As baionetas de Darwin

Como esta é a semana do bicentenário de Charles Darwin, tentarei fazer uma série de postagens temáticas ao longo dos próximos dias. Para começar, gostaria de usar uma velha frase, atribuída a Napoleão Bonaparte: “Dá para fazer qualquer coisa com baionetas, exceto sentar-se nelas” — o sentido sendo, nenhum governo se sustenta apenas pela força das armas, é preciso haver algum apoio na sociedade. 
Minha versão da frase é “você pode fazer o que quiser com o darwinismo, exceto tirar valores dele”.
Explicando:
Outro dia, um amigo meu começou a fazer analogias entre a atual crise financeira global e o processo de evolução por seleção natural. “Houve uma mudança no ambiente econômico”. Concordei. “As empresas que estavam muito bem adaptadas ao ambiente anterior terão sérias dificuldades”. Continuei concordando. “Muitas serão extintas, e as empresas que souberem aproveitar o novo ambiente prosperarão”. Concordei, concordei. “Então, ao ajudar a salvar os grandes bancos, os governos  estão salvando dinossauros que deveriam ser extintos!”
Para, para, para. Aí já não dava mais para concordar. Eu de fato acredito que, como ferramenta de análise e explicação, o darwinismo pode, ao menos tentativamente, aplicar-se a sistemas tão variados quanto a blogosfera, a composição interna da câmara dos deputados e a economia de mercado. Mas, primeiro: é preciso ter consciência dos limites da analogia que se pretende fazer. É possível levar uma metáfora longe demais.
 Segundo: o resultado e uma análise feita com base no processo de evolução por seleção (natural, econômica, sexual, política, etc) não tem nada a ver com o resultado de um julgamento de valores — no sentido de algo ser “bom”, “mau”, “desejável”, etc. Não sei se o socorro aos grandes bancos é uma boa decisão para sociedade, mas sei que não é análise darwiniana da economia que vai me dar essa resposta.
O que a análise darwiniana me diz é que o sistema de crédito internacional está mal equipado para sobreviver sob as novas condições do mercado e, deixado à própria sorte, provavelmente soçobrará. Ok. Mas e essas condições? São boas? São ruins? Faz sentido mantê-las? O sofrimento humano será maior ou menor se nos adaptarmos a elas ou se lutarmos contra elas?
Tentar responder a essas questões a partir de argumentos baseados no que seria “mais natural” de acordo com “o curso da evolução” é o equivalente filosófico de tentar sentar-se sobre baionetas — no caso, sobre as baionetas de Darwin.

Paradoxo de sexta (13)

Atenção: Este é o paradoxo e sexta (13), não o paradoxo da sexta, 13. 
Quando ao clássico da semana passada: o paradoxo nasce do fato de que ambos os contendores, Euatlo e Protágoras, estão tentando usar doispesos e duas medidas, o moral e o judicial. E, como é da natureza humana, cada um só aceita a parte de cada critério que lhe favorece.
Assim, Euatlo está pronto a aceitar a decisão judicial a seu favor mas, se ela lhe for contrária, ele prefere apelar para o caráter moral do acordo entre os dois homens; Protágoras faz o mesmo. O que ambos deveriam fazer, para manter a discussão honesta, seria escolher um único critério e segui-lo, doa a quem doer.
O desta semana é um versinho:
 
Dez caminhantes cansados da viagem
Com pés doloridos e em péssima condição
Buscararm abrigo numa estalagem
Numa noite escura de chuva e trovão
 
‘Nove quartos, nada mais’ disse o gerente
‘Posso oferecer a essa gente
A cada um de oito, uma cama exclusiva, pois
Mas na nona devem dormir dois’
 
Começou a confusão. O hospedeiro, sem falar
Podia apenas assistir ao drama
Pois daqueles dez homens não havia um par
Que aceitasse dividir uma cama
 
O hospedeiro perturbado logo se viu em paz
Pois era um homem de mente veloz
E logo se mostrou capaz
De solucionar o problema atroz
 
Num quarto marcado A dois homens hospedou
Um terceito foi colocado em B
O quarto, em C se acomodou
O quinto foi dormir em D
 
Em E, o sexto foi alojado
Em F, o sétimo homem
O oitavo e o nono, em G e H
E então para A correu, apressado
 
Onde o hospedeiro, como foi dito
Havia deixado dois dos clientes
Então pegando um – o décimo renitente – 
Levou para dormir em I.
 
Nove quartos de solteiro, um quarto para cada
Abrigam uma dezena de cansados pedestres
E isso é o que intriga minha mente afiada
E desafia a lógica dos grandes mestres
 
Como o hopsedeiro enganou os hóspedes?

