Reflexões sobre o campo minado
Acho que todo mundo já jogou Campo MInado (Minesweeper), o joguinho que vem pré-implantado no sistema operacional Windows (ou vinha, pelo menos até as versões XP e 2000; não sei se continua no Vista).
Trata-se de um joguinho bastante matemático, no qual é preciso “limpar” um campo formado por 81 células, no qual há 10 minas (no sentido de explosivos — não minas de ouro ou garotas) ocultas. Quando o jogador seleciona uma célula onde não há explosivos, ele vê um número que representa o total de explosivos adjacentes à célula escolhida; quando ele seleciona uma célula explosiva, ela explode (claro) e o jogo acaba.
Para mim ao menos, o que torna o jogo interessante é a necessidade de extrair informação suficiente dos números que aparecem na abertura de células “inocentes”. Digo, abrir uma célula no centro do tabuleiro e ver o número “3” não diz muita coisa — a célula central tem 8 adjacentes, e “3” apenas diz que, ao clicar em uma delas, você tem uma chance de 3/8, ou 37%, de explodir.
Por isso um bom truque é começar pelos cantos, onde o número de células adjacentes é menor. Mas nada impede que o canto por onde se começa contenha uma bomba, o que leva o jogo a um fim prematuro!
Mas o risco não é tão grande quanto parece: com 10 bombas em 81 células, a chance de se pegar uma bomba logo de cara é 12%. Aliás, o risco de se topar com uma bomba, abrindo células aleatoriamente, só chega a 50% a partir do quinto clique do mouse.
Outra coisa interessante sobre o Campo Minado é que ele poderia muito bem dar origem a uma loteria especialmente difícil de ganhar: existe 1,8 trilhão de formas de espalhar 10 bombas em 81 células.
Isso é cerca de 6 vezes o total de estrelas na Via-Láctea, ou 17 vezes o total de seres humanos que já viveram.
Ribossomos e o ‘mundo real’
Estava eu a comentar com uma colega de redação o Nobel de Química para os cientistas que obtiveram sucesso na cristalografia do ribossomo, e eis que ouço a pergunta (feita num tom entre a exasperação e o desinteresse puro e simples): “Tá, mas qual é o ‘mundo real’ disso?”
A pergunta me deixou meio abestalhado por alguns instantes. Minha primeira reação foi pensar em dizer algo como, “você, eu, a madeira da mesa, a carne que você comeu no almoço”.
Em vez disso, disse: “Ajuda a criar novos antibióticos”. Ao que ouvi: “Ah, tá”.
Juro que me senti como um daqueles sobrevencialistas americanos, que acham um absurdo as pessoas não saberem matar e esfolar um coelho, ou reconhecer ervas comestíveis no mato. Afinal, um dia sua vida pode depender disso… Só que senti não como se as pessoas tivessem perdido o contato com as bases da sobrevivência individual, e sim com as bases da sobrevivência da civilização.
O que é o ribossomo para o “mundo real”? Muito mais que qualquer um de nós, pô.
O preço e o prêmio de ser metido a besta
Ser um cara convencido e metido a besta vale a pena se os recursos em disputa estiverem avaliados em pelo menos o dobro do preço de entrar na competição — ou, se o que você tem a perder for menos da metade daquilo que você tem a ganhar, vale a pena fazer pose e blefar para cima do oponente.
Isso é o que propõe um modelo matemático de teoria dos jogos (descrito em detalhes aqui) criado para tentar explicar por que o excesso de autoconfiança evoluiu na espécie humana — afinal, seria de se imaginar que ter uma ideia inflada das próprias capacidades fosse uma característica amplamente antiadaptativa, que levaria seu portador rapidamente às hostes de vencedores do Prêmio Darwin.
Os fatos, no entanto, mostram o contrário: metidos a besta abundam e, não raro, prosperam, para desespero dos tipos mais tímidos ou comedidos. O novo modelo tem a vantagem de adequar-se a esses fatos: leva à conclusão de que “nas condições sob as quais seres humanos teriam evoluído, uma visão racional e objetiva de suas próprias capacidades são extremamente raras”.
Isso porque toda decisão de entrar ou não em uma disputa depende da avaliação que fazemos da periculosidade do oponente — e se ele conseguir projetar uma imagem de invencível, os demais tendem a ceder os pontos por WO; o twist é que, se o cara não acreditar, ele mesmo, que é invencível, existe o risco de que acabe intimidado e fuja de disputas que, na verdade, teria boas chances de ganhar.
