Esporte forma o caráter?

Eis aí uma afirmação que, embora esteja entranhada no senso comum, sempre contradisse minha experiência pessoal (diversos comportamentos que poderiam facilmente ser vistos como sinais de mau caráter, do consumo de substâncias ilícitas à prática de “bullying”, sempre tiveram incidência maior nos times de basquete e futebol das escolas que freqüentei) e, claro, os informes da mídia a respeito de inúmeros casos de doping e da vida privada (ou nem tanto) de atletas-celebridades.
O problema, claro, é que as três fontes de informação citadas no parágrafo acima — “senso comum”, “experiência pessoal” e “informes da mídia” — têm baixa significância, para dizer o mínimo. Então, como testar a hipótese?
Grandes massas de estatística envolvendo crime e consumo de drogas, como as do Departamento de Saúde dos EUA e do FBI não têm um corte dos dados quanto à prática esportiva.
Depois de fuçar um pouco na internet, encontrei um livro sobre o assunto, Adolescent Worlds: Drug Use and Athletic Activity, que tem uma tabela indicando que 42% dos adolescentes praticantes de esportes de competição e 54% dos participantes de esportes recreativos consumiam maconha, contra 69% dos não-esportistas.
Esse dado parece confirmar o senso-comum, ao menos se associarmos consumo de drogas à nossa noção de mau-caráter, mas ainda é muito pouco (entre outras razões, a pesquisa descrita no livro tem um universo muto limitado).
Ainda não encontrei um cruzamento de dados entre prática esportiva e comportamento violento. Alguém teria mais informação a respeito? No Snopes, achei um “debunking” da idéia de que a violência doméstica é maior em dias de SuperBowl.

Hóstia roubada e obscurantismo medieval

Acho que todo mundo (ou, ao menos, todo mundo que tem alguma afinidade por este blog) já conhece a hilariante história da hóstia seqüestrada por um estudante americano na Flórida e suas repercussões — por exemplo, a campanha desencaedada por grupos católicos contra um professor de biologia que teve o displante de comentar o caso dizendo que “isso não passa de um maldito biscoito!”.

(Não está claro se os católicos se opuseram mais ao uso da palavra “maldito” ou a “biscoito”)
Mas o ponto para o qual eu gostaria de chamar atenção é o verdadeiro estupro da lógica e do bom senso presente na doutrina católica da transubstanciação, segundo a qual cada hóstia consagrada é, de fato, o corpo de Jesus Cristo. Veja bem: não é que a hóstia simboliza ou representa Cristo. Ela é, na verdade, um pedaço de carne humana, que só parece ser um pedaço de pão.

Essa doutrina é, talvez, o exemplo mais claro de como a teologia é capaz de manipular palavras e distorcer significados até reduzir tudo a um amontoado de sons e marcas no papel que, embora tenham um sentido familiar, na verdade expressam conceitos totalmente diversos dos esperados. É o equivalente lógico de insistir que um saco de açúcar cheio de pimenta na verdade contém açúcar porque, afinal, é um saco de açúcar.
No caso da transubstanciação, essa versão medievla da novilíngua orwelliana se vale da velha distinção aristotélica entre “acidente” e “substância”. Em linhas gerais, trata-se de uma distinção que faz sentido: madeira é madeira (substância) mas pode ser usada para fazer portas, cadeiras, carroças (acidentes). Assim, substância é o que a coisa é; acidente é a forma que ela assume.
Aqui também é interessante notar a distinção platônica entre essência e aparência: uma cadeira, por exemplo, é essencialmente uma superfície para sentar, com apoio para as costas (sem o apoio, seria um banquinho). As diversas cadeiras possíveis, com seus vários materiais, cores, estofados, número de pernas, formatos, etc., partilham da mesma essência, digamos, cadeiral, mas divergem em aparência.
No caso da hóstia, o dogma católico diz que, embora mantenha todos os acidentes e aparências de um, para citar o professor americano, “maldito biscoito”, uma vez consagrada ela passa a ter a substância e a essência do corpo de Jesus Cristo.
Agora, pense um pouco no que isso significa: que todas as características do biscoito — cor, cheiro, sabor, massa, descendo até a estrutura molecular — não passam de meros detalhes, acidentes, aparências. Se levarmos a transubstanciação a sério, teremos de concluir que o conjunto total das propriedades mensuráveis de um objeto, ou de um ato, não nos permite dizer o que ele de fato é.
Assim, eu poderia olhar para um cachorro e dizer que ele é, em essência, um transatlântico. Ou cometer um homicio e dizer que, em essência, fiz um arranjo floral. Ou corromper o Congresso Nacional e dizer que a substância do que fiz foi impor a ética na política.

