Instituições psicopatas?
Diferente de psicopatas, diz o argumento, pessoas saudáveis têm a consciência de que seres humanos merecem dignidade e respeito, e portanto as ditas pessoas saudáveis sabem que é preciso ceder de vez em quando, ou abrir mão de uma vantagem que, mesmo sendo legal, poderia causar sofrimento ao próximo.
Pessos normais também são capazes de dizer “isso é errado”, em vez de simplesmente calcular qual a probabilidade de serem pegas com a boca na botija.
Já empresas são construídas de modo a não ter escrúpulos além do cálculo de dividendos. Isso não é culpa delas, da mesma forma que uma aranha não é culpada por lançar ácidos digestivos sobre uma mosca ainda viva: só acontece que elas são projetadas desse jeito.
A maior crítica que posso fazer a Bakan é a de que, uma vez tendo estabelecido o caso pela deformação moral da entidade corporativa, o autor passa a promover o Estado como remédio para o problema. Como se governos (e partidos políticos!) também não fossem psicopatas, ainda que de outro tipo.
Alguém deveria, aliás, escrever uma análise do tipo a respeito das igrejas. Se as grandes corporações são Norman Bates, aposto que nenhuma religião deve ficar muito atrás de Hannibal Lecter.
Igrejas ‘só para entretenimento’
Já comentei aqui (em minha postagem anterior, para ser exato) o ótimo livro de Paul Boghossian sobre relativismo cultural. Uma das constatações mais brilhantes (porque terrivelmente óbvia) do livro é a de que todo o papo sobre “novas formas de saber” é incoerente porque, no fim, todo ser humano se vale das mesmas três ferramentas básicas para construir conhecimentos: observação, indução e dedução.
O ponto me ocorre quando leio uma nota curiosa no Times de Londres, onde o articulista Matthew Parris critica a nova lei britânica contra charlatanismo porque ela também poderia, no final das contas, se aplicar a igrejas e cultos religiosos. Essa lei requer que fornecedores de produtos e serviços que não tenham comprovação científica avisem os clientes que os ditos prdutos e serviços são “só para entretenimento”.
Parris acha isso, a possível aplicação às religiões, ruim. Eu, pessoalmente, acho que isso só prova que a lei foi bem planejada e deveria ser adotada no resto do mundo. Vamos lá. Observação, dedução, indução: qual a diferença entre um “trabalho” feito por uma cartomante, uma sessão de descarrego e uma reza de terço bizantino?
O preço.
Relativismo radical
Muito, muito bom o Fear of Knowledge, de Paul Boghossian. Trata-se de um livro magrinho em que o filósofo se dedica a desmontar a tese de Richard Rorty, de que a realidade não é “representacionalmente independente” — isto é, de que não faz sentido falar em como as coisas “realmente são”, que só é possível falar em “como as coisas sao dentro de um determinado esquema de representação”.
Boghossian constrói meticulosamente o caso de que se não houver uma realidade “real”, cognoscível, na qual ancorar o conceito de “esquema de representação”, a proposta de Rorty é inviável: seria preciso ter um esquema de representação para representar o esquema de representção que representa o esquema de representção no qual há um esquema de representação que… (etc, etc, etc)… segundo o qual as coisas são de tal jeito.
A filosofia brasileira está mais ligada à chamada tradição européia “continental”, que tende a valorizar mais a retórica, o princípio de autoridade (Marx disse, Hegel disse, Fucault disse, Lacan disse…) e o politicamente correto que o jogo de argumentos. O que é uma pena: a tradição analítica, à qual Boghossian se filia, é muito mais rica e satisfatória, em minha humilde opinião de ignorante interessado.
Tu quoque, Lula
Alguém poderia, por favor, pedir pro Lula calar a boca? Óquei, sei que esse apelo já deve ter sido feito milhares de vezes antes, e por fontes muito mais credenciadas que este modesto blog, com suas míseras 500 visitas mensais (poucas, mas de qualidade, apresso-me em dizer) mas é que o presidente anda abusando muito de sua falácia favorita, tu quoque, ou, você também ou, ainda, a falácia da autoridade moral: a idéia de que quem comete um erro não pode apontá-lo nos outros.
Essa bobagem vem, como muitas outras, dos Evangelhos. No caso, o episódio da lapidação da mulher adúltera. Abre parêntese: curioso notar que em nenhum momento Jesus questiona a barbárie de se condenar uma mulher à morte, sob tortura, apenas por ter usado próprio corpo como quis… Fecha parêntese.
Assim como no precedente bíblico, a falácia lulista (que já tinha virado a favorita do Planalto no tempo do mensalão) confunde o fato em si com sua fonte. Ora, ou a mulher cometeu adultério, ou não; ou a lei mosaica exige o apedrejamento, ou não; no caso mais recente de invocação por S. Excia., ou o Brasil está irresponsavelmente reduzindo sua biodiversidade a pó de traque, ou não.