Isso tudo me faz pensar na menina loira que ajudei a passar de ano em química no terceiro colegial e no tipo grandalhão e mal encarado (ao menos, era mal encarado quando eu estava por perto) que a namorava na época. O fato é que ela acabou casando comigo, mas só muitos, muitos anos mais tarde.
Será que se eu tivesse sido mais agressivo…?
Quando o cavalheirismo atrapalha a matemática
Zapeando pela internet (será que o verbo é mesmo esse zapear? Afinal, não uso controle remoto, e sim o mouse…) encontrei um antigo artigo sobre análise combinatória com o título irresistível de Uma solução não-sexista para o problema da ménage.
Se o tivesse descoberto antes, poderia tê-lo usado na recente blogagem coletiva “caça-paraquedista”, com o título Método infalível para organizar uma ménage com suingue entre “n” casais. Perdi a oportunidade, mas não dá para não comentar o trabalho, que aliás pode ser lido aqui.
Começando pelo começo: “problema da ménage”, em matemática, é o seguinte — quantas formas há de organizar “n” casais em torno de uma mesa redonda, alternando homens e mulheres, do modo a garantir que nenhum marido fique imediatamente ao lado de sua esposa?
Você talvez esteja querendo saber por que matemáticos haveriam de se preocupar com isso, já que a questão parece muito mais afeita a chefes de cerimonial (na melhor das hipóteses) ou a organizadores de surubas (na pior). O fato, no entanto, é que o problema, uma vez abstraído seu caráter doméstico-sexual, tem várias implicações — por exemplo, em teoria dos grafos.
Além disso, matemática e dissolução moral não são estranhas entre si: a teoria das probabilidades, por exemplo, deu seus primeiros passos como uma tentativa de ajudar apostadores a se dar bem em jogos de azar.
Enfim: no artigo sobre a solução “não-sexista”, os autores concluem que as principais dificuldades em se resolver o problema advêm da insistência dos matemáticos em sentar as mulheres primeiro. Se essa restrição for abandonada, o problema se resolve de forma muito mais simples.
(Se você estiver curioso, aqui vai uma tabela com os “números de ménage”, ou quantos modos de embaralhar casais de forma a separar o marido da mulher existem, para cada “n”, ou numero de casais)
n m(n)
1 0
2 0
3 1
4 2
5 13
6 80
7 579
8 4738
9 43387
10 439792
11 4890741
12 59216642
13 775596313
14 10927434464
15 164806435783
16 2649391469058
17 45226435601207
18 817056406224416
19 15574618910994665
20 312400218671253762
21 6577618644576902053
Há aí uma mensagem profunda sobre como a convenção social pode atrapalhar o progresso da ciência… Ou não. Sei lá.
O futebol não é uma ciência. Mesmo.
Fazer dois times de futebol se enfrentarem não é uma forma cientificamente válida de determinar qual o melhor, exceto se a diferença do placar for superior a quatro gols. E quem diz isso não é o Galvão Bueno, mas um grupo de cientistas da Nasa, em um “paper” sobre significância estatística previsto para sair no Journal of Applied Statistics, mas já disponível no Arxiv.
Outra conclusão interessante do mesmo artigo é que campeonatos no estilo “mata-mata” — onde times são eliminados na passagem de uma fase para a outra, culminando numa final — são péssimos para determinar qual o melhor time do torneio.
Os autores estimam que a chance de a melhor seleção realmente ganhar a Copa do Mundo, por exemplo, é de menos de 30%. Eis a matemática destruindo a pretensão brasileira de ligar o pentacampeonato mundial à mística de “melhor futebol do mundo” (fiz uma continha e determinei que a chance de a seleção brasileira ter sido a melhor em todas as copas que ganhou é de 0,17%; já a de ter sido a melhor em pelo menos uma das cinco é de 80%).
Enfim: para tornar o futebol cientificamente confiável, os autores sugerem esticar os jogos indefinidamente, até que a diferença de gols atinja a significância estatística. Mas eles mesmos reconhecem que a implementação dessa ideia é improvável — para dizer o mínimo.
Assassinato por… homeopatia? oração?
Dois casos recentes de pais condenados pela morte de filhas, um nos EUA e outro na Austrália, levantam questões interessantes sobre a articulação entre crença, ética, verdade, ciência, responsabilidade e lei. O mais recente é o de um casal australiano, que insistiu em tratar a filha de nove meses com homeopatia, levando-a à morte. O anterior, nos EUA, também envolve um casal, que ficou rezando por uma cura milagrosa enquanto a filha, de 11 anos, agonizava de diabete.