Números amigáveis

Atribui-se a Pitágoras o dito de que “amigo é aquele que é o outro eu, como 284 e 220”. Talvez por isso números assm sejam chamados de número amigáveis… Ah, claro: “assim” são os números que têm a propriedade de um ser a soma dos divisores do outro. Por exemplo, os divisores de 220 são 1,2,4,5,10,11,20,22,44,55,110. Somando tudo, dá 284. Já os divisores de 284 são 1,2,4,71,142, que somam 220.
Números amigáveis não são fáceis de achar, e durante muito tempo imaginou-se que 220 e 284 fossem o único par. Feiticeiros medievais consideravam a dupla especialmente importante na criação de taismãs.
Um segundo par foi descoberto pelos árabes no século XIII, 17.296 e 18.416, e depois redescoberto na Europa por Pierre de Fermat, em 1636. O terceiro par foi descoberto por Descartes, 9.363.584 e 9.437.056. Leonhard Euler, um sério candidato ao título de maior gênio matemático deste sistema solar, encontrou mais de 60 dessas criaturas. 
Mas só em 1866 que foi encontrado um par de tamanho mais manejável, 1184 e 1210. O autor da descoberta foi um menino de 16 anos, Niccolò Paganini (não, não é o compositor e violinista!). Hoje,  conhecem-se alguns milhares de pares, a maioria determinada por computador. Mesmo assim, trata-se de uma combinação rara: entre 0 e 1 bilhão, há apenas 586 pares de amigáveis.

O caso Eluana

Casos como o da italiana Eluana Englaro ilustram bem os problemas da idéia dos “magistérios separados” para religião e ciência, defendida por Stephen Jay Gould ou pelo brasileiro Newton Freire-Maia. Segundo essa visão, as questões mais profundas sobre vida e ética seriam adjudicadas à religião.
Mas, e quando os ditames religiosos contrariam a compreensão científica dos fatos — o fato, por exemplo, de que Eluana está efetivamente morta há 17 anos — em que a decisão deve e basear?
A questão é especialmente dolorosa porque a ciência é — e assume-se — como uma fonte de conclusões falíveis. Já a religião se vende como fonte de verdades infalíveis. A alternativa é entre uma dúvida real e sincera e uma falsa certeza hipócrita, e nem sempre é fácil, principalmente quando se tem um grande investimento emocional na questão, escolher um lado.
O problema agrava-se quando notamos que a ciência não é, não pode ser, uma alternativa ao papel normativo das religiões. A pessoa que deixa de “terceirizar” sua consciência ética para algum algoritmo definido em catecismo não pode, simplesmente, passar a descarregar o peso de suas responsabilidades morais sobre a ciência. Ela tem de assumir o peso total para si, contando com a ciência apenas como uma fonte de dados para informar suas decisões.
É algo que requer muita coragem, e aparentemente foi o que o pai de Eluana fez. E esse talvez seja o aspecto mais asustador para quem encara o ateísmo e suas implicações pela primeira vez: se não há uma providência, se não há uma consciência maior garantindo que todas as merdas do mundo no fim servirão de adubo para um jardim de delícias, então cada um de nós só pode contar consigo mesmo e com a humanidade em geral. E cada um de nós, e mesmo a humanidade como um todo, sempre podemos estar errados.

Ficção científica antirreligiosa

É muito comum na ficção científica, principalmente na cinematográfica, que o clímax da história envolva algum tipo de afirmação da superioridade do “coração” sobre o “intelecto”: o momento da viória, não raro, é o momento em que o protagonista racionalista-anal-retentivo quebra as amarras da lógica e se deixa levar pela emoção-intuição-wathever.
Uma instância clássica é o final de Guerra nas Estrelas, onde Luke Skywalker desliga o computador de bordo de seu caça e decide deixar-se guiar pela Força (ainda que, se a Força realmente existisse, essa teria sido uma saída racional… ah, os paradoxos dos universos contrafactuais).
Um fato relativamente desconhecido, no entanto, é de que esse tipo de desenlace místico-populista não é uma regra fixa do gênero; na verdade, várias obras de grande qualidade apontam na direção oposta e trazem críticas ao apego à intuição e à religião. Alguns clássicos da crítica à religião na ficção científica são: 
 
As Ruas de Áscalon, de Harry Harrison: um padre tenta levar o evangelho a uma população alienígena, com resultados imprevistos.
O papa dos chimpanzés, de Robert Silverberg:um grupo de estudiosos de primatas usa linguagem de sinais para discutir deus e a imortalidade da alma com um grupo de chimpanzés.
A estrela, de Arthur C. Clarke: um jesuíta descobre uma supernova, com implicações profundas para sua fé.
Jesus em Marte, de Philip José Farmer: astronautas encontram uma comunidade cristã em Marte.
Razão, de Isaac Asimov: robôs chegam a concluisões surpeendentes sobre o lugar da inteligência artificial no Universo.