Quem faz a denúncia é muito pouco relevante. O que conta, ou deveria contar, são as evidências apresentadas.
Mas deve ser mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha que um político resolver discutir algo com base na evidência…
‘Free speech’ vs ‘Hate speech’
A polêmica sobre se as igrejas cristãs fundamentalistas deveriam ser proibidas de pregar contra o homossexualismo traz à tona uma série de problemas, que vão desde a revisão politicamente correta de textos clássicos (ei, o Levítico diz que homem com homem é “abominação aos olhos do Senhor”, algo tão pecaminoso quanto, por exemplo, comer ostras), até as questões de liberdade de culto, de pensamento e de expressão.
Como (quase) sempre, no entato, o dilema chega aqui depois de já ter sido debatido à exaustão lá fora: a formulação em inglês é “free speech does not include hate speech” (“liberdade de expressão não inclui a liberdade de expressar o ódio”). Mas será que não, mesmo?
Digo, dar às pessoas de quem discordamos o direito de falar é o preço que pagamos pelo nosso direito de falar. Se liberdade de expressão for só a liberdade de quem concorda comigo, trata-se de uma liberdade falsa. Exposta desse jeito, a questão vira ponto pacífico.
Mas, e quando chegamos às pessoas de quem discordamos radicalmente – nazistas, fascistas, homófobos, cristãos fundamentalistas, supremacistas islâmicos, judeus sionistas ultra-ortodoxos, comunistas stalinistas, produtores de poesia erótica pedófila – o direto deles deve ser preservado, também? Ou liberdade de expressão vale, sim, para quem discorda da gente, mas só para quem discorda da gente um pouquinho? Você é livre para ter seus costumes e sua cultura, mas não ponha os cotovelos na mesa, ou vamos mandá-lo comer no canil?
Pode-se argumentar que o discurso de ódio representa uma situação ultra-especial, já que é o tipo de discurso que tem conseqüências comprovadamente nefastas. A Suprema Corte dos EUA reconhece uma exceção à cláusula de liberdade de expressão da Primeira Emenda, que é a do caso de “perigo real e imediato”. O exemplo clássico é o de que “a liberdade de expressão não dá a ninguém o direito de gritar ‘fogo!’ num teatro lotado, a menos que realmente haja fogo”.
Será que o discurso de ódio traz esse tipo de perigo real e imediato? Falar contra o homossexualismo equivale a levantar um falso alarme de “fogo!” no teatro lotado da sociedade?
Eu diria que depende de como o discurso em si é formulado. Existe uma diferença entre gritar “fogo!” e consultar calmamente a pessoa na cadeira ao lado, para perguntar se ela também está sentindo cheiro de fumaça. Como existe uma diferença entre dizer que “relações homossexuais são pecaminosas à luz do capítulo 18 de Levítico” e “linchem o viadinho filho-da-puta”. A segunda frase já seria crime de qualquer jeito, por se tratar de instigação direta à violência. Não precisamos de mais uma lei para punir isso.
Sempre que surgem propostas de lei para suprimir um tipo de idéia ou expressão, eu me lembro de minha infância e adolescência no Brasil dos anos 70/80, ainda durante a ditadura militar.
Acho que nunca houve tantos jovens comunistas no Brasil quanto naquela época – até eu, confesso, tive uma camiseta do Che, um pôster de Marx e sonhava com o dia em que os empresários filhos-da-puta vendidos ao imperialismo internacional acabariam no paredón. Lembro que um amigo de meu pai, um cara conservador até a medula, contrabandeou para o Brasil um exemplar em espanhol do Livro Vermelho de Mao, só de sacanagem.
Resumindo, o proibido atrai. E o ódio proibido atrai muito, muito mais. Para fechar com um clichê, a luz do sol continua a ser o melhor desinfetante.
Deus e a ciência, ciência e Deus
Passando rapidamente por cima da vitória sobre o obscurantismo no Supremo Tribunal Federal (com destaque para o bizarro voto do ministro Cezar Peluso, que ninguém entendeu… será que é tão difícil dizer “sim” ou “não”?), queria chamar atenção para dois desenvolvimentos menos espetaculosos, mas não menos espetaculares, nas lides entre ciência e religião.
O primeiro é a longa entrevista de Douglas Futuyma ao Estadão. Ele defende o que parece ser uma versão da velha tática dos “ministérios não sobrespostos” de Stephen Jay Gould, de que ciência e religião podem conviver, desde que uma não pise nos calos da outra. É uma proposta nobre, mas que no fim não funciona porque, como Richard Dawkins, entre outros, já notou, a religião nunca se satisfaz com o seu cercadinho. Está sempre tentando anexar o terreno alheio (como no caso das células-tronco, aliás).