Ambas as condenações parecem perfeitamente justas e o comportamento dos pais em questão é evidentemente absurdo para qualquer pessoa de bom-senso, mas a questão é, por quê? O que torna o fracasso da oração e da homeopatia mais culpável que, digamos, o fracasso de uma quimioterapia? Esse é um problema que tem várias camadas. A primeira está na articulação entre ética e crença.
Acho que já enchi bem o saco dos leitores habituais deste blog com minhas recomendações repetidas para que leiam (leiam! leiam!) o ensaio The Ethics of Belief, do matemático britânico William Clifford.
Elaborando a partir da observação voltaireana de que acreditar em asneiras é meio caminho andado para cometer atrocidades, Clifford argumenta que toda pessoa tem o dever moral de só acreditar em coisas verdadeiras, de testar suas crenças sempre que possível e eliminar as que não passam no teste.
O texto de Clifford foi escrito como parte de uma polêmica com o filósofo americano William James, que defendia que as pessoas têm um monte de crenças tolas mas inócuas, que não faz sentido ficar implicando com isso, e que só acreditar no que se pode provar que é verdade é um programa impraticável para orientar a vida cotidiana.
O consenso geral é de que James ganhou a parada, mas suspeito que casos como o australiano e o americano mostram que a conexão entre crença e ética estabelecida por Clifford é válida — que, mesmo que seu programa seja inatingível, trata-se de algo que deve ser buscado.
A segunda articulação é entre verdade e ciência. O processo cliffordiano de testar crenças é uma bela generalização do método científico: crenças que merecem o status, ainda que provisório, de “verdadeiras” são as que sobrevivem a seguidos testes; o processo de testar crenças é o que chamamos de “fazer ciência”. Logo, as crenças “éticas”, no sentido cliffordiano, são também as que se pode chamar de “científicas”.
A terceira articulação envolve ciência e responsabilidade. É verdade que a ciência não dita objetivos — ela é descritiva, não prescritiva — mas, uma vez que o objetivo esteja definido, é da ciência que nascem as opções responsáveis para alcançá-lo. Uma “opção responsável” é uma forma empiricamente viável de se conseguir algo: se quero ir a Paris, posso meditar em busca da teleportação, posso rezar para que o Arcanjo Gabriel me carregue em suas asas ou… posso comprar uma passagem de avião.
A última conexão é entre responsabilidade e lei: pais têm a obrigação legal de zelar pela saúde dos filhos menores de idade. Essa obrigação pressupõe que ajam de forma responsável para preservar essa saúde. Essa responsabilidade implica que busquem meios testados — científicos, portanto — de curá-los.
Não fazê-lo é negligência — e, ao menos nos EUA e na Austrália, dá cadeia.
Fechado para manutenção… do blogueiro
Gente,
por conta de uma série interminável de exames médicos que está me oferecendo momentos de autoconhecimento tão iluminadores quanto humilhantes — por exemplo, como quando o cardiologista encerrou a ergometria após meros 1min10seg, porque minha frequência cardíaca havia saído do nível de segurança — mas também está consumindo tempo, atenção e energia demais para permitir que eu me dedique a este blogue com todo o carinho e rigor que ele merece, resolvi dar um tempo no Ideias Cretinas.
Assim, tanto o paradoxo de amanhã quanto demais postagens estão suspensos — até meados de outubro, creio.
Espero retornar, porém, com pilhas novas e ótimas novidades!
Até breve,
Moc, o Cretinas.
Jogando com o seguro
Deu no New York Times da semana retrasada, mas não parece ter repercutido por aqui: o povo de Wall Street está preparando um novo produto financeiro para ocupar o vácuo dos malfadados subprime: agora, estão pensando em criar títulos baseados em seguros de vida.
A ideia é simples: banqueiros assumem os pagamentos dos seguros de vida de pessoas que não querem, ou não conseguem, mais arcar com as prestações. Essas pessoas recebem uma grana para fazer do banco o beneficiário — de fato, vendem o próprio seguro ao banco, com deságio. Quando elas morrem, a indenização devida pelo seguro vai para o banco. É meio como antecipar a restituição do imposto de renda, só que de um modo mais terminal, se é que você me entende.
Os títulos — que seriam negociados no mercado — são formados por montes de seguros de vida assim, “antecipados”.