Paradoxo de sexta (12)

O da semana passada envolvia um erro até que bem estúpido no cálculo de porcentagens (ou não tão estúpido assim, dada a incapacidade da maioria das pessoas em entender conceitos envolvendo porcentagens em geral, como juros compostos). Resumindo, com um desconto de 10% em cada dúzia de cervejas, nosso amigo beberrão estará pagando por 11 cervejas (10,8, mais precisamente) ao comprar uma dúzia. Com 12 dúzias (144 unidades), ele terá pago por 129,6 cervejas, e não por 144. Agora, 144 – 129,6 = 14,4, ou seja, 10%, e não 120%.
Ao de hoje: em homenagem ao caso Cesare Battisti,  vou apeesentar o Euatlo, ou o Paradoxo do Tribunal. Deve o nome a Euatlo, aprendiz do sofista Protágoras (sofistas, que ganharam uma má reputação por conta da falta de honestidade intelectual inerente à atividade, eram pensadores e retóricos gregos que se orgulhavam de ser capazes de argumentar a favor de qualquer coisa, por mais absurda que fosse, e principalmente se alguém os pagasse bem; algo como os modernos advogados). 
Bom, como eu ia dizendo: Euatlo fez um curso com Protágoras e prometeu pagar pela instrução assim que vencesse seu primeiro caso no tribunal (a ligação entre sofistas e advogados, como se vê, vem de longe). Por algum motivo, essa vitória demorou a chegar (Euatlo não conseguia clientes), Protágoras então perdeu a paciência e processou o ex-aluno, exigindo pagamento.
No tribunal, Protágoras argumentou da seguinte forma: se a corte decidir que Euatlo tem de me pagar, ele tem de me pagar; se a corte decidir que Euatlo não tem de me pagar, ele terá vencido seu primeiro caso e, portanto, tem de me pagar.
Euatlo já encarava a coisa de forma diferente: se a corte decidir que não tenho de pagar, então não tenho de pagar; se a corte decidir que tenho de pagar, então também não tenho de pagar, porque isso representará uma derrota e não terei vencido ainda meu primeiro caso.
E aí, quem está certo?

Buck Rogers, 80 anos

O ano é rico em efemérides — os bicentenários de Edgar Allan Poe e Charles Darwin (nenhuma teoria da conspiração surgiu ainda em torno dessa coincidência?), os 150 de A Origem das Espécies — mas a notícia de que o orçamento do Ministério da Ciência e Tecnologia foi cortado em 18% me fez lembrar de uma outra que estava passando despercebida: em 7 de janeiro de 1929, foi publicada a primeira tirinha de Buck Rogers
Hoje o velho Buck está praticamente esquecido, mas seu impacto na cultura ocidental não pode ser subestimado: foi o primeiro produto de mass media a transformar conceitos científicos em entretenimento (os pulps de ficção científica, em comparação, eram mais coisa de subcultura nerd: uma uadiência fiel, mas pequena). Para o bem e para o mal, as aventuras de Rogers no século 25 definiram os conceitos de “ciência” e “progresso científico” para a consciência coletiva do século passado.
E o que isso tem a ver com o corte no MCT? Bom, diz a lenda que um dos primeiros astronautas do programa espacial americano teria proferido as imortais palavras “No bucks, no Buck Rogers” ou, “sem dinheiro, não há avanço científico e tecnológico”.
O fato de o orçamento com o corte ter sido preparado por um senador do PT faz meu reacionário interior desconfiar de que o plano seja exatamente esse, acabar com essa ferramenta insidiosa do capital, a ciência, e realizar uma visão de utopia esquerdista à la Pol Pot, um delírio de multidões miseráveis solidárias vivendo de frutos, raízes e de amor ao próximo, enquanto criancinhas morrem alergremente de tétano e verminose. 
Mas, claro, meu reacionário interior é um maluco, melhor mantido sob forte sedação. Ele nunca está certo. Espero.