Outro motivo para a proposta da convivência pacífica ser disfuncional é que ela implica limites para a investigação científica — o cercadinho, afinal, além de não deixar sair, também não deixa entrar. E isso é intolerável: perguntar e investigar são imperativos éticos da mais alta importância.
O que nos traz ao segundo desenvolvimento, Evogod. Um software que simula a evolução de crenças religiosas, emostra que elas podem se disseminar por meios puramente naturais.
Como Stephen Hawking já disse uma vez: Não e que a ciência prove que Deus não existe. Ela apenas demonstra que ele é desnecessário.
Juristas católicos, espíritas, pagãos…
Fiqui um tempo sem postar, e os assuntos acumulam-se. Mas como hoje é dia de votação do uso de células-tronco, o tema mais urgente com certeza é do da “religionização” (com o perdão pelo neologismo feioso) do judiciário.
Não bastassem crucifixos nos tribunais e o Vaticano dando palpite da escolhade ministros do Supremo, agora querem impingir-nos cartas psicografadas como prova.
Vestindo a sempre antipática carapuça do “eu avisei”, este blog reafirma que é isso que dá ficar dizendo que “todas as crenças merecem respeito”. E vai me dizer que não é uma falta de respeito o Estado brasileiro dizer aos espíritas que documentos psicografados valem menos que uma mancha de batom na borda de um copo?
Então.
Mas não esmoreçamos: algum dia, um sacerdote de Zeeus vai exigir que o judiciário aceite entranhas das pombos brancos scrificados como prova. Quem viver, verá.
Pimenta nos olhos dos outros…
Se a gente no Brasil já acha (e com boa razão, diga-se) que a separação entre Estado e Igreja é mais um desejo que um fato e, como desejo das instituições, periclitante, imagine os pobres italianos.
Caso específico: uma mulher italiana perdeu a pensão a que teria direito após o divórcio civil porque a Igreja Católica achou por bem anular o casamento. Como a Igreja nunca “anula” um sacramento (afinal, “o que Deus une o homem não separa…”) a decisão implica que o casamento, de fato, nunca existiu.
Diz o Sr. Spock: A capacidade dos teólogos de torcer o braço da lógica até que ela diga exatamente o que eles querem ouvir é fascinante, capitão.
Então, como uma mulher que nunca foi casada pode receber pensão de um marido que nunca teve? Não dá, derto? (o Sr. Spock ergue a sobrancelha).
De resto, note-se o efeito do ato desta instituição que se jacta de “defender a família”: uma dona-de-casa desempregada e uma criança pequena que ficaram sem fonte de sustento.
Dobra fator 9, em direção à Idade Média.
Einstein e o astrônomo do Vaticano
Eis um caso de sincronicidade jungiana (ou mera coincidência interessante: como já disse alguém, se Jung entendesse de estatística, jamais teria inventado a sincronicidade..): descoberta uma carta em que Albert Eisntein afirma, com todas as letras, que religiões só fazem perpetuar “superstições infantis”, e o astrônomo do Vaticano vem a público defender a convergência entre a existência de extraterrestres e a fé cristã.
Quanto à parte de Eisntein, nenhuma grande novidade. O desprezo do grande cientista por conceitos como imortalidade da alma ou o poder das orações já era bem documentado:
“I cannot conceive of a God who rewards and punishes his creatures, or has a will of the kind that we experience in ourselves. Neither can I nor would I want to conceive of an individual that survives his physical death; let feeble souls, from fear or absurd egoism, cherish such thoughts. I am satisfied with the mystery of the eternity of life and with the awareness and a glimpse of the marvelous structure of the existing world, together with the devoted striving to comprehend a portion, be it ever so tiny, of the Reason that manifests itself in nature.” [Albert Einstein, The World as I See It American Institute of Physics Online]
A nova carta é apenas o glacê do bolo.
Quanto às declarações do astrônomo-padre José Gabriel Funes – e que, aliás, não têm valor de doutrina, já que ele é apenas um padre dando uma entrevista, não um papa emitindo uma bula ou encíclica – bom, primeiro, é uma pena que ela não tenha chegado a tempo de salvar Giordano Bruno da fogueira.
Segundo, vamos notar a intolerável arrogância que surge do choque entre a idéia de um Deus preocupado em cometer suicídio para “salvar” a humanidade de Si mesmo e o conceito de inteligência extraterrestre: Ao ser perguntado sobre se a redenção também serve para esses “irmãos extraterrestres”, Funes afirmou que Jesus encarnou uma vez e que a encarnação é um evento único e não repetível (EFE).
Ergo, enviemos missionários às galáxias. James Blish tratou bem do assunto em seu livro Um Caso de Consciência.
Entrevista sobre Brasyl
Ian McDonald, autor e um complexoe multifacetado romance de ficção científica chamado Brasyl, sobre mecânica quântica e — adivinhe só! — o Brasil, dá uma boa entrevista para o blog Post Weird Thoughts. Merecem uma boa lida. A entrevista e o livro.