa espécie de “inércia da gripe” — noticiando qualquer novo desdobramento, antes mesmo de verificar sua relevância.
Mesmo reconhecendo que a velocidade da internet e a pressão da concorrência muitas vezes não permitem o tempo necessário para medir o significado exato das coisas (se o lance se mostrar importante no futuro, o editor pode dizer que deu em primeira mão; se se mostrar irrelevante, ninguém vai lembrar daquela notinha, mesmo), está chegando a hora de descobrir um jeito de perguntar primeiro e publicar depois, até para não saturar o pobre leitor.
Outra questão que, a meu ver, mereceria esclarecimento: essa pandemia não está mostrando que as autoridades sanitárias são negligentes em relação à gripe comum? Afinal, se as duas doenças são igualmente letais, por que o combate à gripe sazonal não é melhor estruturado? Se os funcionários dos postos de saúde e hospitais públicos estão falhando em distinguir uma ocorrência grave de um simples caso de “canja de galinha e cama” quando se trata do H1N1, o que fazem com os casos da gripe comum?

Uma historinha sobre a Justiça

Mais um vez, peço licença à comunidade ScienceBlogs pra blogar sobre um assunto que não tem ligação direta com a divulgação científica: o caso da liminar que proibiu o Estadão de divulgar os grampos telefônicos da família Sarney.
É mais um causo dos meus tempos de jornalista do interior. Assim:
Certa vez, uma mulher pobre, vamos dizer que se chamava Maria, foi à polícia dar queixa do desaparecimento da filha de 13 anos. ela disse às autoridades que suspeitava do padrasto da menina, que, digamos, chamava-se José.
Os policiais “convidaram” José a prestar esclarecimentos e, depois de 12 horas de depoimento (sem acompanhamento de advogado), ele teria confessado ter abusado da garota, matado-a e, ainda, indicado aos policiais onde o corpo estaria enterrado.
A polícia encontrou o corpo. Um juiz determinou a prisão de José. Na cadeia pública, ele foi linchado pelos colegas de cela. Fim de caso.
José era culpado? Muito provavelmente, sim. Mas o Brasil não tem pena de morte. E, mesmo se tivesse, ela só poderia ser aplicada ao cabo de um devido processo legal.
Não foi por ser culpado de um crime hediondo que José morreu espancado, sem direito a defesa, sem advogado, liminar ou habeas-corpus que o socorresse. Morreu porque se chamava José, mas tinha o sobrenome errado.

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