E o Bento XVI reclama do relativismo dos tempos modernos. O que ele não quer, acho, é concorrência…

Neil DeGrasse Tyson

O professor Neil DeGrasse Tyson é um astrônomo e popularizador da ciência, na linha aberta por Carl Sagan décadas atrás. Não sei se seus livros de divulgação científica já foram traduzidos no Brasil mas, dado meu natural pessimismo, creio que não. Abaixo, vídeo de uma palestra sua, recomendada, nada mais, nada menos, que pela coluna semanal de James Randi:

(Se o “embed” não estiver funcionando, o link direto para o Google Videos está aqui)

Stanford e a PM do Rio

O que a morte do garoto João Roberto Amorim Soares, de 3 anos, e o escândalo da prisão de Abu Ghraib, no Iraque, têm em comum? Para começo de conversa, ambos os casos envolvem abuso de poder por parte de autoridades armadas contra cidadãos indefesos (mesmo supondo que os presos de Abu Ghraib fossem guerrilheiros ou terroristas, uma vez presos e desarmados eles estavam indefesos).
Mas, o mais interessante é que, no dois casos, as autoridades responsáveis por impor a disciplina aos agentes armados do Estado responsáveis pelo malfeito se saíram com a mesma desculpa — a chamada hipótese da maçã podre (“HMP”, pra encurtar), pela qual a corporação em si é boa, o que ocorre é que algumas pessoas más eventualmente acabam se infiltrando nela e seduzindo/arregimentando colegas de personalidade fraca. Linha de defesa semelhante, aliás, foi adotada pela igreja católica em meio aos escândalos de pedofilia.
A HMP, no entanto, é altamente problemática, como demonstrou o infame Experimento da Prisão de Stanford, realizado em 1971 pelo psicólogo Philip Zimbardo. Nesse experimento, um grupo de estudantes universitários — e estamos falando dos anos 70, com o movimento hippie, as passeatas pacifistas, etc. — foi transformado em um bando de sádicos fascistas, ao receber a tarefa de atuar como guardas de prisão.
Encapsulando o resultado do experimento em uma frase, Zimbardo costuma dizer que descobriu que a HMP deveria dar lugar ao efeito barril podre: “a idéia de que a ambientação social e o sistema contaminam o indivíduo, e não o contrário”.

Isso não significa que não existam maçãs podres por aí, mas que é preciso, também, identificar os barris podres. E se existe um candidato sério a “barril podre” no Brasil, trata-se das polícias, principalmente das polícias militares. Quem não se lembra, por exemplo, do caso da Favela Naval, em São Paulo? Há algum tempo, a revista Piauí publicou o depoimento de um professor de Educação Física que quase foi morto porque, pilotando uma moto, ergueu o dedo médio para um carro que vinha atrás com farol alto — e o carro era de polícia.
Ah, sim: reconhecer que há “barris podres” não significa isentar indivíduos de culpa ou deixar de puni-los; a impunidade, afinal, é uma das coisas que faz apodrecer o barril.

Onde está a vida?

A mesma história, de dois ângulos diferentes: primeiro, a justiça italiana autorizou a remoção dos tubos de alimentação e hidratação de uma mulher que se encontra em estado vegetativo há mais de uma década. Segundo: a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara de Deputados rejeitou o projeto de lei de descriminaliza o aborto.
Por quê, a mesma história? Porque ambas as notícias tratam da forma como cada sociedade reage ao fato de que sem mente, não há ser humano. “Vida humana”, até as raízes de meus cabelos têm; agora, para ter “existência humana”, é preciso um cérebro funcional.
A decisão italiana representa um reconhecimento parcial do fato. Parcial porque não houve autorização para a eutanásia, e sim para suspensão de alimentação, gerando o seguinte absurdo: é um crime dar a Eulana Englaro uma morte rápida, mas é Ok deixá-la morrer lentamente, de fome e sede.
No caso dos deputados em Brasília, como sempre é difícil saber o que é fruto de convicções pessoais e o que é puro comodismo (quem vai querer afrontar a igreja católica em ano eleiroral?).
Mas o mais engraçado, mesmo, é ver ressurgirem argumentos do tipo, “se o aborto fosse liberado, você talvez não estivesse aqui”. Será que quem diz isso não percebe que está reduzindo o amor materno a medo de ir pra cadeia?

Jesus, o plágio?

Um dos vários non-sequiturs usados por cristãos para defender suas crenças de críticas diretas (tipo, falta de evidência, contradições internas, etc) é o da originalidade: nunca antes na história deste país… desculpe, deste planeta… houve idéias, filosofias e histórias assim.
A alegação já nasce furada, uma vez que boa parte dos ditos “orginais” de Jesus já estava em outras fontes: um caso clássico é o”amai-vos uns aos outros”, que aparece, cuspido e escarrado, no Levítico (cap. 19, v. 18).
Nem mesmo as histórias do filho de um deus com uma mortal, ou do filho de um deus que morre e ressuscita, são novas (e as versões de Héracles e Hórus são bem mais divertidas que qualquer coisa na Bíblia); pô, até o filósofo Apolônio de Tiana parece ter conseguido algo parecido.
E se formos levar os Evangelhos a sério (o que podemos fazer, mas só por alguns instantes), a própria idéia de voltar dos mortos já era moeda corrente na época de Jesus — até Herodes fala na ressurreição de João Batista!
Agora, mais um buraco no barco: aparentemente, a noção de “ressurreição após três dias” era tida como prova da “originalidade” do relato evangélico (três dias! quem poderia ter pensado nisso? só deus, claro)… Mas eis que surge evidência em contrário.
Advertência: a questão ainda é polêmica, como mostra este artigo. E, claro, mesmo que a idéia dos três dias não seja original, isso não prova nada, contra ou a favor. Do mesmo modo que a originalidade, se confirmada, também não provaria.