Dissonância cognitiva

O Felipe do Ciência e Psicologia que me desculpe, mas vou invadir um pouco a sua praia com um comentário sobre o recente desmoronamento do teto do templo da Renascer em São Paulo. Questões de responsabilidade civil e/ou criminal à parte, o fato é que a reação dos fiéis revela um “textbook example” de tudo que há de errado, epistemologicamente, com crenças religiosas em geral, a saber, o fato de que toda evidência, mesmo evidência negativa, confirma a crença, a priori.
O pior, a evidência negativa muitas vezes reforça a crença, como mostrou Leon Festinger em seu estudo sobre um culto de adoradores de óvnis que se tornou ainda mais fervoroso depois que a profecia da salvação por discos-voadores não se cumpriu.
 O sociólogo Rodney Stark, que tenta interpretar os fenômenos religiosos com o uso de ferramentas desenvolvidas pela economia, se refere às religiões como relacionamentos comerciais entre seres humanos e um provedor de mercadorias que tem um estoque infinito.
Dízimos, cultos, regras de comportamento, a morte de parentes e amigos, etc., são o preço que as pessoas pagam para ter acesso a esse provedor — mais ou menos como a anuidade do cartão de crédito, ou a taxa de estacionamento do shopping. O modelo faz sentido, na medida em que explica muita coisa do comportamento religioso, incluindo a tolerância dos fiéis para com as aparentes malcriações do comerciante do céu.

Paradoxo de sexta (11)

O da semana passada trazia um par erros — ambos detectados nos comentários mas, pelo que vi, nenhum comentarista chegou a mencionar ambos. O primeiro, mais geral, é a confusão entre a função lógica de implicação material (a -> b) e a operação semântica de implicação simples, ou decorrência (se chover, as ruas ficarão molhadas).
A ligação intuitiva entre a implicação material e a decorrência semântica ainda é uma boa fonte de dor de cabeça para os filósofos, mas uma coisa que já se sabe é que não dá para tratar as duas como equivalentes.
O segundo erro está, exatamente, no fato de que existe um quantificador universal que é contrabandeado para o exemplo “Se um número é impar, ele é primo, ou se um número é primo, ele é ímpar” a partir da sentença (a -> b) V (b -> a). “Se um número”, aqui, tem o sentido de “Para todo número n” ou “Qualquer que seja o número n”, um tipo de quantificação que requer tratamento lógico especial.
Para aliviar um pouco atensão, vamos ao paradoxo da cerveja. Imagine um mercadinho (ainda existem mercadinhos?) que ofereça um desconto de 10% para quem comprar cerveja em caixas de uma dúzia. Agora, imagine um homem que consome uma cerveja por semana (só às noites de sexta, digamos). Ele raciocina  que, se passar a comprar caixas, acabará consumindo quatro delas no ano (4×12=48, um pouco menos que as 52 semanas do ano normal, mas ele sempre pode filar a cervejinha do natal, do ano-novo e do aniversário na casa de alguém), o que lhe renderá, dado o desconto de 10% na caixa, uma economia de 40% no ano.
Mas aí uma idéia brilhante lhe ocorre: se ele comprar uma caixa ao mês (em vez de uma por trimestre), além de se divertir mais — vamos abstrair aqui os riscos inerentes ao alcoolismo — sua economia anual chegará a 120%, o que significa que o dono do mercadinho terá de reembolsá-lo!
Certo?

Dirty Sexy Money

Sabe aquele velho clichê romântico onde a mulher tem um marido ricaço mas sem graça, e acaba descobrindo o nirvana sexual nos braços de um tipo rústico, pobre mas de torso proletariamente torneado? Bom, dois estudos recentes indicam que essa situação novelesca tem a mesma substância que as explosões sonoras no vácuo: muito bom para efeito dramático, mas de baixíssima plausibilidade científica.
Semana passada, já havia sido publicada uma análise matemática mostrando que, em termos de teoria dos jogos, faz sentido para a fêmea manter o macho num processo de cortejo longo e custoso, a fim de separar, digamos, o joio do trigo. 
“Um dos parceiros, frequentemente o macho, arca com a maior parte do custo financeiro, mas ambos pagam um custo em tempo, que poderia estar sendo usado de forma mais produtiva”, diz o matemático britânico Robert Seymour. Mas acrescenta que “ao adiar o acasalamento, a fêmea é capaz de reduzir o risco de ficar com um macho ruim”. 
Se essa análise já parecia distorcer as regras a favor dos machos abonados, eis o prego que faltava no caixão: mulheres que transam com ricos têm mais orgasmos, diz outro estudo britânico. A base de dados usada combina informações sobre  a vida sexual de 1,5 mil chinesas. Pessoalmente, imagino que uma chinesa casada com um alto (e rico) oficial do Partido se sinta tentada a mentir aos pesquisadores, exagerando o quanto de prazer o marido lhe dá — mas entrevistas em países ocidentais talvez ajudem a tirar essa dúvida.
De qualquer forma, a explicação evolucionária proposta para os dados faz sentido: o orgasmo feminino seria uma espécie de “bússola” que aponta a mulher na direção de bons partidos. Se for mesmo assim, milhões de páginas e milhares de horas de filme sobre paixões avassaladoras entre meninas ricas de “bad boys” remendados acabam de se tornar bem menos plausíveis.

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