Um banco pode comprar uma centena de seguros de gente que desistiu que continuar segurada, juntar tudo num pacote, fazer umas contas levando em consideração a expectativa de vida dos cidadãos e as indenizações individuais de cada apólice e emitir um título que promete pagar, digamos, cinco milhões e dólares dentro de dez anos. Aí, investidores individuais, outros bancos, fundos de pensão, etc, podem comprar, vender e revender esses títulos, ou títulos que dão direito a frações desses títutulos, títulos que…
Bom, pondo de lado o risco de uma nova crise subprime causada por velhinhos que se recusam a morrer no prazo estipulado (crise sublife?), o que realmente me encanta nesse esquema é a profunda ligação entre economia, a indústria de seguros e, claro, as probabilidades.
As seguradoras americanas estão com medo desse esquema porque isso significa que elas terão de pagar todos os seguros de vida que forem revendidos aos bancos.
Parte do cálculo das seguradoras, veja, envolve a probabilidade de alguns segurados morrerem sem que ninguém venha reclamar o seguro, ou de que parte dos segurados deixe de pagar suas prestações e perca o direito à indenização. Se essas probabilidades caírem a zero, todo o negócio terá de ser redimensionado.
Um cara ouvido pelo NYT disse que o esquema é perigoso porque investimento é investimento, e seguro “é um jogo de azar”. O que é mesmo: quando você segura o seu carro, o que você está fazendo é uma aposta: você aposta que seu carro vai ser roubado ou destruído no próximo ano, a seguradora aposta que não. Quem perder, paga.
Talvez esse cara esteja mal informado, e os investimentos já tenham, também, virado jogos de azar.
Bertrand Russell em quadrinhos!
Fizeram uma graphic novel sobre a vida e filosofia de meu heroi intelectual pessoal, o inenarrável Bertrand Russell! Abaixo, a capa:
O livro entra à venda na Amazon no fim do mês.
Paradoxo de sexta (43)
O da semana passada, o Paradoxo do Cérebro de Boltzmann diz, resumidamente, que num universo que tende à entropia crescente, o surgimento espontâneo de uma inteligência é improvável, mas possível; já o surgimento de bilhões de inteligências é uma virtual impossibilidade… Então, como explicar a espécie humana?
A resposta, claro, é que o surgimento de uma inteligência a partir do caos pode até ser muito improvável, mas o surgimento de condições que, após bilhões de anos de seleção — física, química, biológica — leve ao surgimento de sistemas inteligentes capazes de reprodução não é. A falácia no argumento do paradoxo está na palavra “espontâneo”. Inteligência não surge de organização espontânea da matéria; o que a organização espontânea faz é apenas gerar a variabilidade que será alvo de seleção.
Nesta semana, vamos tratar da Agulha de Buffon. O nome não vem do bobo da corte de alguém, mas de Georges-Louis Leclerc, o conde de Buffon. No século 18, o conde propôs um método experimental para se determinar o valor de pi:
Ache um lugar que tenha um piso dividido em faixas paralelas (como um assoalho comum). Jogue nesse piso, sucessivas vezes, uma agulha de comprimento igual, ou um pouco menor, ao da largura das faixas.
Conte o número de vezes em que a agulha cair no chão de forma a cruzar a linha entre duas tábuas sucessivas. Esse número fornecerá uma aproximação de pi, que será tão mais precisa quanto maior for o total de lançamentos feitos.
O “paradoxo” (ok, “enigma” é uma palavra melhor) está no fato de que tanto a agulha quanto as linhas paralelas no piso são segmentos de reta e pi, bolas, é um número que tem a ver com… bolas. Ou circunferências, ao menos. Veja bem, não estou pedindo uma demonstração de que o método de Buffon funciona, mas apenas o motivo: por que diabos isso daria certo?
(Se você tiver um assoalho, uma agulha e muito tempo nas suas mãos, a fórmula da relação, para uma agulha de comprimento igual ao da largura das tábuas do assoalho, é R/C ~ pi/2, onde “R” é o número de arremessos e “C” o número de vezes em que a agulha cruza o limite. Se a agulha for menor que a largura da tábua, é preciso multiplicar a razão R/C por d/l, a razão entre a largura da tábua e o comprimento da agulha. Mas aviso que é preciso muito tempo mesmo: um experimento realizado com 600 arremessos produziu a fração 3,14136, aproximação boa apenas até a terceira casa).