Há uma lição aqui, em algum lugar.

Fraude é uma coisa relativa

Grigory Grabovoi foi condenado pela justiça moscovita por prometer ressuscitar crianças, e cobrar, para tanto, uma módica taxa de 40 mil rublos, ou cerca de R$ 2 mil. Bolas, diversas igrejas cristãs prometem ressuscitar todo mundo, e os corpos ressuscitados terão mais superpoderes que todo o “cast” da DC Comics, cobrando para isso coisas como devoção, obediência e 10% da sua renda, e ninguém faz nada a respeito!
Trata-se de uma questão, imagino, de antigüidade e de contingente: engane meia dúzia em dois meses e você é um estelionatário; engane milhões ao longo de séculos, e as pessoas começarão a lhe perguntar se pôr o pipi no popó tem repercussões metafísicas.
Na mesma linha: o sempre brilhante Skpetics Dictionary está estreando novos verbetes, incluindo um sobre Lourdes (a foto desta postagem, caso você esteja se perguntando, é de Bernadette Soubirous, a inventora da coisa toda). De Joe Nickell a Richard Dawkins, a fantástica falta de substância das lendas ligadas ao santuário — e sua notável ineficácia sob todos os aspectos, exceto como ímã para turistas — já foi exposta inúmeras vezes, mas o verbete oferece um bom resumo e diversas conexões interessantes.

Rubinho, ou o poder da persistência.

Uma coisa legal sobre esportes (a única coisa legal sobre esportes, em minha opinião pessoal) é que existem estatísticas detalhadas sobre praticamente cada aspecto de cada tipo de competição, e que se prestam muito bem a brincadeiras científicas de teste de hipóteses.
Por exemplo: Rubinho Barrichello tem talento?
Vamos considerar “talento” como a capacidade de obter uma performance acima do que seria de se esperar pelo mero acaso. Rubinho tem dois recordes — é o piloto que mais disputou provas na Fórmula 1 (262) e o que mais pontos marcou na carreira (530), uma média de 2 pontos por prova. Essa é uma média significativa, ou apenas a justa recompensa por uma inabalável teimosia?
Vejamos: na Fórmula 1, pontuam os oito pilotos mais bem colocados em cada prova. As corridas costumam contar com cerca de 20 pilotos; digamos, portanto, que a chance de um piloto pontuar por pura sorte — se, por exemplo, todos os que estão na frente dele quebrarem — seja de 40%. O esquema de pontuação é, em ordem decrescente de chegada, o seguinte: 10, 8, 6, 5, 4, 3, 2, 1. A pontuação média, arredondando para cima, é 5.
Assim, a pontuação média que um piloto sem talento pode esperar, contando apenas com pura sorte, é 5 x 0,4 = 2 pontos.
Ops.
Vamos ver por outro lado: apenas os três primeiros colocados em cada prova vão ao pódio. Assim, a chance de um piloto chegar ao pódio por pura sorte é de 3/20, ou 15% por corrida. Ele conseguiu 62 em 262, ou 23%. O dobro.
Esses resultados parecem sugerir que ele tem talento para o pódio, mas não para pontuar. Como isso é possível?
Mais análises em breve…

Richard Wiseman

O psicólogo britânico Richard Wiseman tem uma carreira acadêmica sólida na área de pesquisa paranormal (nunca encontrou um fenômeno que merecesse confirmação, e já escreveu dois tratados acadêmicos sobre como testar supostos “videntes”). Mas ele também pratica uma psicologia mais “pop”, ilustrando conceitos obscuros com exemplos marcantes. Um ótimo caso é o do vídeo abaixo:

Go, Voyager, Go!

As duas Voyagers continuam a enviar dados para a Terra, mais de 30 anos após o lançamento. Esse feito em si já é notável, mas o que sempre me impressionou mais nessas duas sondas foram os discos dourados que transportam — e que serão, possivelmente, o último testamento da humanidade.

Se o homem fracassar em se espalhar pela galáxia — o que, dada a absurda falta de competência de nossa espécie, me parece extremamente provável — esses dois discos conterão praticamente toda a informação que o universo jamais terá sobre nossa existência.
Nossas transmissões de rádio e televisão, claro, também viajam pelo espaço, mas elas requerem decodificação; os discos também, mas eles levam as instruções junto.

(Há ainda as placas das Pioneers 10 e 11, mas os discos das Voyagers são muito mais vívidos e completos)

Quando o sistema solar não for nada além de cinzas e pó, os discos ainda existirão. Para além do “wishful thinking” mesquinho das religiões, essas duas máquinas do século XX são nossa única real chance de eternidade.

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